Sacrifício de animais em rituais religiosos: uma análise a partir dos princípios do cuidado e da proteção


Série Ensaios: Bioética Ambiental
Por ... Joaquim Francisco Dias Setin
Mestrando em Bioética

Sacrifício de Animais

O sacrifício cerimonial de animais data de tempos remotos, tendo registros desde os tempos pré-dinásticos do Egito, tal como descreve Flores (1999). Ainda de acordo com a autora, na região do Alto Egito, foram encontradas tumbas cerimoniais com vestígios de sacrifícios de cabras e ovelhas datados entre 4.000 e 4.500 anos enquanto em outra localidade, num sítio arqueológico datado com aproximadamente 3.000 anos, foram encontrados vestígios de sacrifícios rituais envolvendo não apenas animais domésticos, como historicamente registrado na cultura egípcia, mas também hipopótamos, gazelas e outros animais não humanos presumivelmente selvagens.
Ao longo da história, diversas civilizações utilizaram de sacrifícios rituais pelas mais diferentes razões, como explicam Mauss e Hubert (2013). Essas razões variam e evoluem, indo e vindo de uma concepção a outra através das épocas das civilizações, de forma que por hora o animal não humano sacrificado personificava o próprio espiador – fiel que sacrificava –, ora desempenhava papel de facilitador ou veículo para expiação, e comumente era uma oferenda para agradecimento ou súplica a uma entidade.  Corrobora tais afirmações Burkert (1983) ao analisar os ritos e cultura religiosa da Grécia Antiga. O autor destaca em seu objeto de estudo o uso de animais não humano em sacrifícios de expiação e de súplica aos diversos deuses, inclusive de forma sistemática e sazonal como oferenda para as entidades que a cultura reconhecia como responsáveis pelas colheitas, chuvas, fertilidade, etc.
É importante a contextualização realizada até aqui para destacar que, no contexto brasileiro contemporâneo, o senso comum entende o sacrifício de animais não humanos como uma prática típica das religiões de matriz africana, quando uma breve consulta à bibliografia (Periódicos Capes, Biblioteca Nacional, British Library, com os termos “sacrifício ritual” e “animal sacrifice”) demonstram que essa prática compõe um alicerce das religiões que participaram da fundação da civilização ocidental, incluindo a religião cristã (MAUSS e HUBERT, 2013).
Nem todas as religiões de matriz africana praticam o sacrifício ritual de animais não humanos, como reitera Goldman (1985). Vieira e Silva (2016) destacam a concepção do animal não humano em diferentes crenças e religiões tais como a cristã, hinduísta e judaica, e destacam os momentos históricos quando o sacrifício ritual compôs parte do dogma dessas denominações. Goldman (2985) e Vieira e Silva (2016) debatem sobre o uso dos animais não humanos em celebrações de matriz africana como Candomblé, quando o animal é sacrificado e totalmente “aproveitado” por aqueles que praticam a celebração, incluindo vísceras, couro e sangue, no sentido de alimentar as entidades e realizar comunhão entre os devotos e as próprias entidades. Os mesmo autores levantam a questão da moralidade na conduta do sacrifício quando discutem tais práticas a luz da Bioética: é certo manter a prática do sacrifício ritual quando já se consideram o direito ao bem-estar animal como relevante para o escopo moral na ordem social contemporânea?

Discutindo o caso: Princípios do Cuidado e Proteção

A (bio)ética moderna tem como propósito proteger e cuidar, baseado em diversos estudos acerca da vulnerabilidade e a interrelação entre as esferas econômicas, sociais, políticas e culturais que perfazem a condição e a experiência humana. Considera-se que tais princípios são essenciais para a construção de um “ethos global” ou “novo ethos”, já discutido por diversos pesquisadores, que defendem um campo moral amplo e emancipado do antropocentrismo e do etnocentrismo para garantir a sobrevivência e o bem-estar e o desenvolvimento de todos e todas (BOFF, 2005; SCHRAMM, 2008).
Ao se falar em bioética de cuidado e proteção, é essencial considerar a complexidade do que se tem em voga quando se analisa um caso acerca do sacrifício ritual de animais não humanos.  Como Vieira e Silva (2016) debatem, por um lado na discussão acerca da legalidade e aceitação do sacrifício de animais não humanos ou não têm-se a visão antropocêntrica que instrumentaliza os animais, à serviço do humano, portanto, passíveis de serem sacrificados; há ainda aqueles que defendem um ideal de liberdade de prática religiosa, protegida por lei, na constituição brasileira. Por outro lado, aqueles que falam pela proibição de tal prática, alegam que atualmente os animais não humanos entraram no campo moral da civilização a ponto de serem inclusos e protegidos pela lei, com seu bem-estar sendo objeto jurídico passível de proteção e cuidado.
Em suma, não há objeção jurídica atualmente no Brasil que endosse proibição à prática de sacrifícios. No entanto não são raros casos que tomam notoriedade de ações movidas contra professantes de matriz africana contra essa prática. Curiosamente, no Brasil, diuturnamente são realizados sacrifícios animais para outras denominações de origens diversas como judaísmo e o islamismo, e a bibliografia não oferece precedentes de mobilizações similares contra essas práticas, tal como ocorre com Candomblé, por exemplo (LIMA, 2015). Nesse contexto é importante ressaltar a realidade latino-americana embebida em efeitos da colonialidade, que permeia o dia-a-dia nas diversas esferas sociais, políticas, econômicas e culturais.
Não surpreende que Avila (2009) tenha pesquisado as atividades da unidade gaúcha do CEDRAB, a Congregação em Defesa das Religiões Afrobrasileiras. Destaca que a gênese de tal instituição pauta-se na urgência de uma defesa organizada contra ações de cerceamento de liberdade realizados em nome do colonialismo moral e da imposição de padrões de comportamento eurocêntrico intrínseco no sistema social brasileiro. Ademais, é interessante associar a essa discussão os apontamentos de Pasayat Chitrassen (2003) em sua obra Olhares sobre a Cultura Tribal e Popular (tradução livre), que por mais bárbaros que pareçam para o ocidente rituais como o dedicado à deusa Gadhimai – quando milhares de animais não humanos são sacrificados, esses hábitos e rituais compõem a identidade do povo, sua realidade e visão de mundo. A simples proibição da prática seria, do ponto de vista de um cidadão dos arredores do templo a essa deusa, um crime contra sua cultura e herança cultural.
Delinha-se então a solução proposta por Vieira e Silva (2016) de, pretensamente em respeito ao multiculturalismo presente na população brasileira, “reeducar” tais culturas e crenças, para abandonar o antropocentrismo especista que possibilita a prática dos sacrifícios. Sobre isso, invocando os princípios de cuidado e proteção, mais uma vez em seu sentido amplo para além da causa animal, e apoiado pela definição de Colonialismo Moral (GARRAFA, 2008), nos deparamos com a indagação “não estaremos, assim, executando a adequação de outras culturas ao nosso próprio padrão cultural ocidental, branco e cristão?”. À luz da Bioética em seu espectro amplo, essa reflexão e crítica é o suficiente para causar um profundo desconforto, uma vez que 1) cabe à bioética versar sobre o direito animal e vetar qualquer prática que barbarize e cause sofrimento aos animais não humanos ao mesmo passo que 2) cabe à bioética versar sobre os direitos fundamentais dos homens e mulheres que incluem o respeito à sua visão de mundo, sua cultura e herança, garantindo a liberdade de expressão de crença e religião.

Considerações finais

O sacrifício animal faz parte da história de diversas religiões, asiáticas, de matriz africana, ocidentais e aborígenes. Ao longo da história, na mesma crença ou religião ou cultura, o animal já foi interpretado de diferentes formas – como substitutivo ao espiante, como conduta para se atingir à divindade, como oferenda para apaziguar ou provocar ou recompensar uma entidade. Nos dias atuais, em todo o mundo, diversas culturas praticam, de uma forma ou de outra, o sacrifício cerimonial de animais não humanos.
A sociedade contemporânea inclui no campo mora de discussão jurídica a causa animal, com seus direitos fundamentais, apesar de forma superficial, e principalmente seu bem-estar – ao menos em teoria. A expansão e amadurecimento dessa compreensão ética sobre animais não humanos faz emergir a polêmica acerca de seu uso em rituais religiosos. Contudo, considerando a realidade brasileira, apoiados pela bibliografia acerca do tema, temos que a manifestação contrária à prática se restringe às práticas de matriz africana, refletindo o preconceito e a doutrinação em torno do padrão eurocêntrico, branco e cristão sob o qual as culturas e o sistema brasil são estruturados.
Nesse contexto, é problemático pensar em “educar” as crenças e religiões sob o risco de reproduzir processos característicos do colonialismo moral. Sob todos os efeitos do discutido, ao invés de uma resposta, novas perguntas surgem, no entanto, seriam essas as perguntas corretas para um bioeticista comprometido com o cuidado e a proteção de pessoas humanas e animais não humanos, agindo sob a ótica de uma bioética global que busca a universalidade e voga em defesa da biosfera como um todo.

O Presente ensaio foi elaborado para disciplina de bioética ambiental, baseando nas obras:

ÁVILA, C. G. Na interface entre religião e política: origem e práticas da Congregação em Defesa das Religiões Afrobrasileiras (CEDRAB/RS). (Dissertação – Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciênciais Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Porto Alegre, 2009.
BOFF, L. O cuidado essencial: princípio de um novo ethos. In.: Inclusão Social, v. 1, n. 1, p. 28-35, 2005.
BURKERT, W.  Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth. California – EUA: University of California Press, 1983.
CHITRASEN, P. Glimpses of Tribal and Folk Culture. Delhi: Anmol Publications Pvt Ltd, 2003.
FLORES, D. V. The Funerary Sacrifice of animals during the Predynastic Period. (Tese – Doutorado). Universidade de Toronto. Departamento de Graduação em Médio e Próximo Oriente.          Toronto, 1999.
GARRAFA, V. Colonialismo Moral (Vocábulo). In.: TEALDI, J. C. Dicionário latino-americano de bioética. Bogotá: Unesco, 2008. (p.535-536)
GOLDMAN, M. A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé. In.: Religião e Sociedade, v. 12, n. 1, p. 22-54, 1985.
LIMA, K. J. M. Liberdade religiosa e a polêmica em torno da sacralização de animais não-humanos nas liturgias religiosas de matriz africana. In.: revista Brasileira de Dirieto, v. 11, n. 1, 2015.
MAUSS, M. e HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac & Naif Editora, 2013.
SCHRAMM, F. R. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. In.: Revista Bioética, v. 16, n. 1, p. 11-23, 2008.
VIEIRA, T. R. e SILVA, C. H. O sacrifício animal em rituais religiosos ou crenças. In.: Revista de Biodireito e Direito dos Animais, v. 2, n. 2, p. 97-117, 2016.