Série Ensaios: Bioética
Ambiental
Por
Mario Sergio Cunha Alencastro
Engenheiro
com doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento
O relatório “Água para um Mundo Sustentável” divulgado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) em 2015, alerta para o fato de que cerca de 30 países enfrentarão
crises hídricas de alto risco nos próximos anos e que as reservas hídricas do
mundo podem encolher 40% até 2030. O estudo, cujos dados foram obtidos a partir
de medidas de demanda e a disponibilidade de água em 167 países, apresenta
evidências de que aproximadamente um bilhão de cidadãos no mundo não têm acesso
a um abastecimento adequado de água (que seria de pelo menos 20 litros diários
a uma distância de até um quilômetro). O relatório apresenta outros dados
alarmantes: 1,2 bilhão de pessoas (35% da população mundial) não têm acesso a
água tratada; 1,8 bilhão (43% da população) não contam com serviços adequados
de saneamento básico; 10 milhões de pessoas morrem anualmente em decorrência de
doenças intestinais transmitidas por água insalubre.
As
mudanças climáticas, por conta da alteração das estações de chuva, aumento de
temperatura e as secas prolongadas, que comprometem o ciclo hidrológico e a consequente recarga dos aquíferos, contribuem em muito para a crise
hídrica que afeta o planeta como um todo. Entretanto, há de se ressaltar que o
consumo crescente de água, a poluição e degradação das reservas hídricas, bem
como a ausência de infraestruturas básicas, são fatores determinantes no processo.
Um
detalhe interessante é a constatação de que a crise hídrica chega a ser
problema mesmo em países ou localidades do mundo que apresentam certa
disponibilidade de água. Isso acontece por questões econômicas, sobretudo em países
periféricos, onde os problemas relativos à falta de recursos afetam os
investimentos em sistemas de captação, armazenamento e distribuição da água
para a população e atividades produtivas. O Brasil não foge à regra.
No
que tange ao consumo, de acordo com Machado e Torres (2012), o uso agrícola é responsável por 70,1% do consumo
dos recursos hídricos no país, cabendo ao uso industrial 20%. Sobra apenas 9,9%
para o abastecimento doméstico. É evidente então que os maiores consumidores
dos recursos disponíveis são os setores e atividades ligadas ao agronegócio.
Além
disso, segundo o relatório da ONU já citado, o Brasil está entre os países que
mais registraram impacto ambiental após alterar o curso natural de rios.
As mudanças nos fluxos naturais foram feitas para a construção de represas ou
usinas hidrelétricas. Entre as consequências dos desvios, estão uma maior
degradação dos ecossistemas, com aumento do número de espécies invasoras, além
do risco de assoreamento.
Ainda
em relação ao agronegócio cabe ressaltar alguns pontos
importantes, tais como apresentados pelo engenheiro agrônomo Osvaldo Aly Junior (2017) num artigo muito sugestivo
publicado no jornal “Le Monde Diplomatic”. Segundo o autor, ao se analisar, por
exemplo, o aumento no volume das exportações brasileiras de soja, carne e
açúcar, deve-se considerar o aumento do volume de água embutido nessa produção
e seus impactos ambientais. Estima-se que entre 1997 e 2005, o volume de água
empregado na produção e exportação apenas nesses três produtos saltou de 27,1
bilhões de litros para 460,1 bilhões de litros.
Aly
Junior, chama a atenção para o fato de que o avanço do desmatamento da Amazônia, a pressão agroexportadora e as
mudanças climáticas colocam em risco essas vantagens comparativas naturais, já
que a previsão é o aumento de períodos maiores de seca e crise hídrica para
nossa população. Esse quadro elevará a demanda das águas superficiais e
subterrâneas e poderá afetar a vida dos rios perenes e dos ecossistemas, já que
são as águas subterrâneas que perenizam o leito dos rios e são exploradas quase
sem controle pelos órgãos estaduais.
Diante
de situações como estas é forçoso concluir que é preciso melhorar a gestão da
água a fim de garantir sua perenidade e qualidade para qualidade de vida da
população mundial. Nesse sentido, é comum, quando se aborda a questão da crise
hídrica, canalizar as iniciativas para as ações individuais. Campanhas são promovidas pelos governos e
veiculadas na grande mídia no sentido de que cabe ao cidadão poupar água,
devendo adotar atitudes ambientalmente corretas. Todos precisam ser econômicos
no uso dos recursos disponíveis, a partir de hábitos frugais de higiene
pessoal, na limpeza da casa, na irrigação de hortas e jardins, etc. Em casos
extremos os governos locais apelam para o rodízio e/ou racionamento de
água. Campanhas educativas são
desenvolvidas e até inovações como o aproveitamento de água da chuva e
reutilização de águas usadas são incentivadas. Tudo isso é muito importante,
mas será que resolve o problema? Provavelmente não.
A
gestão dos recursos hídricos deve ser vetor para o desenvolvimento
socioeconômico e redução da pobreza e deve acontecer em sintonia com os
interesses das comunidades envolvidas. Mas como fazê-lo? Talvez algumas orientações
possam ser prospectadas à luz Princípio do Comunitarismo.
Surgido
na década de 1980, o Comunitarismo é um conceito político, moral e social que
se contrapõe a determinados aspectos do individualismo e em defesa dos
fenômenos como a sociedade civil. Para os comunitaristas, a comunidade precisa
ser respeitada e protegida e, para tanto, é necessário prestar atenção às
práticas e valores compartilhados dentro de cada sociedade.
Segundo
Amitai Etzioni (1973), no Comunitarismo, há sempre a
necessidade de se tentar o equilíbrio entre direitos e responsabilidades, e entre autonomia e ordem para a manutenção de uma boa sociedade.
Reconhece então que os indivíduos são afetados simultaneamente por forças
antagônicas: de um lado, as necessidades individuais; do outro a dimensão
social da existência humana. A preservação da liberdade individual depende da
manutenção ativa de instituições da sociedade civil onde os indivíduos possam
adquirir um senso de responsabilidade, tanto pessoal quanto cívica e coletiva.
Ou seja, o equilíbrio entre os direitos comunitários e individuais é o ponto de
partida para a discussão de questões de natureza ética.
Desta
feita, o princípio do “bem comum”
é um elemento central no Comunitarismo. Em outras palavras, os indivíduos,
embora mantendo a sua livre vontade, vivem em comunidade compartilhando valores
e conceitos comuns, abrindo mão de se orientar exclusivamente pelo seu próprio
interesse, fazendo prevalecer a necessidade da predominância do todo sobre as
partes, ou seja, das comunidades e sociedades sobre os indivíduos. Nesta
perspectiva, uma pré-condição necessária à liberdade e aos direitos é a
partilha de valores comuns no interior de uma determinada sociedade (Donlevy,
2008; Etzioni, 1995).
Antonio
Argandoña (1998) sugere
que, aplicado a situações práticas, o Princípio do Bem Comum trazido pelo
Comunitarismo serve como fundamento ético para que os vários stakeholders (as partes interessadas) contribuam
para o bem da comunidade que integram, mas também para que recebam os frutos da
sua contribuição. No caso da gestão dos recursos hídricos, o envolvimento
comunitário aconteceria por meio de debates públicos, ações de conscientização,
criação de fóruns de discussão, pareceres de especialistas, dentre outros.
A
gestão consensual e comunitária dos recursos hídricos, pode ser exemplificada
pelos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH). Em atividade desde 1988, são organismos
colegiados que fazem parte do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos. Possuem uma composição
diversificada e democrática que permite que todos setores da sociedade com
interesse sobre a água na bacia tenham representação e poder de decisão sobre
sua gestão. Os membros que integram o colegiado dos comitês são escolhidos
entre seus pares, sejam eles dos diversos setores usuários de água, das
organizações da sociedade civil ou dos poderes públicos.
O
contato com a bioética me fez perceber que as soluções técnicas per si não são capazes de fazer frente à
crise hídrica, visto que envolvem questões complexas de natureza social,
econômica, política e ética. Tudo isso implica num amplo diálogo com a
sociedade no sentido da busca das melhores alternativas que, via de regra não
podem ser desenhadas nas pranchetas dos engenheiros. Em outras palavras, os
interesses coletivos devem ser um elemento decisivo na gestão dos recursos
hídricos.
O
presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental, tendo como
base as obras:
ALY JUNIOR, Osvaldo.
Mercantilização na natureza. Água e
agronegócio: uma relação a ser mais bem examinada – Le Monde Diplomatic - 2 de junho de 2017.
Disponível em:
.
Acesso em: 26 fev. 2018.
ARGANDOÑA, Antonio. Journal of Business Ethics (1998) 17:
1093. Disponível em: .
Acesso em: 26 fev. 2018.
COMITÊ DE BACIAS
HIDROGRÁFICAS - CBH. Disponível em: .
Acesso em: 26 fev. 2018.
DONLEVY, J.K. The Common Good:
The Inclusion of non-Catholic Students in Catholic Schools. Journal of Beliefs & Values. (2008).
p. 161- 171. Disponível em:
Acesso em: 26 fev.
2018.
ETZIONI, A. (1995) The Attack on
Communiy – The Grooved Debate. “Society”
(Julho/Agosto 1995). Disponível em: <
https://www2.gwu.edu/~ccps/etzioni/A239.html>. Acesso em: 26
fev. 2018.
ETZIONI, A. A Communitarian note
on stakeholder theory. Business Ethics Quarterly, [S.l.], v.8, n.4,
p.679-91, 1998. Disponível
em:
Acesso em: 26 fev. 2018.
ETZIONI, A. Organizações Modernas. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, 1973.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS - ONUBR – Nações Unidas Brasil. Até
2030 planeta pode enfrentar déficit de água de até 40%, alerta relatório da ONU.
Disponível em:
.
Acesso em: 20 fev. 2018.
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