Princípio da comunidade, da utilidade e diferença: Um olhar Bioético para as enchentes


Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Aline Maran Brotto e Caroline Good
Mestrandas em Bioética



Para relacionar três princípios complexos, como o comunitarismo, o utilitarismo e o princípio da diferença, buscou-se uma notícia que pudesse ser observada por todos esse olhares, além instituir a temática das enchentes como a ligação dessa rede de princípios, em que a bioética ilustra questões importantes de vulnerabilidade, dignidade e justiça.
Em 2018 oEstados Unidos retomaram sanções unilaterais contra o Irã, afetando, as transações financeiras e proibindo as importações de tapetes e alimentos produzidos no Irã, ente outros.  Em  2019, na capital do Irã, Teerã, o ministro do Interior, Abdolreza Rahmani Fazli informou ao parlamento que as inundações causaram prejuízos avaliados em US$ 2,5 bilhões, mais de 4.400 localidades em 25 das 31 províncias do Irã foram afetadas pelas inundações, que causaram até agora 77 mortes. O governo do Irã denunciou que as sanções impostas pelos Estados Unidos atrasaram a chegada de ajuda humanitária do exterior ao país e impediu as doações em dinheiro.

Segundo Nisbet (1982, p. 13), o termo Comunidade pode ser definido como “relações entre indivíduos que são marcadas por um alto grau de intimidade pessoal, de coesão social ou compromisso moral, e de continuidade no tempo”, dessa forma, consideramos aqui que o termo comunidade pode se referir a um grupo de pessoas, família, país, estação ou nação. Will Kymlicka (2003), aponta que um dos motivos pelos quais os ideais de comunidade foram deixados de lado pelos intelectuais foi a pouca atenção que lhe foi dada pela vertente predominante do pensamento liberal. O Estados Unidos, pode ser reconhecido com país sob forte influência do pensamento liberal, com enfoque nas liberdades individuais, Vita (2002) aponta as diferenças entre o Liberalismo Igualitário e o Multiculturalismo em relação a políticas de inclusão social, ações afirmativas e de admissão diferenciadas, apontando que está diferença reside no método com o que o fazem, no Liberalismo essa politica beneficia indivíduos e não grupos, mesmo que se espere efeitos positivos para o grupo no geral.  Mas não é o grupo enquanto tal, como uma entidade coletiva, que é investido de um direito ou de um tratamento diferenciado. Para Schmidt (2011) o adjetivo comunitário é utilizado como uma forma de salvaguardar as intenções públicas e coletivas.
Etzioni (2007, p. 233), define o pensamento comunitarista como aquele que se preocupa fundamentalmente com a comunidade – e não com o Estado ou o mercado. Ou, em outras palavras, o pensamento que confere destaque à comunidade na construção da boa sociedade. Daí serem aqui considerados comunitaristas os autores que historicamente conferiram importância central à comunidade na vida social. Para Schmidt (2011) este ideal traz valiosos elementos para a construção de uma ordem socio política condizente com os mais elevados ideais humanistas, democráticos, de inclusão social e de desenvolvimento sustentável.
De acordo com as notícias aqui mencionadas, podemos dizer que a uma contradição entre os ideias Liberais e Comunitários. Ao considerar os interesses dos Estados Unidos, podemos dizer que há uma preocupação com a sua comunidade, enquanto país, visto que é um dos mais atingidos com ações terroristas, utilizadas como justificativa para efetivação das sanções. Mas ao considerar uma comunidade global, as sanções econômicas impostas ao Irã não atingem diretamente o que se quer combater – a produção de armamentos bélicos – mas sim a cultura iraniana no geral, a excluindo do panorama internacional global.
Podemos dizer que, ao imputar essas sanções há uma preocupação com o Bem Comum e o princípio da Utilidade, ao passo que, este prevê o maior benefício para o maior número de pessoas, a redução de atividades nucleares trariam benefícios para todos, não somente para os Estados Unidos. Mas ao se efetivar da forma como proposta aniquila-se a cultura, a exclui, a vulnerabiliza. A exclusão econômica impede as transações com os demais países o que o fragiliza também em suas relações internas e suas possibilidades de desenvolvimento.
As sanções estão fazendo que o que país não receba, ou tenha atraso na ajuda humanitária diante de um evento natural: as chuvas. Ao considerar o ambiente como bem comum que deve ser protegido por todos independente de seus interesses econômicos e políticos e a qual país se pertence, as questões políticas deveriam ser deixadas de lado, ao se pensar no princípio da utilidade, além do cuidado com o bem estar de uma comunidade agora fragilizada em suas necessidades básicas.
No panorama entre Liberalismo e Comunitarismo, Schmidt (2011) destaca seis tópicos em que observa um rol de ideias, noções e temas, que geram uma espécie de núcleo do comunitarismo: (a) a comunidade é condição ontológica do ser humano; (b) oposição ao individualismo e ao coletivismo; (c) oposição ao gigantismo estatal; (d) primazia dos valores pessoais sobre os valores do mercado; (e) subsidiariedade, poder local, associativismo e autogestão; (f) fraternidade, igualdade e liberdade. Estes tópicos delimitam alguns pontos para um referencial político e jurídico comunitarista, equidistante do privatismo e do estatismo, tanto pelo que postulam quanto pelos limites que estabelecem. O reconhecimento de que os excessos do Estado e do mercado não são compatíveis com o ideal da boa sociedade, o reconhecimento do imprescindível papel dos cidadãos organizados em comunidades e organizações e a emergência de questões que são inquestionavelmente de preocupação comum, como a ecologia, favorecem a atenção à mensagem comunitária.
Mediante o princípio da utilidade e da diferença,  percebe-se que ao mesmo tempo que um mesmo evento beneficiou uma parte da população, ocasionou mortes e perdas para outra. Quando pontua-se a questão voltada para as enchentes na capital do Irã, leva-se também em conta que existe falta e mau uso da água no país, bem como, a quantidade de água subterrânea diminuindo, juntamente com o equilíbrio hídrico do país. Segundo dados do setor agrícola, cerca de 90% dos recursos hídricos do país são destinados a agricultura, mantendo-se um uso de distribuição e estoque inadequados.  Logo, as chuvas que aconteceram no Irã, foram benéficas para outras regiões do país, que não sofreram enchentes, mas tiveram seus níveis de reservatórios e aquíferos aumentados, segundo dados de noticias do país.
Por utilitarismo, entendo aqui a doutrina ética segundo a qual a conduta objetivamente correta é, em quaisquer circunstâncias, aquela que produzirá a maior quantidade de felicidade no todo, isto é, tendo em conta todos aqueles cuja felicidade será afetada pela conduta (SIDGWICK, 2013, p. 579). 
Rawls estabelece que o utilitarismo se preocupa em ampliar a utilidade – satisfação, pois este é o maior bem estar. Mas o que gera bem estar e felicidade para um grupo de pessoas, não necessariamente o faz com outro grupo. Logo, o utilitarismo não se importa com a topografia que a utilidade se traduz para a sociedade.  Estabelecer o máximo de benefício possível aos menos favorecidos é a ideia central do princípio da diferença, pois este, considera a justiça enquanto equidade e olha para as desigualdades da sociedade (NEUBERGER, 2015).
O princípio da diferença sustenta a noção de Raws, em que se considera aceitável apenas as desigualdades sociais e econômicas que acarretem benefícios aos membros menos favorecidos da sociedade. O princípio da diferença acaba por ser uma alternativa ao princípio da utilidade (NEUBERGER, 2015, SIDGWICK, 2013).  
O princípio da justiça coloca o bem estar em vias primárias através do princípio da diferença como forma de assegurar todas as pessoana sociedade, em especial os menos favorecidos, que são os mais prejudicados (NEUBERGER, 2015).  
O bem estar de moradores desta e outras regiões quando se trata de chuvas, modifica-se, pois viver em uma região que pode ser alagada dependendo da intensidade das chuvas acaba por se tornar um fator gerador de mal estar psicológico, reproduzindo transtornos e síndromes devido a questões emocionais, como distúrbios no sono, ansiedade e perda de apetite, além das possíveis contaminações que a água poderá trazer consigo. Após a experiência de ter seus bens levados pela enchente outras consequências também se manifestam no período de chuvas, como rotina familiar e social durante o período de reconstrução, além do contexto político e de ajuda humanitária que a capital se encontra. Nesse momento também existem problemas voltados para a busca de um abrigo, e que este seja seguro e acolha todos que necessitem, oferecendo o mínimo necessário para a dignidade daqueles que perderam tudo (NEUBERGER, 2015, VITA, 1992).
Quando um grupo de pessoas passa por tal situação - de enchentes, alagamento, perda de bens financeiros e vidas -  é importante haver orientações por parte de autoridades da saúde, pois a comunidade está exposta a inúmeras vulnerabilidades, e é importante resgatar o bem estar de todos (VIRA, 1992).    
A teoria utilitarista aponta uma série de critérios com o intuito de ampliar a utilidade pública, como o dinheiro. Já o que se refere a teoria comunitarista, é possível perceber que o seu conteúdo prima por uma distribuição semelhante pelo que diz respeito aos benefícios e encargos sociais. Logo, a bioética ambiental, observará e estimulará uma reflexão teórico prática com esses e outros princípios, mediante as situações que acontecem no meio ambiente, e que refletem na saúde do planeta como um todo. Existem ainda, vários desafios sobre as intervenções que são realizadas ou esquecidas pelo ser humano, em relação ao meio ambiente, como neste caso as enchentes (FREITAS, XIMENES, 2012; CASSOL, QUINTANA, 2012).

CASSOL, P. B., QUINTANA, A. M. A contribuição da bioética na preservação ambiental e na saúde. Monografias Ambientais UFSM v(10), nº 10, p. 2235 – 2240, (e-ISSN: 2236-1308), 2012. Disponível em: http://cascavel.ufsm .br/revistas/ojs-2.2.2/index.php /remoa 2235. Acesso em: 30 jun 2019.
ETZIONI, A. La dimensión moral: hacia una nueva economía. Palabra, 2013.
FREITAS, M. C., XIMENES, E. F. Enchentes e saúde pública - uma questão na literatura científica recente das causas, consequências e respostas para prevenção e mitigação. Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador, Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Ciência & Saúde Coletiva, 17(6):1601-1615, 2012. Disponível em: https://ww w.scielosp.org/article/csc/2012.v17n6/1601-1616/ Acesso em 30 jun 2019.
KYMLICKA, W. Comunitarismo. Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopodo: Ed. Unisinos, 2003.

NEUBERGER, D. Teoria da justiça de John Rawls: entre o liberalismo e o comunitarismo. Trans/Form/Ação, São Paulo, 30(1): 169-190, 2007 169. UFSM Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível em: http://www.scielo.b r/pdf/trans/v30n1/v30n1a11.pdf Acesso em 27 jun 2019.
NISBET, R A. Os filósofos sociais. Ed. Universidade de Brasilia, 1982.

REVISTA EXAME, Inundações no Irã causam prejuízos de US$ 2,5 bilhões. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/inundacoes-no-ira-causam-prejuizos-de-us-25-bilhoes/>. Acesso em: 30 de Junho de 2019
G1 MUNDO, Sanções unilaterais dos EUA contra o Irã entram em vigor. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/07/sancoes-unilaterais-dos-eua-contra-o-ira-entram-em-vigor.ghtml>. Acesso em: 03 de Julho de 2019
REVISTA GAZETA DO POVO. Escassez de água faz antigo ponto turístico iraniano desaparecer. Disponível em: www.gazetadopovo.com.br/mundo/new-york-times/escassez-de-agua-faz-antigo-ponto-turistico-iraniano-desaparecer-enjl3zuiw845c9q2whfbielou/. Acesso em 1 jun 2019.
SCHMIDT, J. P. Comunidade e comunitarismo: considerações sobre a inovação da ordem sociopolítica. Ciências Sociais Unisinos, v. 47, n. 3, p. 300-313, 2011.

SIDGWICK, H. Os métodos de ética. Tradução da 7ª edição do original inglês de 1907. he Methods of Ethcis. Fundação Calouste Gulbernkian. Lisboa, 2013.
SILVEIRA, D. C. Teoria da justiça de John Rawls: entre o liberalismo e o comunitarismo. Trans/Form/Ação, v. 30, n. 1, p. 169-190, 2007.

VIRA, A. A Tarefa prática da Filosofia política em John Rawls. Revista Lua Nova. N. 25. CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea. São Paulo. 1992.
VITA, A. Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo (sobre Brian Barry, Culture and equality). Lua Nova, n. 55-56, 2002.

O bem estar, a vulnerabilidade e o consumo consciente


Série Ensaios: Bioética Ambiental
Por Jessika Da Cruz Sanches Barbosa E Renan Emilio Kintopp
Mestrandos em Bioética

O Bem-Estar é um conceito complexo, visto que é um campo de estudo que abrange as dimensões cognitivas e afetivas refletindo diretamente sobre a qualidade de vida e biodiversidade, além de várias infinitas áreas que o podemos relacionar. Esse conceito tem cerca de 45 anos de história e primeiramente, se propôs a estudar sua relação com a satisfação e a felicidade. Na década de 60, esse conceito passou a ser visto no âmbito material, tendo correlação direta com bens e serviços. Porém, muito além desses conceitos, se viu necessário trazer a este conceito uma definição global que envolvesse a saúde, as relações, a satisfação, a liberdade política, entre outros (GALINHA E RIBEIRO, 2005).
E ao se falar em vida sustentável, não há como desvincular a harmonia do meio ambiente e a qualidade de vida, pois se entende que nosso modo de vida está diretamente ligado a esses fatores. Diante da degradação presenciada no planeta atualmente e com toda a capacidade tecnológica, há uma dificuldade em viver em harmonia com o planeta sem mudar os hábitos de vida que agridem esse cenário. O conceito de sustentabilidade pode ser desdobrado em dois eixos, sendo o primeiro uma sustentabilidade ecológica, ambiental e demográfica  "que se refere à base física do processo de desenvolvimento e com a capacidade da natureza suportar a ação humana, com vistas à sua reprodução e aos limites das taxas de crescimento populacional" e a segunda uma sustentabilidade cultural, social e política "que se refere à manutenção da diversidade e das identidades, diretamente relacionada com a qualidade de vida das pessoas, da justiça distributiva e ao processo de construção da cidadania e da participação das pessoas no processo de desenvolvimento" (GADOTTI, 2008).
Diante disso, torna-se necessário correlacionar a questão da vulnerabilidade que está se tornando um termo muito comum no mundo acadêmico, social e político, mas é preciso entender de onde vem essa palavra, o que significa e como ela se tornou um princípio bioético. A palavra é originada do latim “vulnus”, que significa aquele que é passível de ferimento. Reconhecemos assim a vulnerabilidade naquele que, dentro do que entendemos por dignidade humana, está tendo alguma falha, ausência ou violação de sua existência (ZUBEN, 2012).
A Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005, afirma que temos responsabilidade sobre esse ser que está em uma situação de vulnerabilidade. Nasce assim, o princípio da vulnerabilidade, defendido, praticado e discutido por outros autores da bioética. Nossa responsabilidade, para Zuben (2012) não está apenas em respeitar, mas sim cuidar e proteger daquele que está em sofrimento ou passível de sofrê-lo.
Em Julho de 2018 foi publicada uma pesquisa que 76% dos entrevistados não praticam consumo consciente, onde se levantou que um dos motivos pelo qual não se pratica o consumo consciente é devido as grandes exigências que essas mudanças de hábito irão influenciar, além de custar mais caro e que se tivermos por base a encíclica Laudato Sí publicada pelo Papa Francisco, a mesma relata que "sabemos que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana". E assim correlacionamos a questão da vulnerabilidade com o consumo consciente.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental tendo como base as obras:

GALINHA, Iolanda; RIBEIRO, J. L. Pais; HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE BEM-ESTAR SUBJECTIVO. PSICOLOGIA, SAÚDE & DOENÇAS, 2005, v. 6, n. 2, pág. 203-214. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/37650194_Historia_e_Evolucao_do_Conceito_de_Bem-Estar_Subjectivo>. Acesso em: 03/07/2019.

GADOTTI, Moacir. Educar para a sustentabilidade. Inclusão Social, Brasília, v. 3, n. 1, p. 75-78, out. 2007/mar. 2008. Disponível em:<http://revista.ibict.br/inclusao/article/view/1624>. Acesso em: 03/07/2019.

ZUBEN, Newton Aquiles Von. Vulnerabilidade e finitude: a ética e cuidado do cuidado do outro. Síntese- Rev. Filosofia, v. 39, n. 125, p. 433-456, 2012.

A Crise Hídrica De 2014/2015 Em São Paulo E O Princípio Da Soliedaridade: Contribuições Da Bioética Ambiental


Série Ensaios: Bioética Ambiental

por Julia Mezarobba Caetano Ferreira
Mestranda da Bioética

O Estado de São Paulo enfrentou, nos anos de 2014 e 2015, a pior crise hídrica de sua história. No entanto, a falta ou escassez de água é fenômeno recorrente que assola várias regiões do Brasil, de modo que o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal elaborou um Boletim Legislativo, a partir do conhecimento de nove especialistas, com o intuito de reunir informações básicas para a compreensão das principais questões imbricadas na crise hídrica em território brasileiro.
De acordo com as informações compiladas no boletim, as razões para a falta d’água não são meramente relacionadas à estiagem (insuficiência de chuva), mas sobretudo ao uso não eficiente dos recursos hídricos e à incapacidade  dos governos em manejar déficits temporários e excepcionais. Os especialistas compreendem que Políticas Públicas poderiam ser criadas de modo a assegurar o acesso à água para toda a população em momentos de crise hídrica.
Para o pesquisador Ivan Maia, embora o acesso à água potável não esteja explicitamente previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, tampouco na Constituição Federal do Brasil de 1988 enquanto Direito Fundamental, o acesso mínimo é condição sine qua non para o exercício de diversos direitos humanos essenciais, como o direito à vida, à saúde e ao bem-estar. Assim, o Estado deve ser responsável por seu provimento para toda a população.
Atualmente, o direito humano à agua potável é assegurado e retificado por diversos tratados, resoluções, legislações e outros documentos nacionais e internacionais; sendo um dos mais relevantes em nível mundial a Resolução A/RES/64/292, de 28 de julho de 2010, onde a ONU reconheceu expressamente o direito à água e ao saneamento enquanto fundamentais para a concretização dos demais direitos humanos. Entretanto, muitas vezes esse direito é violado, como no caso já mencionado da falta d’água no estado de São Paulo em 2014/2015.
Uma notícia publicada pela Revista Exame versão eletrônica demonstrou alguns dilemas éticos da crise hídrica supramencionada. Dentre eles, o iníquo acesso à agua tratada entre as diferentes zonas e classes sociais de São Paulo neste período. Geograficamente, os bairros mais periféricos e/ou mais elevados, onde, geralmente, classes menos favorecidas habitam, enfrentaram a falta d’água em função de redução na pressão da água praticada pela Sabesp, companhia de abastecimento do Estado de São Paulo, a fim de evitar o desperdício da água via vazamentos nas tubulações (vale lembrar que 37% da água tratada no Brasil é desperdiçada em razão de falhas, fraudes e ligações clandestinas nas tubulações).
Para além deste recorte geográfico apresentado, que delimita uma população mais atingida e vulnerada pela falta d’água, há também um claro recorte econômico no acesso à água tratada. De acordo com um estudo elaborado pelo instituto de pesquisas Datafolha, as pessoas que possuíam como renda até cinco vezes o salário mínimo vigente (ou seja, até R$3.620) no período da crise, tiveram o dobro de probabilidade de enfrentar cortes de água em relação àqueles que possuíam pelo menos dobro deste valor (ou seja, a partir de R$7.240 de renda).
A Bioética, conforme pensada inicialmente por Van Rensselaer Potter, nos anos 70, busca refletir sobre os problemas éticos da relação ser humano e meio ambiente, superando o antropocentrismo que dominava as ciências médicas e o bioecocentrismo que dominava as ciências bioecológicas (sobretudo a ética ambiental). Nesta conotação, uma das formas de atuação da Bioética é através de deliberações pautadas em referenciais teóricos que considerem todos os atores envolvidos e a complexidade inerente as questões relacionais entre ser humano e meio ambiente. Assim, a crise hídrica vivenciada pelo Estado de São Paulo em 2014/2015 é acontecimento a ser debatido pela Bioética.
Pesquisadores da Bioética, ao analisarem o referencial da Solidariedade, demonstram que o termo, na atualidade, é compreendido através do ideal de equidade e incorporação do diferente, inclusive através da igual repartição quantitativa de bens e posses. Nesta concepção, a solidariedade não é correlata a uma tolerância passiva, mas a um agir responsável e preocupado com o outro em particular e com a comunidade em geral.
Desta forma, a solidariedade pode ser um referencial precioso para pensar a crise hídrica em contextos modernos, concebendo a complexidade desta problemática através de uma abordagem sistêmica, crítica e que considere todos os atores envolvidos (meio ambiente, iniciativa privada, governo e população civil). A solidariedade, em sociedades cosmopolitas, surge da preocupação e do cuidado com os semelhantes, sobretudo daqueles em situações de vulnerabilidade social.
No caso da crise hídrica no Estado de São Paulo, o princípio da solidariedade, pensado a partir da equidade, poderia embasar políticas de tributação que fixassem taxas distintas para o consumo de água nos setores agrícola (responsável por 54% do consumo de água no Brasil), industrial (responsável por 17% do consumo) e pecuário (responsável por 11%) quando em comparação ao consumo urbano e rural. Ainda poderia ser pensada uma forma de tributação que considerasse a renda familiar da unidade de consumo urbana ou rural, desigualando para igualar e prevenir futuras crises da magnitude dessa enfrentada em 2014/2015.
Outra forma de aplicar o princípio da solidariedade seria, por exemplo, por intermédio de sanções à Sabesp pelo desperdício de água nos canos da própria empresa (a cada 5L de água tratada, 1L é perdido), de modo que fosse impelida a sanar esses vazamentos, garantindo para que a pressão da água se mantivesse de modo tal que todos tivessem acesso. Fazer com que a empresa se responsabilize pelas consequências de suas ações/omissões está de acordo com os pressupostos de uma responsabilidade solidária.
Assim, considera-se que a crise hídrica é temática complexa, abrangente e que não pode ser pensada de maneira reducionista e passiva, sendo de suma importância que os agentes afetados pela falta d’água, e também especialistas de diversas áreas, se unam em um debate bioético, que sopese além da solidariedade outros princípios e valores, para a elaboração de políticas que visem prevenir e amenizar a crise hídrica.

Esse ensaio foi elaborado para Disciplina de Bioética Ambiental

Sacrifício de animais em rituais religiosos: uma análise a partir dos princípios do cuidado e da proteção


Série Ensaios: Bioética Ambiental
Por ... Joaquim Francisco Dias Setin
Mestrando em Bioética

Sacrifício de Animais

O sacrifício cerimonial de animais data de tempos remotos, tendo registros desde os tempos pré-dinásticos do Egito, tal como descreve Flores (1999). Ainda de acordo com a autora, na região do Alto Egito, foram encontradas tumbas cerimoniais com vestígios de sacrifícios de cabras e ovelhas datados entre 4.000 e 4.500 anos enquanto em outra localidade, num sítio arqueológico datado com aproximadamente 3.000 anos, foram encontrados vestígios de sacrifícios rituais envolvendo não apenas animais domésticos, como historicamente registrado na cultura egípcia, mas também hipopótamos, gazelas e outros animais não humanos presumivelmente selvagens.
Ao longo da história, diversas civilizações utilizaram de sacrifícios rituais pelas mais diferentes razões, como explicam Mauss e Hubert (2013). Essas razões variam e evoluem, indo e vindo de uma concepção a outra através das épocas das civilizações, de forma que por hora o animal não humano sacrificado personificava o próprio espiador – fiel que sacrificava –, ora desempenhava papel de facilitador ou veículo para expiação, e comumente era uma oferenda para agradecimento ou súplica a uma entidade.  Corrobora tais afirmações Burkert (1983) ao analisar os ritos e cultura religiosa da Grécia Antiga. O autor destaca em seu objeto de estudo o uso de animais não humano em sacrifícios de expiação e de súplica aos diversos deuses, inclusive de forma sistemática e sazonal como oferenda para as entidades que a cultura reconhecia como responsáveis pelas colheitas, chuvas, fertilidade, etc.
É importante a contextualização realizada até aqui para destacar que, no contexto brasileiro contemporâneo, o senso comum entende o sacrifício de animais não humanos como uma prática típica das religiões de matriz africana, quando uma breve consulta à bibliografia (Periódicos Capes, Biblioteca Nacional, British Library, com os termos “sacrifício ritual” e “animal sacrifice”) demonstram que essa prática compõe um alicerce das religiões que participaram da fundação da civilização ocidental, incluindo a religião cristã (MAUSS e HUBERT, 2013).
Nem todas as religiões de matriz africana praticam o sacrifício ritual de animais não humanos, como reitera Goldman (1985). Vieira e Silva (2016) destacam a concepção do animal não humano em diferentes crenças e religiões tais como a cristã, hinduísta e judaica, e destacam os momentos históricos quando o sacrifício ritual compôs parte do dogma dessas denominações. Goldman (2985) e Vieira e Silva (2016) debatem sobre o uso dos animais não humanos em celebrações de matriz africana como Candomblé, quando o animal é sacrificado e totalmente “aproveitado” por aqueles que praticam a celebração, incluindo vísceras, couro e sangue, no sentido de alimentar as entidades e realizar comunhão entre os devotos e as próprias entidades. Os mesmo autores levantam a questão da moralidade na conduta do sacrifício quando discutem tais práticas a luz da Bioética: é certo manter a prática do sacrifício ritual quando já se consideram o direito ao bem-estar animal como relevante para o escopo moral na ordem social contemporânea?

Discutindo o caso: Princípios do Cuidado e Proteção

A (bio)ética moderna tem como propósito proteger e cuidar, baseado em diversos estudos acerca da vulnerabilidade e a interrelação entre as esferas econômicas, sociais, políticas e culturais que perfazem a condição e a experiência humana. Considera-se que tais princípios são essenciais para a construção de um “ethos global” ou “novo ethos”, já discutido por diversos pesquisadores, que defendem um campo moral amplo e emancipado do antropocentrismo e do etnocentrismo para garantir a sobrevivência e o bem-estar e o desenvolvimento de todos e todas (BOFF, 2005; SCHRAMM, 2008).
Ao se falar em bioética de cuidado e proteção, é essencial considerar a complexidade do que se tem em voga quando se analisa um caso acerca do sacrifício ritual de animais não humanos.  Como Vieira e Silva (2016) debatem, por um lado na discussão acerca da legalidade e aceitação do sacrifício de animais não humanos ou não têm-se a visão antropocêntrica que instrumentaliza os animais, à serviço do humano, portanto, passíveis de serem sacrificados; há ainda aqueles que defendem um ideal de liberdade de prática religiosa, protegida por lei, na constituição brasileira. Por outro lado, aqueles que falam pela proibição de tal prática, alegam que atualmente os animais não humanos entraram no campo moral da civilização a ponto de serem inclusos e protegidos pela lei, com seu bem-estar sendo objeto jurídico passível de proteção e cuidado.
Em suma, não há objeção jurídica atualmente no Brasil que endosse proibição à prática de sacrifícios. No entanto não são raros casos que tomam notoriedade de ações movidas contra professantes de matriz africana contra essa prática. Curiosamente, no Brasil, diuturnamente são realizados sacrifícios animais para outras denominações de origens diversas como judaísmo e o islamismo, e a bibliografia não oferece precedentes de mobilizações similares contra essas práticas, tal como ocorre com Candomblé, por exemplo (LIMA, 2015). Nesse contexto é importante ressaltar a realidade latino-americana embebida em efeitos da colonialidade, que permeia o dia-a-dia nas diversas esferas sociais, políticas, econômicas e culturais.
Não surpreende que Avila (2009) tenha pesquisado as atividades da unidade gaúcha do CEDRAB, a Congregação em Defesa das Religiões Afrobrasileiras. Destaca que a gênese de tal instituição pauta-se na urgência de uma defesa organizada contra ações de cerceamento de liberdade realizados em nome do colonialismo moral e da imposição de padrões de comportamento eurocêntrico intrínseco no sistema social brasileiro. Ademais, é interessante associar a essa discussão os apontamentos de Pasayat Chitrassen (2003) em sua obra Olhares sobre a Cultura Tribal e Popular (tradução livre), que por mais bárbaros que pareçam para o ocidente rituais como o dedicado à deusa Gadhimai – quando milhares de animais não humanos são sacrificados, esses hábitos e rituais compõem a identidade do povo, sua realidade e visão de mundo. A simples proibição da prática seria, do ponto de vista de um cidadão dos arredores do templo a essa deusa, um crime contra sua cultura e herança cultural.
Delinha-se então a solução proposta por Vieira e Silva (2016) de, pretensamente em respeito ao multiculturalismo presente na população brasileira, “reeducar” tais culturas e crenças, para abandonar o antropocentrismo especista que possibilita a prática dos sacrifícios. Sobre isso, invocando os princípios de cuidado e proteção, mais uma vez em seu sentido amplo para além da causa animal, e apoiado pela definição de Colonialismo Moral (GARRAFA, 2008), nos deparamos com a indagação “não estaremos, assim, executando a adequação de outras culturas ao nosso próprio padrão cultural ocidental, branco e cristão?”. À luz da Bioética em seu espectro amplo, essa reflexão e crítica é o suficiente para causar um profundo desconforto, uma vez que 1) cabe à bioética versar sobre o direito animal e vetar qualquer prática que barbarize e cause sofrimento aos animais não humanos ao mesmo passo que 2) cabe à bioética versar sobre os direitos fundamentais dos homens e mulheres que incluem o respeito à sua visão de mundo, sua cultura e herança, garantindo a liberdade de expressão de crença e religião.

Considerações finais

O sacrifício animal faz parte da história de diversas religiões, asiáticas, de matriz africana, ocidentais e aborígenes. Ao longo da história, na mesma crença ou religião ou cultura, o animal já foi interpretado de diferentes formas – como substitutivo ao espiante, como conduta para se atingir à divindade, como oferenda para apaziguar ou provocar ou recompensar uma entidade. Nos dias atuais, em todo o mundo, diversas culturas praticam, de uma forma ou de outra, o sacrifício cerimonial de animais não humanos.
A sociedade contemporânea inclui no campo mora de discussão jurídica a causa animal, com seus direitos fundamentais, apesar de forma superficial, e principalmente seu bem-estar – ao menos em teoria. A expansão e amadurecimento dessa compreensão ética sobre animais não humanos faz emergir a polêmica acerca de seu uso em rituais religiosos. Contudo, considerando a realidade brasileira, apoiados pela bibliografia acerca do tema, temos que a manifestação contrária à prática se restringe às práticas de matriz africana, refletindo o preconceito e a doutrinação em torno do padrão eurocêntrico, branco e cristão sob o qual as culturas e o sistema brasil são estruturados.
Nesse contexto, é problemático pensar em “educar” as crenças e religiões sob o risco de reproduzir processos característicos do colonialismo moral. Sob todos os efeitos do discutido, ao invés de uma resposta, novas perguntas surgem, no entanto, seriam essas as perguntas corretas para um bioeticista comprometido com o cuidado e a proteção de pessoas humanas e animais não humanos, agindo sob a ótica de uma bioética global que busca a universalidade e voga em defesa da biosfera como um todo.

O Presente ensaio foi elaborado para disciplina de bioética ambiental, baseando nas obras:

ÁVILA, C. G. Na interface entre religião e política: origem e práticas da Congregação em Defesa das Religiões Afrobrasileiras (CEDRAB/RS). (Dissertação – Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciênciais Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Porto Alegre, 2009.
BOFF, L. O cuidado essencial: princípio de um novo ethos. In.: Inclusão Social, v. 1, n. 1, p. 28-35, 2005.
BURKERT, W.  Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth. California – EUA: University of California Press, 1983.
CHITRASEN, P. Glimpses of Tribal and Folk Culture. Delhi: Anmol Publications Pvt Ltd, 2003.
FLORES, D. V. The Funerary Sacrifice of animals during the Predynastic Period. (Tese – Doutorado). Universidade de Toronto. Departamento de Graduação em Médio e Próximo Oriente.          Toronto, 1999.
GARRAFA, V. Colonialismo Moral (Vocábulo). In.: TEALDI, J. C. Dicionário latino-americano de bioética. Bogotá: Unesco, 2008. (p.535-536)
GOLDMAN, M. A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé. In.: Religião e Sociedade, v. 12, n. 1, p. 22-54, 1985.
LIMA, K. J. M. Liberdade religiosa e a polêmica em torno da sacralização de animais não-humanos nas liturgias religiosas de matriz africana. In.: revista Brasileira de Dirieto, v. 11, n. 1, 2015.
MAUSS, M. e HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac & Naif Editora, 2013.
SCHRAMM, F. R. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. In.: Revista Bioética, v. 16, n. 1, p. 11-23, 2008.
VIEIRA, T. R. e SILVA, C. H. O sacrifício animal em rituais religiosos ou crenças. In.: Revista de Biodireito e Direito dos Animais, v. 2, n. 2, p. 97-117, 2016.

O princípio precaução e o caso da mineração em Brumadinho


Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por  Verônica Graeser
Mestranda em Bioética


A sociedade de risco, desenvolvida pela técnica, apresenta novas dimensões da responsabilidade[1], ante a vulnerabilidade da natureza[2] e de todos os seus recursos finitos.
Com o auxílio da técnica, primeiramente, o homem realizou a exploração dos recursos naturais, ultrapassando os seus próprios limites, realizando novos tipos de intervenções na natureza.
Posteriormente, surgiram os gravosos danos, revelando aos intervencionistas que as consequências são, muitas vezes, irreversíveis e que o ciclo da natureza não se renova ao passo do dinamismo da exploração.
Muitas das consequências da exploração da mineração em Brumadinho não eram desconhecidas, afinal, as empresas que atuam no atual mercado econômico trabalham com o desenvolvimento de riscos aparentes e possíveis, como parte do cálculo do seu capital.
Para esses riscos previsíveis existe o princípio da prevenção (proibição do perigo), que como a própria palavra explicita é o ato de se prever os possíveis danos no futuro (breve e também distante).
Entretanto, essa sociedade que lida com as incertezas, apresenta riscos não previsíveis, que fogem da total possibilidade da sua inclusão no cálculo do seu capital. Tratam-se de riscos mitigados, simples, que não são calculados, pois eles são reais e irreais ao mesmo tempo.

“Gerd Winter diferencia perigo ambiental de risco ambiental. Diz que, ‘se os perigos são geralmente proibidos, o mesmo não acontece com os riscos. Os riscos não podem ser excluídos, porque sempre permanece a probabilidade de um dano menor. Os riscos podem ser minimizados. Se a legislação proíbe ações perigosas, mas possibilita a mitigação dos riscos, aplica-se o ‘princípio da precaução’, o qual requer a redução da extensão, da frequência ou da incerteza do dano’”. (MACAHADO. 2018, p. 94).

O caso da mineração em Brumadinho apresenta dois tipos de riscos: (a) riscos reais como a poluição, a morte das águas, desaparecimento das florestas, surgimento de novas doenças, entre outras e (b) riscos irreais que se projetam para as futuras gerações.
Dessa forma, o passado perde a sua força e o futuro se revela como determinante para o presente.
O presente ensaio apresenta, brevemente, que o futuro artigo sobre O princípio precaução e o caso da mineração em Brumadinho abordará sobre a diferença técnica do princípio prevenção e do princípio precaução e de como a Bioética, bem como as suas principais correntes, poderão tratar de maneira mais efetiva do princípio precaução, objetivando a durabilidade da vida humana das futuras gerações e a continuidade da natureza já existente.

O Presente ensaio foi elaborado para Disciplina de Bioética Ambiental, tendo como base as obras:

HANS, Jonas. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2006.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 26ª ed. amp. e atual. Editora Malheiros. São Paulo. 2018.



[1] A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-las (...). Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade. HANS, Jonas. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2006, p. 39.
[2] (...) a crítica da vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção técnica do homem – uma vulnerabilidade que jamais fora pressentida antes de que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos. HANS, Jonas. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2006, p. 39.

Bioética e Educação Fundamental



Palestra Congresso Brasileiro de Bioética – 2019
Mesa Redonda: Bioética e Educação
Bioética e Educação no Ensino Fundamental

A inserção da Bioética na Educação se constitui de uma das linhas de atuação do grupo de Pesquisa em Bioética Ambiental em sinergia com o grupo Bioética e Educação ambos associados ao PPGB da PUCPR.
A fala de hoje tem o propósito de mostrar o olhar da nossa pesquisa para esse segmento. Nosso ponto de partida é a Bioética da perspectiva de Potter, a busca por uma nova sabedoria! ("Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”) (Van Rensselaer Potter, Bioethics. Bridge to the future. 1971). Sabedoria pode ser definida como um acúmulo de conhecimento que é construído com educação. Educação que propõe não apenas uma transmissão de conhecimento ou uma sensibilização para uma questão, mas que almeja uma mudança de atitude e de paradigmas. Visiona a conscientização não apenas de que uma questão existe, mas de que o sujeito faz parte dessa questão, que é agente moral, logo igualmente responsável pela busca de soluções.
O segundo balizador é a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos  (.”..De modo a promover os princípios estabelecidos na presente Declaração e alcançar uma melhor compreensão das implicações éticas dos avanços científicos e tecnológicos, em especial para os jovens, os Estados devem envidar esforços para promover a formação e educação em bioética em todos os níveis, bem como estimular programas de disseminação de informação e conhecimento sobre bioética”) que orienta para uma educação em Bioética em todos os níveis.
Partindo da reflexão desses pontos fomos até a literatura para nos certificarmos de como estava sendo encaminhado esses propósitos. Considerando os quase 50 anos da Bioética, compreendemos que as primeiras ações nesse sentido focaram o stricto e lato sensu, ou seja, tanto a formação continuada quanto a formação especializada em Bioética e a formação de propagadores.  Fora desse universo o próximo foco foi na graduação e em menor quantidade em cursos profissionalizantes, no qual inúmeros estudos foram publicados trazendo metodologias e comprovando a necessidade da inserção da bioética nos cursos da área da saúde a fim de subsidiar uma atuação profissional mais humanitária e antenada com as demandas contemporâneas.  A atuação no ensino básico só agora nos últimos anos começa a se tornar uma preocupação e fonte de intervenção e pesquisa, principalmente em decorrência de ser atestado com as pesquisas pregressas, que para construirmos cidadãos aptos para se posicionarem diante dos problemas bioéticos, se fazia necessário prover a uma educação moral e cultivar valores como respeito, cuidado e sustentabilidade desde o início de sua educação.  
Além do ensino em Bioética envolver a contextualização histórica e os princípios norteadores da atuação, alguns métodos como o uso de situação problemas ou dilemas morais são clássicos por inserirem o estudante no contexto deliberativo, complementarmente trabalha-se frequentemente o debate ou fóruns a fim de promover e estimular o diálogo. Contudo, novas metodologias como uso do ambiente virtual, a simulação e as artes (principalmente o cinema) estão sendo incorporadas no dia a dia da atuação do Bioeticista na educação.
Essas metodologias embora sejam eficientes para um público adulto, é mais difícil de trabalhar em um público de jovens principalmente de crianças que não tem capacidades cognitivas de abstração desenvolvidas.
Devido a educação base representar os alicerces da bioética entendemos que se deve trabalhar a perspectiva bioética intrinsecamente considerando as questões contemporâneas decorrentes do desenvolvimento tecnológico e que se caracterizam pela sua natureza complexa, global e plural e que a bioética se propõe o papel de ponte promotora do diálogo, balizada pelo valor que é a vida e a vida com a qualidade, logo desempenhando o papel de identificação e mitigação de vulnerabilidades.
A partir desta constatação nosso caminho foi angariando certas compreensões que irei apresentar aqui. Primeiro a importância de diagnosticar as representações, então buscar por um instrumento que permita uma comunicação sem ruídos com as crianças e que seja hábil em identificar a eficiência das intervenções. Que no nosso caso começou com o desenvolvimento moral pensando em um público adulto, mas que ser mostrou inviável para as crianças e que nos conduziu a elaborar e validar outros métodos como o debate, as histórias em quadrinhos e o teatro. Todo esse percurso ele foi realizado em parceria com os alunos do nosso programa. E que eu irei brevemente apresentar atentando para pontos mais relevantes.
O primeiro trabalho foi sobre a representação de BEA por estudantes do ensino básico associado com a avaliação da representação animal na time line do facebook de diferentes usuários. Uma utilização da imagem do animal antropocêntrica/utilitarista e um posicionamento do estudante muito baseado no senso comum, mas com indicativo de uma abertura para se trabalhar essas questões, como é possível identificar na fala (“Os animais precisam ter seu habitat natural, sem maltrato. Eles precisam ser livres, temos que cuidar bem deles, porque se maltratarmos os animais, eles guardam esse acontecimento, que pode deixá-los tristes ou com raiva” “Os cachorros são amigos do ser humano, eles nos acompanham a qualquer lugar. O cachorro tem sempre a característica do dono, por exemplo: se o dono for alegre, o cachorro também é alegre”). O que ficou mais obvio dessa pesquisa é que o estudante e futuro cidadão precisa ser capacitado para transitar pelo mar de informações e argumentações dos nossos dias. Caso contrário ele será refém de um sistema que tem trazido muito sofrimento e confusão.  
A partir dos resultados dessa pesquisa tivemos como meta a busca por instrumentos que permitissem avaliar a compreensão do estudante para o propósito da intervenção e nos deparamos com as escalas de desenvolvimento moral de Kohlberg, que se mostraram compatíveis com propósitos da Bioética, no que tange o amadurecimento moral desses estudantes. Essa ferramenta foi aplicada em inúmeras pesquisas nossas com graduandos e permitiu acessar o amadurecimento comparando com outras expressões cognitivas. Segundo a teoria, o julgamento do certo e errado amadurece concomitante ao amadurecimento cognitivo, sendo que todo ser humano deve passar por seis níveis dispostos em 3 estágios (pré-convencional – convencional e pós-convencional) sendo que nos quatro primeiros se usam condicionantes externos e referenciais internos como punição, interesse, avaliação social e legislação. No último estágio o indivíduo se transforma em sujeito e é capaz de transpor seus interesses e se ver integrado ao social. Embora esse desenvolvimento tenha relação com idade cronológica, as pessoas podem estar em estágios mais ou menos amadurecidos dependendo da área de atuação da maturidade.  Segundo pesquisas nesse segmento o amadurecimento moral se alcança com a experiencia, viver a situação e principalmente presenciar como sujeitos moralmente mais maduros se posicionam diante das questões.
Contudo, a proposta de se trabalhar com crianças trazia o obstáculo do desenvolvimento do pensamento abstrato. Nossa primeira intervenção com as crianças foi em uma atividade não formal, denominada caminho do diálogo (veja livro e artigo), cujas crianças vieram até a Universidade onde encontram 10 árvores da vida com temas próprios da bioética tais como família, espiritualidade, vulnerabilidade, pesquisa com animais e pessoas, biodireito e educação e junto com professores, mestrandos e graduandos, debateram na sombra das árvores exercendo o ouvir o outro e refletirem em soluções consensuais. Algumas frases dos alunos que participaram “Concordância com uso de animais em aula e pesquisa, desde que tenham morrido naturalmente“...a ação nos fez querer ser melhores, repensar nossos atos, hábitos e conceitos” “...aprendemos como cada pessoa tem sua opinião dentro de casa e como melhorar a convivência, respeitando ao próximo”.
Ano passado demos continuidade a essa atividade e realizando a segunda versão, agora para ensino médio e a confluência com as ODS. Mas embora conseguíssemos elaborar e aplicar uma intervenção ainda sentimos falta de um instrumento capaz de avaliar os resultados da intervenção.
Nossa próxima atuação procurou validar uma atividade de Bioética Ambiental desenvolvida em uma escola estadual do município de São José dos Pinhais. No Batalhão Mirim, projeto formiguinhas o nosso mestrando e um dos ganhadores do prêmio Jovem Bioeticista, trabalhou durante dois anos com as crianças desenvolvendo valores como cooperação, cuidado, sustentabilidade, em atividades envolvendo reciclagem à horta. O projeto previa o envolvimento com a família e a comunidade, na multiplicação desses valores. Com a horta o professor trabalhava a cooperação, o respeito pelos ciclos e o cuidado. A interação com a natureza e os sentidos. O desenvolvimento desses valores nas crianças foi monitorado, assim como a continuidade após a intervenção e o envolvimento com a família. Além do grupo focal um pré-teste e um pós-teste foi aplicado.
Já pensando na dificuldade em elaborar suas percepções ou compreender um instrumento escrito, propomos um instrumento para avaliação constituído por uma HQ em que os estudantes deveriam escolher o melhor desfecho, e esses associados com escalas de relação com a natureza publicadas.
No próximo estudo buscamos desenvolver uma ferramenta especialmente para atestar uma ferramenta de intervenção. Passamos por várias etapas, desde a construção de um instrumento baseado nos níveis de desenvolvimento moral e nas correstes éticas aplicados para estudantes de biologia e psicologia, sendo que os primeiros representavam uma maior empatia com animais e os segundos com pessoas. Foram dois instrumentos, com duas formas de pesquisa e uma avaliação dos instrumentos, posteriormente os mesmos foram ajustados e transformados em histórias em quadrinhos. Depois foram avaliados por uma banca de profissionais especialistas em diferentes áreas. Na sequência aplicado em crianças para seleção dos desfechos presenciais e só então aplicado. A ação foi no zoológico em que as crianças passavam pelos recintos e em alguns deles (metade com muito e metade com pouco comprometimento ao BEA) os alunos avaliavam a qualidade. O pré-teste (um desenho) e um pós teste era aplicado para colocar em ordem os desfechos preferenciais. Para verificar se as crianças conseguiriam transpor as questões dos zoológicos era verificado o posicionamento com relação a humanização dos animais.
No nosso último trabalho avaliamos o teatro como uma ferramenta para trabalhar os dilemas morais com as crianças, testando a hipótese que a criança conseguiria compreender o papel da bioética independente se atuava, participava durante a peça ou era apenas expectadora. Utilizamos o dilema moral do moranguinho com agrotóxicos. O mestrando trabalho um semestre com as crianças. O dilema considera uma pessoa que está vendendo moranguinhos com agrotóxicos para ajudar a família. A adaptação da peça considerou que o Potter tinha ido para o futuro e era muito ruim, ele precisava ter um respirador artificial, o homem tinha destruído tudo. Então ele voltou para o passado para ver o que as crianças estavam fazendo pelo futuro.  E ele encontrou um menino vendendo moranguinhos com agrotóxicos, no texto tratou questões de vulnerabilidade e trabalho infantil, pois o pai tinha ficado doente e ele precisava a ajudar. A professora pede para ele voltar para escola, ele diz que não pode, pois não tem médico na cidade para atender seu pai. Se discute a questão das responsabilidades. Do consumidor que descobre que os morangos estão contaminados e na narrativa um agricultou de orgânico diz que é possível sim produzir com qualidade. O Potter dialoga com eles e com a plateia. No final deixa uma mensagem de otimismo e de motivação. Logo após a peça os três grupos passaram pelo pós-teste. Foi pedido para eles continuarem a história... você é adulto está no futuro, andando, lá na frente você vê o Potter e vai caminhando na direção dele.  O que você vê ao seu redor? Quais são as injustiças que você vê? O que você faz? Chegando perto de Potter o que você diz pra ele?
                Aqui temos o exemplo de um pré-teste em que o aluno, assim como a maioria dos outros estudantes, imaginava um futuro distante, tecnológico e individualista. Nada de natureza, cidades poluindo. Cada um com seu robô.  Depois da pela o aluno fez um cenário bem parecido, parecia o mesmo lugar, mas agora tem cidade e natureza juntos, tem robôs, mas os humanos interagem com a natureza. Tem carro, mas ele ajuda a recolher o lixo. E o que a crianças diriam para Potter? Desculpa aí. A gente conseguiu muitas o muito. Obrigado por você ter voltado e avisado a gente.
Por fim, o que dizemos para uma criança sobre a bioética:  Bioética não é uma Ciência distante de você... A Bioética te enxerga... Vê teus sonhos, teus medos e as injustiças que te acometem. A Bioética te ouve... E ouve todos aqueles que vivem contigo – sem julgamentos. A Bioética traduz o que o outro não consegue entender - todos conversam sobre os problemas e juntos buscam uma solução boa para todos. A Bioética existe para cuidar de toda forma de vida, desta e de futuras gerações. Os valores e Princípios Bioéticos caminham juntos contigo e ajudam a te transformar em um cidadão crítico, autônomo, protagonista e responsável



Bioética e Educação Fundamental de Marta Fischer