Algumas ideias sobre a complexa conexão entre consumo e vulnerabilidade

Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Ronaldo Lobo Gonçalves
Engenheiro Civil e Mestrando em Bioética PUCPR



ONG pede que Grande SP pague por poluição do Rio Tietê no interior - Poluição no rio Tietê causada por depósitos de produtos derivados do consumo humano (veja aqui


            Nesse ensaio procuraremos mostrar algumas relações introdutórias na complexa conexão entre consumo e vulnerabilidade. O ser humano é um agente moral na complexidade das relações sociais e ambientais. Como agente ativo afeta todas as interações com outros seres humanos e com o meio ambiente. Por outro lado, o ser humano é afetado pelas ações, atitudes ou falta de atitudes de outros seres humanos, das instituições sociais constituídas pelos agrupamentos sociais, bem como pelos efeitos dos fluxos dos ciclos dinâmicos da natureza (sem intervenção humana) ou das reações da natureza às alterações nessa dinâmica natural provocadas por ações humanas.
            Os seres humanos são diferentes nos seus interesses, nas suas capacidades pessoais de assimilar, de reagir, de enfrentar, quando afetados pelas demandas de outros seres humanos e da natureza. Nesse sentido são seres vulneráveis em diferentes graus. Podemos, em geral, considerar essa vulnerabilidade em duas dimensões:

- Vulnerabilidade primária: aquela que decorre da dimensão antropológica da existência humana. A vida é frágil. O ser humano, na constituição biológica, está predisposto à perturbações diversas, orgânicas, inclusive à morte.

- Vulnerabilidade secundária: decorrente da dimensão cultural e contingências da existência humana. Onde é afetado por circunstâncias desfavoráveis, adversas, como: pobreza, falta de recursos mínimos à sua sobrevivência, falta de educação, dificuldades geográficas, doenças crônicas, e outras.

            Na complexidade dessas relações talvez se possa incluir a questão do consumo na medida em que é uma necessidade natural para suprir a sobrevivência orgânica do ser humano, bem como um produto cultural ampliado pelo desenvolvimento do comércio, da revolução industrial, conhecimento científico-tecnológico e dos meios de comunicação e propaganda.

            O ser humano é afetado pela escassez de água e alimentos (vide reportagem 2 abaixo) e essa falta de um consumo mínimo acarreta graves consequências para sua saúde e sobrevivência. Por outro lado, o excesso de consumo, sensibilizado pelo excesso de produção e indução ao consumo, também pode afetar a sua saúde, ampliar as desigualdades sociais e acarretar prejuízos à natureza, tanto pelos meios de produção que são utilizados atualmente, acarretando poluição ao meio ambiente (vide reportagem 1, como pelo uso acelerado de recursos naturais não renováveis e o desmatamento de florestas e áreas de reservas naturais para a exploração agropecuária e madeireira.

            A visão da natureza não é mais de uma fonte inesgotável de recursos e que não pode ser afetada pela ação humana, mas ao contrário, pela escala que o ser humano alcançou culturalmente, pode afetar significativamente o fluxo dinâmico da natureza. Assim, a vulnerabilidade da natureza, deve ser incluída cada vez mais nas reflexões, discussões a respeito das ações humanas sobre a vida animal, vegetal e sobre os demais integrantes da natureza como os minerais, a água, o ar.

            Como se observa no ensaio acima, as relações dos agentes morais são bidirecionais, complexas, afetam e são afetados pelo consumo, e em cada contexto, dentro do princípio da vulnerabilidade. Na figura abaixo indicamos esquematicamente as relações propostas acima:


            Eu como engenheiro e futuro bioeticista acredito que o consumo consciente é a chave para equilibrar essa ação prática humana e o princípio da vulnerabilidade. Ou seja, é possível consumir buscando a sustentação básica da vida e o conforto social. A natureza é mentora. A principal fonte de conhecimento e recursos necessários à nossa sobrevivência e bem-estar. Nós temos um dever para com a natureza e os outros seres humanos, portanto uma obrigação moral. Quanto mais compreendermos e nos conscientizarmos dessa conexão e interdependência entre o ser humano e a natureza, mais harmônica será a prática do consumo. Quanto compreendermos nosso pertencimento à humanidade, maior a nossa consciência planetária. Alcançar esse estágio, passa pela educação, não de apenas decorar dados, conceitos e definições, mas uma educação que promova a reflexão crítica e que sensibilize ao agir consciente. A bioética ambiental, nesse sentido tem uma grande contribuição a fazer.   

  O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do programa PPGB, tendo como base nas obras:

FISCHER, Marta Luciane, SGANZERLA, Anor, CUNHA, Thiago, SANTOS, Juliana Zacarkin dos, RENK, Valquíria. Da ética ambiental à bioética ambiental: antecedentes, trajetórias e perspectivas.  Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de janeiro. V. 24. N.2, abr.-jun. 2017, p.391-409. Acesso em: 24 set 2017.

 SGANZERLA, Anor, ROSANELI, Caroline Filla, CINI, Ricardo de Amorim. Categorização dos sujeitos em condição de vulnerabilidade: uma revisão na perspectiva da bioética. Revista Iberoamericana de Bioética, nº 05, p.01-16, 2017. Acesso em: 09 nov 2017.



SGANZERLA, Anor. SCHRAMM. Fermin Roland. Fundamentos da Bioética: Série Bioética. Vol.3. Curitiba: Editora CRV, 2016

SANCHES, Mario Antonio; GUBERT, Ida Cristina (Org.). Bioética e Vulnerabilidades. Curitiba: Editora UFPR, 2012.

O Princípio Do Comunitarismo Na Gestão Da Crise Hídrica


Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Mario Sergio Cunha Alencastro

Engenheiro com doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento


            O relatório “Água para um Mundo Sustentável” divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015, alerta para o fato de que cerca de 30 países enfrentarão crises hídricas de alto risco nos próximos anos e que as reservas hídricas do mundo podem encolher 40% até 2030. O estudo, cujos dados foram obtidos a partir de medidas de demanda e a disponibilidade de água em 167 países, apresenta evidências de que aproximadamente um bilhão de cidadãos no mundo não têm acesso a um abastecimento adequado de água (que seria de pelo menos 20 litros diários a uma distância de até um quilômetro). O relatório apresenta outros dados alarmantes: 1,2 bilhão de pessoas (35% da população mundial) não têm acesso a água tratada; 1,8 bilhão (43% da população) não contam com serviços adequados de saneamento básico; 10 milhões de pessoas morrem anualmente em decorrência de doenças intestinais transmitidas por água insalubre.



As mudanças climáticas, por conta da alteração das estações de chuva, aumento de temperatura e as secas prolongadas, que comprometem o ciclo hidrológico e a consequente recarga dos aquíferos, contribuem em muito para a crise hídrica que afeta o planeta como um todo. Entretanto, há de se ressaltar que o consumo crescente de água, a poluição e degradação das reservas hídricas, bem como a ausência de infraestruturas básicas, são fatores determinantes no processo.

Um detalhe interessante é a constatação de que a crise hídrica chega a ser problema mesmo em países ou localidades do mundo que apresentam certa disponibilidade de água. Isso acontece por questões econômicas, sobretudo em países periféricos, onde os problemas relativos à falta de recursos afetam os investimentos em sistemas de captação, armazenamento e distribuição da água para a população e atividades produtivas. O Brasil não foge à regra.


No que tange ao consumo, de acordo com Machado e Torres (2012), o uso agrícola é responsável por 70,1% do consumo dos recursos hídricos no país, cabendo ao uso industrial 20%. Sobra apenas 9,9% para o abastecimento doméstico. É evidente então que os maiores consumidores dos recursos disponíveis são os setores e atividades ligadas ao agronegócio.

Além disso, segundo o relatório da ONU já citado, o Brasil está entre os países que mais registraram impacto ambiental após alterar o curso natural de rios. As mudanças nos fluxos naturais foram feitas para a construção de represas ou usinas hidrelétricas. Entre as consequências dos desvios, estão uma maior degradação dos ecossistemas, com aumento do número de espécies invasoras, além do risco de assoreamento.

Ainda em relação ao agronegócio cabe ressaltar alguns pontos importantes, tais como apresentados pelo engenheiro agrônomo Osvaldo Aly Junior (2017) num artigo muito sugestivo publicado no jornal “Le Monde Diplomatic”. Segundo o autor, ao se analisar, por exemplo, o aumento no volume das exportações brasileiras de soja, carne e açúcar, deve-se considerar o aumento do volume de água embutido nessa produção e seus impactos ambientais. Estima-se que entre 1997 e 2005, o volume de água empregado na produção e exportação apenas nesses três produtos saltou de 27,1 bilhões de litros para 460,1 bilhões de litros.

Aly Junior, chama a atenção para o fato de que o avanço do desmatamento da Amazônia, a pressão agroexportadora e as mudanças climáticas colocam em risco essas vantagens comparativas naturais, já que a previsão é o aumento de períodos maiores de seca e crise hídrica para nossa população. Esse quadro elevará a demanda das águas superficiais e subterrâneas e poderá afetar a vida dos rios perenes e dos ecossistemas, já que são as águas subterrâneas que perenizam o leito dos rios e são exploradas quase sem controle pelos órgãos estaduais.

Diante de situações como estas é forçoso concluir que é preciso melhorar a gestão da água a fim de garantir sua perenidade e qualidade para qualidade de vida da população mundial. Nesse sentido, é comum, quando se aborda a questão da crise hídrica, canalizar as iniciativas para as ações individuais. Campanhas são promovidas pelos governos e veiculadas na grande mídia no sentido de que cabe ao cidadão poupar água, devendo adotar atitudes ambientalmente corretas. Todos precisam ser econômicos no uso dos recursos disponíveis, a partir de hábitos frugais de higiene pessoal, na limpeza da casa, na irrigação de hortas e jardins, etc. Em casos extremos os governos locais apelam para o rodízio e/ou racionamento de água.  Campanhas educativas são desenvolvidas e até inovações como o aproveitamento de água da chuva e reutilização de águas usadas são incentivadas. Tudo isso é muito importante, mas será que resolve o problema? Provavelmente não.

A gestão dos recursos hídricos deve ser vetor para o desenvolvimento socioeconômico e redução da pobreza e deve acontecer em sintonia com os interesses das comunidades envolvidas. Mas como fazê-lo? Talvez algumas orientações possam ser prospectadas à luz Princípio do Comunitarismo.

Surgido na década de 1980, o Comunitarismo é um conceito político, moral e social que se contrapõe a determinados aspectos do individualismo e em defesa dos fenômenos como a sociedade civil. Para os comunitaristas, a comunidade precisa ser respeitada e protegida e, para tanto, é necessário prestar atenção às práticas e valores compartilhados dentro de cada sociedade.

Segundo Amitai Etzioni (1973), no Comunitarismo, há sempre a necessidade de se tentar o equilíbrio entre direitos e responsabilidades, e entre autonomia e ordem para a manutenção de uma boa sociedade. Reconhece então que os indivíduos são afetados simultaneamente por forças antagônicas: de um lado, as necessidades individuais; do outro a dimensão social da existência humana. A preservação da liberdade individual depende da manutenção ativa de instituições da sociedade civil onde os indivíduos possam adquirir um senso de responsabilidade, tanto pessoal quanto cívica e coletiva. Ou seja, o equilíbrio entre os direitos comunitários e individuais é o ponto de partida para a discussão de questões de natureza ética.

Desta feita, o princípio do “bem comum” é um elemento central no Comunitarismo. Em outras palavras, os indivíduos, embora mantendo a sua livre vontade, vivem em comunidade compartilhando valores e conceitos comuns, abrindo mão de se orientar exclusivamente pelo seu próprio interesse, fazendo prevalecer a necessidade da predominância do todo sobre as partes, ou seja, das comunidades e sociedades sobre os indivíduos. Nesta perspectiva, uma pré-condição necessária à liberdade e aos direitos é a partilha de valores comuns no interior de uma determinada sociedade (Donlevy, 2008; Etzioni, 1995).

            Antonio Argandoña (1998) sugere que, aplicado a situações práticas, o Princípio do Bem Comum trazido pelo Comunitarismo serve como fundamento ético para que os vários stakeholders (as partes interessadas) contribuam para o bem da comunidade que integram, mas também para que recebam os frutos da sua contribuição. No caso da gestão dos recursos hídricos, o envolvimento comunitário aconteceria por meio de debates públicos, ações de conscientização, criação de fóruns de discussão, pareceres de especialistas, dentre outros.

A gestão consensual e comunitária dos recursos hídricos, pode ser exemplificada pelos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH). Em atividade desde 1988, são organismos colegiados que fazem parte do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.  Possuem uma composição diversificada e democrática que permite que todos setores da sociedade com interesse sobre a água na bacia tenham representação e poder de decisão sobre sua gestão. Os membros que integram o colegiado dos comitês são escolhidos entre seus pares, sejam eles dos diversos setores usuários de água, das organizações da sociedade civil ou dos poderes públicos.

O contato com a bioética me fez perceber que as soluções técnicas per si não são capazes de fazer frente à crise hídrica, visto que envolvem questões complexas de natureza social, econômica, política e ética. Tudo isso implica num amplo diálogo com a sociedade no sentido da busca das melhores alternativas que, via de regra não podem ser desenhadas nas pranchetas dos engenheiros. Em outras palavras, os interesses coletivos devem ser um elemento decisivo na gestão dos recursos hídricos.


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental, tendo como base as obras:


ALY JUNIOR, Osvaldo. Mercantilização na natureza. Água e agronegócio: uma relação a ser mais bem examinada  – Le Monde Diplomatic - 2 de junho de 2017. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2018.

ARGANDOÑA, Antonio. Journal of Business Ethics (1998) 17: 1093. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2018.

COMITÊ DE BACIAS HIDROGRÁFICAS - CBH. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2018.

DONLEVY, J.K. The Common Good: The Inclusion of non-Catholic Students in Catholic Schools. Journal of Beliefs & Values. (2008). p. 161- 171. Disponível em: Acesso em: 26 fev. 2018.

ETZIONI, A. (1995) The Attack on Communiy – The Grooved Debate. “Society” (Julho/Agosto 1995). Disponível em: < https://www2.gwu.edu/~ccps/etzioni/A239.html>. Acesso em: 26 fev. 2018.

ETZIONI, A. A Communitarian note on stakeholder theory. Business Ethics Quarterly, [S.l.], v.8, n.4, p.679-91, 1998. Disponível em: Acesso em: 26 fev. 2018.

ETZIONI, A. Organizações Modernas. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1973.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONUBR – Nações Unidas Brasil. Até 2030 planeta pode enfrentar déficit de água de até 40%, alerta relatório da ONU. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2018.

Sacrifício de animais em rituais religiosos e o princípio da senciência: mais que uma questão ética ou jurídica uma implicação de liberdade, valores religiosos e culturais.



Série Ensaios: Bioética Ambiental


Por Elisângela de Oliveira Cardozo, 

Pedagoga, Especialista em pedagogia e letramento,

Educação especial inclusiva, Gestão financeira e Recursos Humanos.













No ano de 2016, as ruas da cidade de Daca em Bangladesh, foram inundadas por rios de sangue e embora este fato tenha ocorrido em setembro de 2016, as imagens ainda circulam pela internet e continuam a causar repulsa entre os ativistas que brigam pela extinção definitiva dos rituais de sacrifício com animais.
O fenômeno impressionante é resultado da combinação entre o sangue de vacas, cabras e outros animais sacrificados em um festival, durante a celebração do Eid-al-Adah, conhecido como “Dia do Sacrifício” na religião muçulmana. Um número enorme de sacrifícios de animais marca o festival islâmico de Eid al-Adha, e dessa vez transformou as ruas da capital de Bangladesh em rios de sangue.
Autoridades em Daca tinham designado áreas na cidade onde os moradores podiam abater os animais, mas chuvas pesadas causaram um caos.
De acordo com a tradição, a carne dos animais sacrificados é compartilhada entre pessoas pobres que não possuem condições de sacrificar animais como um gesto de generosidade para promover a harmonia social.
A palavra sacrifício (do LatimSacrificium; literalmente: "ofício sagrado"), também conhecido como imolaçãooblaçãooblataoferenda ou oferta, é a prática de oferecer aos deuses, na qualidade de alimento, a vida (designada como "vítima") de animaiscolheitas e plantações, como ato de propiciação ou culto.
Outras designações tratam a palavra sacrifício - substantivo masculino como oferenda no sentido de um ritual a uma divindade que se caracteriza pela imolação real ou simbólica de uma vítima ou pela entrega da coisa ofertada.
A prática de rituais de sacrifício de animais em cultos religiosos não é nada atual, ou seja, historicamente esta prática vem sendo utilizada desde os tempos de Jesus Cristo, como podemos encontrar várias narrativas no antigo testamento, porém de acordo com os estudiosos e religiosos católicos esta prática foi abolida pela igreja católica com o sacrifício supremo do próprio Cristo, sendo assim a prática de sacrifício não é mais permitida na igreja católica desde o novo testamento.
Porém algumas religiões como Hinduísmo, Islamismo entre outras religiões muçulmanas continuam a utilizar o ritual de sacrifício de animais em seus cultos, mesmo tendo encontrado bastante resistência na atual sociedade.
 No Brasil algumas religiões afro-brasileiras como Candomblé da Bahia, Xamgô do Recife, Batuque do Rio Grande do Sul entre outras, ainda utilizam estes rituais de sacrifício, porém esta não é uma prática de todas as religiões afrodescendentes, a Umbanda mesmo tendo raízes nas religiões indígenas, africanas e cristã não utiliza o sacrifício de animais em seus cultos.
No candomblé os animais são considerados como oferendas aos orixás. Estas oferendas são uma forma ritualística pela qual os praticantes dessa religião oferecem amalás (comidas de santo) aos orixás, que podem ser cruas ou não e "partes" de animais sacrificados. Estas partes são chamadas "forças" ou "axé" dos animais. São elas as patas, as asas, a cabeça, a cauda, o coração, o pulmão e a moela.
Segundo Baba Egbé da Casa de Oxumarê: “No candomblé, não se pode comer em uma festividade de Orixá um bicho que não tenha sido morto da maneira tradicional. No matadouro [industrial, por exemplo] não há respeito na morte de animais. É impossível manter as práticas do candomblé sem a sacralização dos animais.”
Acredita-se que o sangue é a fonte vital da vida e através dela o orixá retira suas energias para poder trabalhar. Mas esta é a única maneira do orixá conseguir energia? Não. Existem diversos tipos de oferendas onde o mesmo irá retirar a energia para trabalhar em benefício do seu filho, no entanto, acredita-se que a energia extraída através do sangue é tão grande que o orixá poderá atender ao pedido rapidamente. 
Porém o Brasil vem ganhando notoriedade no que tange as discussões sobre estas práticas.
Umas das discussões mais comuns e também podemos dizer a mais antiga é tratada na Constituição Federal Brasileira de 1988 vigente, que em seu artigo 5º, parágrafo 6° traz a seguinte consideração:
 VI -  é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Analisando este tema sob esta ótica, as tradições religiosas são asseguradas e suas práticas devem ser consideradas legais, independente de quaisquer outras discussões, porém esta mesma constituição em um capítulo que trata de meio ambiente no art. 225, parágrafo 7°:
 § 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis às práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.
Neste caso se a lei define que o animal deve ter seu bem estar assegurado, a mesma lei traz um grande viés e muitas situações de conflitos que já vem sendo discutidos nos tribunais.
Vários estudiosos e defensores dos animais defendem que antes do direito a liberdade de culto, deve estar o respeito aos direitos morais básicos do outro, neste caso o outro como um ser vivo, que já foi comprovado através de vários estudos é um ser senciente, ou seja, senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. Em outras palavras: é a capacidade de ter percepções conscientes do que lhe acontece e do que o rodeia.  Embora segundo Gomes (2010) no ordenamento jurídico brasileiro, tradicionalmente, os animais são entendidos como coisas, o que quer dizer que “estão disciplinados como propriedade dos humanos e que estes podem usar, gozar e dispor, inclusive doá-los e vendê-los”.
Porém no Brasil no início do século XX ocorreu uma grande explosão de sociedades protetoras de animais e estes ativistas foram responsáveis por uma mudança significativa nas legislações ao que tange os direitos dos animais.
Alguns Estados brasileiros contemplaram em suas Constituições, o direito dos animais a não serem tratados com crueldade e alguns, no caso Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo foram além e editaram leis “bem-estaristas” específicas de proteção aos animais.
Em 2003, a deputada estadual Regina Becker (PDT) propôs votação no Legislativo para um projeto de LEI que proibia o sacrifício de animais pelas religiões afro-brasileiras com a justificativa do sofrimento causado aos animais e “uma questão de saúde pública”, devido à decomposição dos mesmos em locais públicos, como ruas e praças.
Ainda em 2003 o Rio Grande do Sul editou um código de proteção aos animais, lei 11915/2003, no mesmo ano o Paraná seguindo os passos dos vizinhos, instituíram o código de defesa dos animais lei 14037/2003. E assim outros estados foram criando novas normas para a proteção da vida dos animais, embora de forma tímida e com pouca adesão.
Apesar da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul ter derrubado o relatório favorável a proibição do sacrifício de animais em rituais religiosos, a discussão ainda continua, já que o processo espera o julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Sendo assim, podemos dizer que esta briga ainda está longe de terminar, pois desde novembro de 2016 está sob análise no Supremo Tribunal Federal, uma ação que pode tornar mais difícil que seguidores de religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, realizem sacrifícios de animais em seus cultos e embora esta seja uma ação ajuizada pelo Estado do Rio Grande do Sul, o resultado provavelmente poderia abrir vários precedentes para os outros estados que estão na mesma situação.


Muitos praticantes destas religiões acreditam que estas oposições são puramente perseguição contra as religiões afro- brasileiras e nada tem a ver com a proteção dos animais , já que segundo eles, o abate é feito de forma rápida e sem dor, seguindo os padrões instituídos de não sofrimento  aos animais e reiteram ainda que a carne do animal abatido é consumida pela comunidade e muitas vezes distribuída aos mais necessitados. Estas igrejas argumentam que as carnes abatidas nos cultos são as mesmas disponíveis no mercado, que em um mundo capitalista onde o lucro é o único interesse, este sim deveria ser fiscalizada.


Nesta discussão infinda onde acredito que seja difícil defender um único ponto de vista, pois a religião de cada indivíduo faz parte unicamente de suas crenças e não podem ser julgadas ou subjugadas por qualquer outro cidadão que não tenha a mesma fé, relembro dois pontos de vistas completamente distintos de dois nomes profundamente  importantes  para a Bioética:  
 1° Kant, para quem os animais não eram considerados seres autoconscientes, e por esta razão, existiriam apenas como instrumento destinado a um fim, que era satisfazer o homem, os animais eram tratados como coisas. Deste modo, os humanos possuiriam apenas deveres indiretos para com eles, pois o seu verdadeiro fim é a humanidade (SILVA, p. 04),
Peter Singer, que defende que os interesses individuais dos animais não-humanos merecem reconhecimento e proteção e alega ainda que as formas mais comuns que humanos usam animais não são justificáveis, porque os benefícios para os humanos são ignoráveis comparado à quantidade de dor animal necessária para construção desses benefícios. E também porque os mesmos benefícios poderiam ser obtidos de formas que não envolvessem o mesmo grau de sofrimento. No entanto sua argumentação se aproxima do bem-estarismo clássico, chegando a defender a carne orgânica e a experimentação animal.


Além disso, não podemos nos esquecer de que ainda estamos travando grandes batalhas com a indústria farmacêutica, que continua sacrificando animais de forma cruel e criminosa em nome da ciência e da saúde.


Neste caso, se comparado o número de animais mortos em rituais religiosos no Brasil com o número de animais mortos para fins de pesquisa clínica e para o consumo humano nas grandes redes frigoríficas, o número seria praticamente insignificante. Lembramos que no início do texto a notícia da matança excessiva que chocou a sociedade não é no Brasil e sim em Bangladesh, os muçulmanos que vivem no Brasil não utilizam esta prática. Neste caso a opção escolhida para substituir o ritual de sacrifício é distribuir carne como doação para seus familiares, vizinhos, amigos e pobres. Nessa ocasião, visitam-se familiares e amigos aos quais se falta com a atenção durante o ano.
Enfim, esta é mais uma daquelas discussões bioéticas que será praticamente impossível se chegar a um consenso comum, já que estamos falando de pessoas diferentes, com crenças, pensamentos, necessidades diferentes e mais uma porção de outros argumentos que não podem ser desconsiderados de acordo com cada contexto e cada sociedade, mas se não houvesse um conflito não seria uma questão bioética.
Desta forma, acredito que o melhor caminho ainda é o diálogo entre todos os atores envolvidos na situação, já que temos um problema bioético da liberdade religiosa, da liberdade de culto a própria religião, a questão do Estado Laico que não pode se manifestar no sentido de induzir ou abolir uma ou outra prática religiosa e ainda a questão que considero mais polêmica, a proteção dos animais que como já foi comprovado por vários pesquisadores em vários artigos científicos, são seres que sentem e neste caso não deveriam estar a serviço da raça humana.
Diante de tudo o que foi pesquisado, acredito que a melhor resposta por enquanto seja esta animação, bem humorada, mas a mais certa possível diante desta realidade, o respeito as crenças, o respeito as diferenças e procurar ser o mais gentil possível para com todos os seres humanos, só assim poderemos ser capazes de ser gentis com os demais animais.




O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do Programa PGB tendo como base as obras:


AMORIM, Malú Flávia Pôrto. Sacrifícios rituais em religiões afro-brasileiras: a proteção jurídica aos animais não humanos frente a valores religiosos e culturaisRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19n. 40824 set. 2014. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2018.
AMORIM, Malú Flávia Pôrto. Sacrifícios rituais em religiões afro-brasileiras: a proteção jurídica aos animais não humanos frente a valores religiosos e culturaisBoletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 13, no 1126. Disponível em: Acesso em: 17  mar. 2018.
ARAGÃO, Gilbraz. Sacrifícios e Religiões – Os sacrifícios de animais devem ser proibidos em rituais? Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife – Universidade Católica de Pernambuco. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2018.
BARBOSA, Renan. STF terá que decidir se sacrifício de animais para cultos religiosos é crueldade. Gazeta do Povo. Disponível em: . Acesso: 17 de mar. 2018.


FÁBIO, André Cabette. Como está a discussão sobre a legalidade do sacrifício religioso de animais. Jornal NEXO. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2018.
Got Questions. Por que Deus exigia sacrifícios de animais no Velho Testamento? Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2018.
LUCHETE, Felipe. Liberdade de Culto - Lei não pode proibir sacrifício religioso de animais, declara TJ-SP. Consultor Jurídico. Disponível em:< https://www.conjur.com.br/2017-mai-17/lei-nao-proibir-sacrificio-religioso-animais-decide-tj-sp>. Acesso em: 17 mar. 2018.
O Globo. Por que a capital de Bangladesh está inundada por “rios de sangue”? – Enchente vermelha tomou as ruas da cidade durante celebração do “Dia do Sacrifício”. Disponível em: . Acesso em: 17 de mar. 2018.
RAMALHO, Renan. Após vetar vaquejada, Supremo vai julgar sacrifício religioso de animais. G1 – Globo. Disponível em: . Acesso em: 17 de mar. 2018.
RIBEIRO, Djamila. A hipocrisia contra as religiões de matriz africana foi sacrificada - A assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul rejeita projeto que proíbe sacrifício de animais em rituais religiosos. Carta Capital. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-hipocrisia-contra-as-religioes-africanas-foi-sacrificada-793.html>. Acesso em: 17 de mar. 2018.


ULA – União Libertária Animal. Grupo Abolicionista de Educação em Direitos Animais do Rio de Janeiro. Animais usados para rituais religiosos. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2018.