A Crise Hídrica De 2014/2015 Em São Paulo E O Princípio Da Soliedaridade: Contribuições Da Bioética Ambiental


Série Ensaios: Bioética Ambiental

por Julia Mezarobba Caetano Ferreira
Mestranda da Bioética

O Estado de São Paulo enfrentou, nos anos de 2014 e 2015, a pior crise hídrica de sua história. No entanto, a falta ou escassez de água é fenômeno recorrente que assola várias regiões do Brasil, de modo que o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal elaborou um Boletim Legislativo, a partir do conhecimento de nove especialistas, com o intuito de reunir informações básicas para a compreensão das principais questões imbricadas na crise hídrica em território brasileiro.
De acordo com as informações compiladas no boletim, as razões para a falta d’água não são meramente relacionadas à estiagem (insuficiência de chuva), mas sobretudo ao uso não eficiente dos recursos hídricos e à incapacidade  dos governos em manejar déficits temporários e excepcionais. Os especialistas compreendem que Políticas Públicas poderiam ser criadas de modo a assegurar o acesso à água para toda a população em momentos de crise hídrica.
Para o pesquisador Ivan Maia, embora o acesso à água potável não esteja explicitamente previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, tampouco na Constituição Federal do Brasil de 1988 enquanto Direito Fundamental, o acesso mínimo é condição sine qua non para o exercício de diversos direitos humanos essenciais, como o direito à vida, à saúde e ao bem-estar. Assim, o Estado deve ser responsável por seu provimento para toda a população.
Atualmente, o direito humano à agua potável é assegurado e retificado por diversos tratados, resoluções, legislações e outros documentos nacionais e internacionais; sendo um dos mais relevantes em nível mundial a Resolução A/RES/64/292, de 28 de julho de 2010, onde a ONU reconheceu expressamente o direito à água e ao saneamento enquanto fundamentais para a concretização dos demais direitos humanos. Entretanto, muitas vezes esse direito é violado, como no caso já mencionado da falta d’água no estado de São Paulo em 2014/2015.
Uma notícia publicada pela Revista Exame versão eletrônica demonstrou alguns dilemas éticos da crise hídrica supramencionada. Dentre eles, o iníquo acesso à agua tratada entre as diferentes zonas e classes sociais de São Paulo neste período. Geograficamente, os bairros mais periféricos e/ou mais elevados, onde, geralmente, classes menos favorecidas habitam, enfrentaram a falta d’água em função de redução na pressão da água praticada pela Sabesp, companhia de abastecimento do Estado de São Paulo, a fim de evitar o desperdício da água via vazamentos nas tubulações (vale lembrar que 37% da água tratada no Brasil é desperdiçada em razão de falhas, fraudes e ligações clandestinas nas tubulações).
Para além deste recorte geográfico apresentado, que delimita uma população mais atingida e vulnerada pela falta d’água, há também um claro recorte econômico no acesso à água tratada. De acordo com um estudo elaborado pelo instituto de pesquisas Datafolha, as pessoas que possuíam como renda até cinco vezes o salário mínimo vigente (ou seja, até R$3.620) no período da crise, tiveram o dobro de probabilidade de enfrentar cortes de água em relação àqueles que possuíam pelo menos dobro deste valor (ou seja, a partir de R$7.240 de renda).
A Bioética, conforme pensada inicialmente por Van Rensselaer Potter, nos anos 70, busca refletir sobre os problemas éticos da relação ser humano e meio ambiente, superando o antropocentrismo que dominava as ciências médicas e o bioecocentrismo que dominava as ciências bioecológicas (sobretudo a ética ambiental). Nesta conotação, uma das formas de atuação da Bioética é através de deliberações pautadas em referenciais teóricos que considerem todos os atores envolvidos e a complexidade inerente as questões relacionais entre ser humano e meio ambiente. Assim, a crise hídrica vivenciada pelo Estado de São Paulo em 2014/2015 é acontecimento a ser debatido pela Bioética.
Pesquisadores da Bioética, ao analisarem o referencial da Solidariedade, demonstram que o termo, na atualidade, é compreendido através do ideal de equidade e incorporação do diferente, inclusive através da igual repartição quantitativa de bens e posses. Nesta concepção, a solidariedade não é correlata a uma tolerância passiva, mas a um agir responsável e preocupado com o outro em particular e com a comunidade em geral.
Desta forma, a solidariedade pode ser um referencial precioso para pensar a crise hídrica em contextos modernos, concebendo a complexidade desta problemática através de uma abordagem sistêmica, crítica e que considere todos os atores envolvidos (meio ambiente, iniciativa privada, governo e população civil). A solidariedade, em sociedades cosmopolitas, surge da preocupação e do cuidado com os semelhantes, sobretudo daqueles em situações de vulnerabilidade social.
No caso da crise hídrica no Estado de São Paulo, o princípio da solidariedade, pensado a partir da equidade, poderia embasar políticas de tributação que fixassem taxas distintas para o consumo de água nos setores agrícola (responsável por 54% do consumo de água no Brasil), industrial (responsável por 17% do consumo) e pecuário (responsável por 11%) quando em comparação ao consumo urbano e rural. Ainda poderia ser pensada uma forma de tributação que considerasse a renda familiar da unidade de consumo urbana ou rural, desigualando para igualar e prevenir futuras crises da magnitude dessa enfrentada em 2014/2015.
Outra forma de aplicar o princípio da solidariedade seria, por exemplo, por intermédio de sanções à Sabesp pelo desperdício de água nos canos da própria empresa (a cada 5L de água tratada, 1L é perdido), de modo que fosse impelida a sanar esses vazamentos, garantindo para que a pressão da água se mantivesse de modo tal que todos tivessem acesso. Fazer com que a empresa se responsabilize pelas consequências de suas ações/omissões está de acordo com os pressupostos de uma responsabilidade solidária.
Assim, considera-se que a crise hídrica é temática complexa, abrangente e que não pode ser pensada de maneira reducionista e passiva, sendo de suma importância que os agentes afetados pela falta d’água, e também especialistas de diversas áreas, se unam em um debate bioético, que sopese além da solidariedade outros princípios e valores, para a elaboração de políticas que visem prevenir e amenizar a crise hídrica.

Esse ensaio foi elaborado para Disciplina de Bioética Ambiental