Vegetarianismo e Veganismo e os Princípios da Utilidade e da Diferença

Série Ensaios: Bioética Ambiental

 

por   Jociane Casellas e Luann Vianna da Conceição

Psicóloga/Arte educador e mestrandos em Bioética




Reportagem recente, do Estadão, intitulada “Relatório revela que 70% do desmatamento da Amazônia ocorre para criação de gado”, traz dados importantes para reflexão sobre como o meio ambiente vem sendo usado em prol de benesses humanas somente. Dentre eles o fato de que o desmatamento vem ocorrendo em prol da pecuária: 70% da área desmatada na Amazônia é usada como pasto atualmente e 30% é destinado para produção de ração. Outro impacto mencionado é com relação a produção de carne sobre o planeta: quase 30% das áreas terrestres são destinadas à pastagem (isso é equivalente ao continente africano inteiro). Um terço de todas as terras aráveis são utilizadas para o cultivo de grãos para a engorda dos animais e isso equivale dizer que representa 90% do consumo mundial de água. Comparação bastante interessante feita neste relatório, mostra que para um kilo de carne são utilizados 15,4 mil litros de água ao longo da produção. Já para produção de um kilo de tomate são utilizados 210 litros, de batata são necessários 290 litros e de banana 800 litros. Esse cálculo do gasto de água para a produção dos alimentos é conhecido como pegada hídrica, para calcular a sua própria e compreender outras pegadas hídricas é só acessar o water calculator.

A sociedade Vegetariana Brasileira divulgou um relatório revelando que sem a necessidade de criar animais, seria possível dobrar a quantidade de alimentos de origem vegetal, disponíveis para consumo. Ou seja, o acesso seria facilitado ao consumo de vegetais para a maioria da população, bastando que, para isso, houvesse mais articulação entre governo, indústria e consumidor.

Para dialogar com os temas vegetarianismo e veganismo foram utilizadas as teorias do Utilitarismo de Jeremy Bentham e da Diferença de Rawls.


Inicialmente precisamos entender que o Utilitarismo é a quebra da visão deontológica e a importância da consequência das ações, visando o maior bem para o maior número de pessoas, não se importando da mesma maneira com a vida animal, que foi amplamente explorada para o bom proveito humano. O quadro muda com a introdução do Utilitarismo de preferência de Peter Singer, o qual aplica o conceito de senciência, permitindo assim a compreensão do não desejo de sofrimento e dor compartilhados pelos animais.

Segundo Rawls, há dois princípios de justiça que regulam a estrutura da sociedade: o princípio da liberdade igual e o princípio da diferença. No primeiro todos os indivíduos têm direito a um sistema de iguais liberdades fundamentais. Já no segundo, a desigualdade na distribuição de renda e riqueza só pode ocorrer em prol dos indivíduos menos favorecidos na sociedade.

De acordo com Rawls, é preciso reconhecer que as pessoas que nascem em condições menos favorecidas, tendem a ter perspectivas de vida diferentes de pessoas que nascem em condições melhores. Ao mesmo tempo que instituições sociais possuem o poder de favorecer algumas posições sociais em detrimento de outras.

O princípio da Diferença de Rawls propõe que sejam reguladas as desigualdades sociais e econômicas na sociedade, pois os indivíduos que partem de posições sociais menos favorecidas têm menos acesso e oportunidades do que aqueles que partem de condições mais favoráveis. Segundo Rawls ninguém nasce e permanece em classes menos favorecidas por merecer, isso seria fruto do acaso natural e das circunstâncias naturais sociais.


Dessa forma, visualizando a problemática abordada neste texto - o desmatamento em prol da pecuária - é possível pensar e propor um horizonte de melhor aproveitamento, sendo ele a transformação e o uso das terras desmatadas para o plantio visando abranger maior parcela da população que seria beneficiada. Nessa perspectiva seria possível um aumento na quantidade de alimento produzido e uma menor utilização hídrica para manutenção. Aliás, mesmo com a extensa criação de gado, pouco desse produto, a carne, retorna para a sociedade local, principalmente para os menos favorecidos. O veganismo e vegetarianismo são respostas viáveis para o problema, ainda mais levando em consideração as correntes de pensamento como o Utilitarismo e o Princípio da Diferença. Em curto prazo, mais famílias em situação de vulnerabilidade teriam acesso a alimentos de qualidade. Em longo prazo, é possível até mesmo o estudo para reflorestamento de certas áreas, permitindo uma maior proteção ao ecossistema.

Em outras palavras, sem a necessidade de criar animais, seria possível dobrar a quantidade de alimento disponível para consumo. É o que revela o relatório ‘Comendo o Planeta’, divulgado pela Sociedade Vegetariana Brasileira. O aumento da oferta calórica seria o suficiente para alimentar mais de 3,5 bilhões de pessoas.

Além disso, ao substituir os itens de origem animal pelas inúmeras alternativas vegetais de valor nutricional equivalente, reduz-se o desperdício de água e proteínas vegetais, o desmatamento, a desertificação, a extinção de espécies, a destruição de habitats, a emissão de gases de efeito estufa e a poluição das águas e do solo, e ao mesmo tempo, poupa dezenas de animais de uma vida de sofrimento crônico, como comenta Cynthia Schuck, na reportagem.


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental, tendo como base as obras: 

NEUBERGER, Daniele. The John Rawls difference principle as an alternative to utilitarianism in welfare economics. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015. Disponível em https://repositorio.ufsm.br/handle/1/662
OLIVEIRA, Wesley Felipe de. A importância moral da dor e do sofrimento animal na ética de Peter Singer. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Florianópolis, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/100488
PRAVA, Julio Cesar. Veganismo, utilitarismo e direitos: regras absolutas ou consequências dos atos? Disponível em: https://medium.com/veganismo-s/veganismo-utilitarismo-e-direitos-b45e5bb04e6d
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3ª Ed. Trad. Jussara Simões. São Paulo. Martins Fontes, 2008. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4076716/mod_resource/content/1/3.2%20-%20John%20Rawls%20-%20Um%20teoria%20de%20justi%C3%A7a.pdf
SCHUCK, Cynthia; RIBEIRO, Raquel. Comendo o Planeta: Impactos Ambientais da Criação e Consumo de Animais. 3ª Ed. Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), São Paulo, 2015. Disponível em https://www.svb.org.br/livros/comendo_o_planeta.pdf

O impacto do ser humano sobre o comportamento animal: evidências do confinamento de COVID19

 

Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Erica Cristina Bueno do Prado Guirro e Angela Palacio

Médica Veterinária e Docente e  Bióloga




Segundo o filósofo Peter Singer, senciência é a capacidade de sofrer e de sentir alegria de forma consciente. Ao admitir a senciência em animais surge a ética senciocêntrica, que rompe com o pensamento antropocêntrico tradicional e garante aos animais sencientes status moral.

Apesar disso, frequentemente o ser humano ainda se coloca como a espécie mais importante, capaz de dominar outras espécies para atender suas necessidades, o que torna o ser humano o maior dos predadores. Assim, os animais que são seres sencientes percebem que ocupam o lugar de presa em potencial e se afastam e se escondem da vista humana para evitar maiores riscos.

Em um território livre da presença humana, os animais convivem em equilíbrio. Quando o ser humano decide ocupar esse território, acaba fazendo com que os animais se desloquem de seu habitat natural, pois a presença humana representa grande risco à sua permanência e reprodução.

Todavia, o confinamento das pessoas decorrente da pandemia de COVID19 permitiu que os animais experimentassem viver sem a ameaça humana e reocupassem seus habitats momentaneamente.


Diversos jornais ao redor do mundo noticiaram que a diminuição do número de pessoas em ambientes essencialmente urbanos deu aos animais uma rara oportunidade de experimentar a vida livre do risco de se ter humanos por perto.

A significativa redução do turismo também beneficiou a vida animal, favorecendo reprodução animal em zoológicos e no ambiente selvagem.

No Brasil foi verificada a visita de cardumes muito grandes de sardinha. Os cardumes sempre estiveram presentes, mas há anos não se via cardumes de volume tão grande.

Certamente, essas observações comprovam como a presença humana interfere negativamente na vida animal selvagem e que é urgente que se repense a vida no planeta: este é o endereço de ampla biodiversidade e não apenas a casa do ser humano.

A bioética ambiental assume extrema relevância nessa abordagem, pois o equilíbrio, o respeito, a educação e o comprometimento com a vida no ecossistema são a único meio de manter a vida no planeta, incluindo a humana, já que atitudes antropocêntricas já mostraram insustentáveis a longo prazo.


O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental do PPGB, tendo como base as obras:



COIMBRA, D.; RECH, A.U. A superação do antropocentrismo: uma necessária reconfiguração da interface homem-natureza. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v.41, n.2, p.14-27, 2017.

FELIPE, S.T. Antropocentrismo, sencientismo e biocentrismo: Perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não humanos. Revista Páginas de Filosofia, v.1, n.1, p.2-30, 2009.

MEDEIROS, G.D.S. Ética, igualdade e defesa dos animais em Peter Singer. Revista Instante, v.2, n.1, p.22–41, 2020.

OLIVEIRA, G.D. A teoria dos direitos animais humanos e não-humanos, de Tom Regan. Ethica, v.3, n.3, p.283-299, 2004.

TOMAZ, C.; GIUGLIANO, L.G. A razão das emoções: um ensaio sobre “O erro de Descartes”. Estudos de Psicologia, v.2. n.2 p.407-411, 1997.

WASEM, F.; GONÇALVES, N.O. Bioética Ambiental: Pensando uma nova ética para as relações entre homem e natureza. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, n.54, p.127-148, 2011.