terça-feira, 22 de outubro de 2019

Princípio da comunidade, da utilidade e diferença: Um olhar Bioético para as enchentes


Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Aline Maran Brotto e Caroline Good
Mestrandas em Bioética



Para relacionar três princípios complexos, como o comunitarismo, o utilitarismo e o princípio da diferença, buscou-se uma notícia que pudesse ser observada por todos esse olhares, além instituir a temática das enchentes como a ligação dessa rede de princípios, em que a bioética ilustra questões importantes de vulnerabilidade, dignidade e justiça.
Em 2018 oEstados Unidos retomaram sanções unilaterais contra o Irã, afetando, as transações financeiras e proibindo as importações de tapetes e alimentos produzidos no Irã, ente outros.  Em  2019, na capital do Irã, Teerã, o ministro do Interior, Abdolreza Rahmani Fazli informou ao parlamento que as inundações causaram prejuízos avaliados em US$ 2,5 bilhões, mais de 4.400 localidades em 25 das 31 províncias do Irã foram afetadas pelas inundações, que causaram até agora 77 mortes. O governo do Irã denunciou que as sanções impostas pelos Estados Unidos atrasaram a chegada de ajuda humanitária do exterior ao país e impediu as doações em dinheiro.

Segundo Nisbet (1982, p. 13), o termo Comunidade pode ser definido como “relações entre indivíduos que são marcadas por um alto grau de intimidade pessoal, de coesão social ou compromisso moral, e de continuidade no tempo”, dessa forma, consideramos aqui que o termo comunidade pode se referir a um grupo de pessoas, família, país, estação ou nação. Will Kymlicka (2003), aponta que um dos motivos pelos quais os ideais de comunidade foram deixados de lado pelos intelectuais foi a pouca atenção que lhe foi dada pela vertente predominante do pensamento liberal. O Estados Unidos, pode ser reconhecido com país sob forte influência do pensamento liberal, com enfoque nas liberdades individuais, Vita (2002) aponta as diferenças entre o Liberalismo Igualitário e o Multiculturalismo em relação a políticas de inclusão social, ações afirmativas e de admissão diferenciadas, apontando que está diferença reside no método com o que o fazem, no Liberalismo essa politica beneficia indivíduos e não grupos, mesmo que se espere efeitos positivos para o grupo no geral.  Mas não é o grupo enquanto tal, como uma entidade coletiva, que é investido de um direito ou de um tratamento diferenciado. Para Schmidt (2011) o adjetivo comunitário é utilizado como uma forma de salvaguardar as intenções públicas e coletivas.
Etzioni (2007, p. 233), define o pensamento comunitarista como aquele que se preocupa fundamentalmente com a comunidade – e não com o Estado ou o mercado. Ou, em outras palavras, o pensamento que confere destaque à comunidade na construção da boa sociedade. Daí serem aqui considerados comunitaristas os autores que historicamente conferiram importância central à comunidade na vida social. Para Schmidt (2011) este ideal traz valiosos elementos para a construção de uma ordem socio política condizente com os mais elevados ideais humanistas, democráticos, de inclusão social e de desenvolvimento sustentável.
De acordo com as notícias aqui mencionadas, podemos dizer que a uma contradição entre os ideias Liberais e Comunitários. Ao considerar os interesses dos Estados Unidos, podemos dizer que há uma preocupação com a sua comunidade, enquanto país, visto que é um dos mais atingidos com ações terroristas, utilizadas como justificativa para efetivação das sanções. Mas ao considerar uma comunidade global, as sanções econômicas impostas ao Irã não atingem diretamente o que se quer combater – a produção de armamentos bélicos – mas sim a cultura iraniana no geral, a excluindo do panorama internacional global.
Podemos dizer que, ao imputar essas sanções há uma preocupação com o Bem Comum e o princípio da Utilidade, ao passo que, este prevê o maior benefício para o maior número de pessoas, a redução de atividades nucleares trariam benefícios para todos, não somente para os Estados Unidos. Mas ao se efetivar da forma como proposta aniquila-se a cultura, a exclui, a vulnerabiliza. A exclusão econômica impede as transações com os demais países o que o fragiliza também em suas relações internas e suas possibilidades de desenvolvimento.
As sanções estão fazendo que o que país não receba, ou tenha atraso na ajuda humanitária diante de um evento natural: as chuvas. Ao considerar o ambiente como bem comum que deve ser protegido por todos independente de seus interesses econômicos e políticos e a qual país se pertence, as questões políticas deveriam ser deixadas de lado, ao se pensar no princípio da utilidade, além do cuidado com o bem estar de uma comunidade agora fragilizada em suas necessidades básicas.
No panorama entre Liberalismo e Comunitarismo, Schmidt (2011) destaca seis tópicos em que observa um rol de ideias, noções e temas, que geram uma espécie de núcleo do comunitarismo: (a) a comunidade é condição ontológica do ser humano; (b) oposição ao individualismo e ao coletivismo; (c) oposição ao gigantismo estatal; (d) primazia dos valores pessoais sobre os valores do mercado; (e) subsidiariedade, poder local, associativismo e autogestão; (f) fraternidade, igualdade e liberdade. Estes tópicos delimitam alguns pontos para um referencial político e jurídico comunitarista, equidistante do privatismo e do estatismo, tanto pelo que postulam quanto pelos limites que estabelecem. O reconhecimento de que os excessos do Estado e do mercado não são compatíveis com o ideal da boa sociedade, o reconhecimento do imprescindível papel dos cidadãos organizados em comunidades e organizações e a emergência de questões que são inquestionavelmente de preocupação comum, como a ecologia, favorecem a atenção à mensagem comunitária.
Mediante o princípio da utilidade e da diferença,  percebe-se que ao mesmo tempo que um mesmo evento beneficiou uma parte da população, ocasionou mortes e perdas para outra. Quando pontua-se a questão voltada para as enchentes na capital do Irã, leva-se também em conta que existe falta e mau uso da água no país, bem como, a quantidade de água subterrânea diminuindo, juntamente com o equilíbrio hídrico do país. Segundo dados do setor agrícola, cerca de 90% dos recursos hídricos do país são destinados a agricultura, mantendo-se um uso de distribuição e estoque inadequados.  Logo, as chuvas que aconteceram no Irã, foram benéficas para outras regiões do país, que não sofreram enchentes, mas tiveram seus níveis de reservatórios e aquíferos aumentados, segundo dados de noticias do país.
Por utilitarismo, entendo aqui a doutrina ética segundo a qual a conduta objetivamente correta é, em quaisquer circunstâncias, aquela que produzirá a maior quantidade de felicidade no todo, isto é, tendo em conta todos aqueles cuja felicidade será afetada pela conduta (SIDGWICK, 2013, p. 579). 
Rawls estabelece que o utilitarismo se preocupa em ampliar a utilidade – satisfação, pois este é o maior bem estar. Mas o que gera bem estar e felicidade para um grupo de pessoas, não necessariamente o faz com outro grupo. Logo, o utilitarismo não se importa com a topografia que a utilidade se traduz para a sociedade.  Estabelecer o máximo de benefício possível aos menos favorecidos é a ideia central do princípio da diferença, pois este, considera a justiça enquanto equidade e olha para as desigualdades da sociedade (NEUBERGER, 2015).
O princípio da diferença sustenta a noção de Raws, em que se considera aceitável apenas as desigualdades sociais e econômicas que acarretem benefícios aos membros menos favorecidos da sociedade. O princípio da diferença acaba por ser uma alternativa ao princípio da utilidade (NEUBERGER, 2015, SIDGWICK, 2013).  
O princípio da justiça coloca o bem estar em vias primárias através do princípio da diferença como forma de assegurar todas as pessoana sociedade, em especial os menos favorecidos, que são os mais prejudicados (NEUBERGER, 2015).  
O bem estar de moradores desta e outras regiões quando se trata de chuvas, modifica-se, pois viver em uma região que pode ser alagada dependendo da intensidade das chuvas acaba por se tornar um fator gerador de mal estar psicológico, reproduzindo transtornos e síndromes devido a questões emocionais, como distúrbios no sono, ansiedade e perda de apetite, além das possíveis contaminações que a água poderá trazer consigo. Após a experiência de ter seus bens levados pela enchente outras consequências também se manifestam no período de chuvas, como rotina familiar e social durante o período de reconstrução, além do contexto político e de ajuda humanitária que a capital se encontra. Nesse momento também existem problemas voltados para a busca de um abrigo, e que este seja seguro e acolha todos que necessitem, oferecendo o mínimo necessário para a dignidade daqueles que perderam tudo (NEUBERGER, 2015, VITA, 1992).
Quando um grupo de pessoas passa por tal situação - de enchentes, alagamento, perda de bens financeiros e vidas -  é importante haver orientações por parte de autoridades da saúde, pois a comunidade está exposta a inúmeras vulnerabilidades, e é importante resgatar o bem estar de todos (VIRA, 1992).    
A teoria utilitarista aponta uma série de critérios com o intuito de ampliar a utilidade pública, como o dinheiro. Já o que se refere a teoria comunitarista, é possível perceber que o seu conteúdo prima por uma distribuição semelhante pelo que diz respeito aos benefícios e encargos sociais. Logo, a bioética ambiental, observará e estimulará uma reflexão teórico prática com esses e outros princípios, mediante as situações que acontecem no meio ambiente, e que refletem na saúde do planeta como um todo. Existem ainda, vários desafios sobre as intervenções que são realizadas ou esquecidas pelo ser humano, em relação ao meio ambiente, como neste caso as enchentes (FREITAS, XIMENES, 2012; CASSOL, QUINTANA, 2012).

CASSOL, P. B., QUINTANA, A. M. A contribuição da bioética na preservação ambiental e na saúde. Monografias Ambientais UFSM v(10), nº 10, p. 2235 – 2240, (e-ISSN: 2236-1308), 2012. Disponível em: http://cascavel.ufsm .br/revistas/ojs-2.2.2/index.php /remoa 2235. Acesso em: 30 jun 2019.
ETZIONI, A. La dimensión moral: hacia una nueva economía. Palabra, 2013.
FREITAS, M. C., XIMENES, E. F. Enchentes e saúde pública - uma questão na literatura científica recente das causas, consequências e respostas para prevenção e mitigação. Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador, Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Ciência & Saúde Coletiva, 17(6):1601-1615, 2012. Disponível em: https://ww w.scielosp.org/article/csc/2012.v17n6/1601-1616/ Acesso em 30 jun 2019.
KYMLICKA, W. Comunitarismo. Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopodo: Ed. Unisinos, 2003.

NEUBERGER, D. Teoria da justiça de John Rawls: entre o liberalismo e o comunitarismo. Trans/Form/Ação, São Paulo, 30(1): 169-190, 2007 169. UFSM Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível em: http://www.scielo.b r/pdf/trans/v30n1/v30n1a11.pdf Acesso em 27 jun 2019.
NISBET, R A. Os filósofos sociais. Ed. Universidade de Brasilia, 1982.

REVISTA EXAME, Inundações no Irã causam prejuízos de US$ 2,5 bilhões. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/inundacoes-no-ira-causam-prejuizos-de-us-25-bilhoes/>. Acesso em: 30 de Junho de 2019
G1 MUNDO, Sanções unilaterais dos EUA contra o Irã entram em vigor. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/07/sancoes-unilaterais-dos-eua-contra-o-ira-entram-em-vigor.ghtml>. Acesso em: 03 de Julho de 2019
REVISTA GAZETA DO POVO. Escassez de água faz antigo ponto turístico iraniano desaparecer. Disponível em: www.gazetadopovo.com.br/mundo/new-york-times/escassez-de-agua-faz-antigo-ponto-turistico-iraniano-desaparecer-enjl3zuiw845c9q2whfbielou/. Acesso em 1 jun 2019.
SCHMIDT, J. P. Comunidade e comunitarismo: considerações sobre a inovação da ordem sociopolítica. Ciências Sociais Unisinos, v. 47, n. 3, p. 300-313, 2011.

SIDGWICK, H. Os métodos de ética. Tradução da 7ª edição do original inglês de 1907. he Methods of Ethcis. Fundação Calouste Gulbernkian. Lisboa, 2013.
SILVEIRA, D. C. Teoria da justiça de John Rawls: entre o liberalismo e o comunitarismo. Trans/Form/Ação, v. 30, n. 1, p. 169-190, 2007.

VIRA, A. A Tarefa prática da Filosofia política em John Rawls. Revista Lua Nova. N. 25. CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea. São Paulo. 1992.
VITA, A. Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo (sobre Brian Barry, Culture and equality). Lua Nova, n. 55-56, 2002.

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