segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Quatro Patas: Entre o Laudo e o Lado

 

Por Amábilyn Faria, Angelina Hecke, José Zanetti e Vitória Buchi




Em 8 de abril de 2025, o cão de assistência Teddy, treinado para acompanhar a menina Alice, de 12 anos, diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA), foi impedido de embarcar pela companhia aérea TAP mesmo com liminar judicial, revelando um grave impasse entre normas operacionais e o direito à inclusão garantido pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). A recusa destacou que, além do debate sobre “pets em aviões”, o tema envolve dignidade humana, autonomia e saúde mental. Historicamente, o uso de animais pelo ser humano remonta à caça, ao transporte, ao pastoreio, à guerra e à segurança pública, ampliando-se hoje para funções de suporte terapêutico e assistencial, como ocorre com os cães-guia e de serviço (Service Animals: SA), altamente treinados para auxiliar pessoas com deficiência visual, auditiva ou motora. Mais recentemente, surgiram os Animais de Apoio Emocional (Emotional Support Animals: ESA), indicados por profissionais de saúde mental para auxiliar indivíduos com transtornos psicológicos, ansiedade ou depressão, embora ainda não possuam regulamentação federal clara. A ausência de leis específicas para os ESAs gera incertezas e abre espaço para abusos, como falsos laudos, certificados vendidos online e a transformação de “pets comuns” em instrumentos de benefício próprio, o que compromete tanto a segurança quanto a credibilidade do uso terapêutico legítimo. A literatura aponta benefícios reais do vínculo humano-animal em contextos clínicos (ex.: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5800290/) e alerta para percepções públicas confusas entre SAs e ESAs (https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5486328/), bem como para a necessidade de padrões de avaliação claros (https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC7517601/). Sob o ponto de vista ético, o uso indiscriminado desses animais impõe um dilema: até que ponto a saúde humana justifica o estresse, o adestramento intenso e a exposição de cães a ambientes artificiais e barulhentos? O utilitarismo da saúde pública, ao valorizar os benefícios emocionais, pode inadvertidamente converter o animal em ferramenta terapêutica, negligenciando seu bem-estar e transformando-o em um “segundo paciente”. Além disso, o crescimento do mercado de “cães de apoio” criou um nicho lucrativo, mas frágil, marcado por criadores que exploram a demanda e por desigualdade no acesso, já que apenas quem pode pagar altos valores por raças “aptas” garante o suporte desejado. Assim, o caso Teddy simboliza um desafio ético, social e legal: equilibrar o direito à inclusão com a dignidade animal. Nós, como futuros biólogos e psicólogos, acreditamos que o uso de cães de assistência e apoio deve ser analisado individualmente, conforme a real necessidade clínica do tutor, e que os órgãos competentes fiscalizem tanto o bem-estar dos animais de serviço quanto às práticas de turismo e comércio envolvendo espécies silvestres, assegurando que o ser humano interfira o mínimo possível na vida e no comportamento natural dos animais. 



Este ensaio foi elaborado para a disciplina de Biologia e Evolução do Comportamento Animal , com apoio das obras e documentos legais consultados em RevanTroEtno e fontes já citadas, além de recursos visuais produzidos por inteligência artificial (IA), utilizados apenas para fins ilustrativos, com transparência em todas as etapas do trabalho.




A economia do sofrimento: o que há por trás do abate clandestino

 

por: Isabella Perussi, Heloise Manfron, Juliana Lira, Julia Ross, Milena Barbosa e Rayane Cagni.

 

Caso: Operação em Santo André flagra abatedouro e criadouro ilegal de animais

Link:https://portais.santoandre.sp.gov.br/semasa/2025/03/26/operacao-em-santo-andre-flagra-abatedouro-e-criadouro-ilegal-de-animais/

 Em março de 2025, uma operação policial conjunta do Serviço Municipal de saneamento Ambiental e da Polícia Civil interditou um abatedouro e criadouro ilegal de aves em Santo André . O local onde os animais eram mantidos em condições inadequadas, foi caracterizado crime de maus-tratos devido à ausência de vacinação adequada, com baias sujas, presenças de moscas, roedores e alimentos guardados de forma irregular, além disso não tinham licença ambiental ou sanitária. A operação resultou na apreensão de todas as aves, da carne produzida e dos equipamentos utilizados no abate clandestino. A descoberta de um abatedouro clandestino em Santo André vai muito além da ilegalidade. Esse caso é um exemplo dos graves conflitos éticos que existem por trás da nossa comida, especialmente da carne de frango. Ele mostra como a busca por preços baixos e lucro acaba sacrificando o bem-estar do animal, a saúde pública, a justiça social e o meio ambiente. A prática ilegal resulta em diversas consequências negativas, como é o caso da exposição dos animais ao extremo sofrimento; poluição ambiental com o descarte inadequado de carcaças e despejo de dejetos em mananciais; danos à economia com a questão da sonegação fiscal; e prejuízos à saúde pública, visto que, os produtos obtidos a partir do abate clandestino podem ser vetores das doenças, as zoonoses.

Dentro deste caso, o valor do Bem-Estar Animal [MF4] foi completamente negligenciado, onde as aves confinadas em estabelecimentos ilegais são normalmente privadas de suas liberdades mais básicas, já que o bem-estar dos animais surge quando a qualidade de vida destes é garantida pela sua importância como seres vivos e não pelo valor instrumental para alcançar objetivos externos. Esses animais vivem em condições de superlotação extrema, sem acesso a cuidados veterinários, alimentação adequada ou ambientes que permitam a expressão de seus comportamentos naturais. A avicultura brasileira [MF6] é uma das cadeias mais concretas de produção de proteína animal do agronegócio, ocupando a posição de maior exportador e o segundo maior produtor de carne de frango. De acordo com o Código Sanitário dos Animais Terrestres, (OIE) (2021), [ bem-estar animal significa como o animal enfrenta as condições do ambiente de criação, estando saudável, adaptado (sem dor, medo ou sob desafios sanitários), nutrido e protegido (de intempéries, predadores etc.) livre para expressar os comportamentos naturais da espécie. Os frangos de corte normalmente são submetidos a uma intensa seleção genética voltada para características produtivas, como rápido ganho de peso, alta eficiência alimentar e redução da idade de abate, porém, esses animais enfrentam sérios desafios de bem-estar como o aumento de problemas sanitários, fisiológicos como a Síndrome da Morte Súbita e a Ascite, além de diversas patologias locomotoras, incluindo deformidades nas pernas, discondroplasia tibial e degeneração femoral.  Durante o processo de matança em aviários clandestinos, estes animais não passam pelo processo de insensibilização, com isso são expostos a uma morte extremamente estressante, sofrida e dolorosa. Se em ambientes que estão dentro da legalidade, seguindo normas rigorosas como as estabelecidas pelo Código Sanitário de Animais Terrestres da OIE, já é difícil se abster de problemas como estresse, lesões, agressões entre animais ou surtos de doenças durante o transporte, imagine em ambientes que são clandestinos. Nessas condições, não há supervisão, planejamento de viagem, capacitação de tratadores, instalações adequadas ou qualquer documentação exigida. Além disso, o desrespeito com a vida desses animais está diretamente ligado ao desrespeito com o valor da saúde da população, onde a falta de inspeção veterinária, o controle inadequado de temperatura e a manipulação dos produtos em condições higiênicas precárias criam um ambiente propício para a contaminação por bactérias, através das doenças transmitidas dos animais à população, já que a carne de frango é um ambiente extremamente propício para o desenvolvimento de bactérias. Os microrganismos podem se multiplicar, causando deterioração e outros podem constituir um perigo ao homem podendo causar doenças infecciosas ou intoxicações. Dentre as principais zoonoses transmitidas por conta das péssimas condições higiênicas durante o abate se destacam a brucelose, teníase, cisticercose, hidatidose, leptospirose, toxoplasmose, salmonelose, tuberculose e antraz. Então, a escolha pelo baixo custo imediato do produto, posteriormente terá um preço alto para o bem-estar da comunidade.

Outro valor que é desconsiderado quando se trata da carne produzida em criadouros/abatedouros clandestinos é o da sustentabilidade ambiental. O processo de abate gera vários resíduos que necessitam de um manejo correto e geridos de forma a amenizar os seus impactos ambientais. Dentre estes resíduos gerados por matadouros, pode-se citar: efluentes líquidos (águas residuais contaminadas com sangue, esterco, vômito, óleos e graxas) e os resíduos sólidos (sebo, ossos, esterco, couro, vísceras etc.), e a maneira como estes lugares despejam seus resíduos no ambiente tem influência direta para no meio físico, biótico e socioeconômico, podendo gerar perdas que muitas vezes podem ser irreparáveis. [MF13] Um abatedouro clandestino, que não possui a devida fiscalização do manejo de resíduos produzidos, descarta esses subprodutos de forma irregular, contaminando solos e corpos hídricos locais. Portanto, o custo do frango barato, nesse contexto, é subsidiado pela degradação do meio ambiente. Esse sistema cria diversas injustiças, onde de um lado, produtores éticos são prejudicados pela concorrência de quem burla a lei para reduzir os custos. De outro, a população de baixa renda, sem alternativas acessíveis, torna-se o mercado principal desses produtos clandestinos, ficando exposta a riscos à saúde. A produção da carne denominada clandestina é feita por pecuaristas que não investiram em sanidade ou por produtores que insistem em fazer abate fora dos padrões. Ela é caracterizada por um produto com baixo valor, associado à qualidade inferior, onde o principal objetivo é a competição de preços, atendendo assim consumidores de baixa renda, que não possuem exigências pela qualidade do alimento.  É um cenário onde tanto quem tenta fazer o certo quanto quem já está em situação vulnerável saem perdendo. Diante dessa realidade, como biólogos, somos convidados a refletir profundamente sobre os valores que orientam nossa atuação profissional e ética. Nosso compromisso vai além da pesquisa e da técnica: envolve o respeito pela vida em todas as suas formas e pela interdependência entre os seres vivos e o ambiente. Em situações como essa, precisamos reafirmar o papel da Biologia como ciência que defende o equilíbrio ecológico, o bem-estar animal e a saúde pública, promovendo práticas sustentáveis e compassivas. Cabe a nós utilizar nosso conhecimento para denunciar, educar e propor soluções que reduzam o sofrimento animal e restaurar a harmonia entre a sociedade e a natureza. Além disso, é importante ir além da discussão meramente legal. A existência de leis e normas sanitárias, embora essenciais, não garante por si só a erradicação de práticas clandestinas. A legislação funciona para quem está disposto a cumpri-la; quem não está, explora as brechas de um sistema frágil e desigual. No caso da produção de carne clandestina, o problema transcende a esfera jurídica e revela uma realidade social marcada pela profunda desigualdade econômica. Para muitas pessoas, o acesso a proteína animal de qualidade só é possível por meio dessas práticas ilegais, o que evidencia uma precariedade estrutural que perpetua a vulnerabilidade de animais, de pessoas e do meio ambiente. Portanto, o foco não deve ser apenas rotular uma prática como clandestina, mas questionar o sistema que a sustenta e refletir sobre como construir alternativas mais justas e sustentáveis para as gerações atuais e futuras.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Biologia e Evolução do Comportamento Animal tendo como base as obras:

ARAÚJO, P. P. P.; COSTA, L. P. Impactos ambientais nas atividades de abate de bovinos: um estudo no matadouro público municipal de Caicó-RN. HOLOS, v. 1, p. 136-142, 2014.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PROTEÍNA ANIMAL – ABPA. Relatório anual de estatísticas da produção de suínos e frangos 2022. São Paulo: ABPA, 2022.
BRITO, J. et al. Características microbiológicas da carne de frango: uma revisão narrativa. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 6, p. 62781-62795, jun. 2021.
COSTA, H. et al. Abate clandestino e sua associação com a transmissão de zoonoses. Brazilian Journal of Animal and Environmental Research, Curitiba, v. 6, n. 2, p. 1178-1186, abr./jun. 2023.
FRASER, D.; WEARY, D. M.; PAJOR, E. A.; MILLIGAN, B. N. A scientific conception of animal welfare that reflects ethical concerns. Animal Welfare, v. 6, n. 3, p. 187-205, 1997.
GUIMARÃES, A. et al. Bem-estar e enriquecimento ambiental na criação de aves de produção – uma revisão. Revista Agrária Acadêmica, v. 8, n. 1, jan./fev. 2025.
MAZZUCO, H. Bem-estar animal na cadeia de produção de frangos: compromisso com a sustentabilidade. Avicultura Industrial, n. 7, 2022.
OIE – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE ANIMAL. Código Sanitário dos Animais Terrestres. Lyon: OIE, 2021.
PASCOAL, L. L. et al. Relações comerciais entre produtor, indústria e varejo e as implicações na diferenciação e precificação de carne e produtos bovinos não-carcaça. Revista Brasileira de Zootecnia, v. 40, Supl. Especial, 2011.
RAEISI, M. et al. Effect of sodium alginate coating incorporated with nisin, Cinnamomum zeylanicum and rosemary essential oils on microbial quality of chicken meat and fate of Listeria monocytogenes during refrigeration. International Journal of Food Microbiology, v. 238, p. 139-145, 2016.
SANTO ANDRÉ (SP). Serviço Municipal de Saneamento Ambiental (SEMASA). Operação em Santo André flagra abatedouro e criadouro ilegal de animais. Prefeitura de Santo André, 26 mar. 2025.
SILVA, G. Análise dos impactos socioambientais gerados por descartes de efluentes de abatedouros no bairro Maracanã, São Luís – MA. Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade, v. 4, número especial, jul./dez. 2018.
SILVA, H. L.; ALMEIDA, T. V. Abate clandestino de bovinos: uma reflexão sobre os riscos à saúde pública. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, ano 6, ed. 2, v. 11, p. 139-170, fev. 2021.
VIANA, F. J. C. et al. Abate clandestino de suínos e pequenos ruminantes na cidade de Teresina, Piauí: implicações na saúde ocupacional. Revista Interdisciplinar Ciências e Saúde, v. 1, n. 1, p. 38-47, 2014.

O Grupo de pesquisa Bioética Ambiental marcando presença no X Congresso Internacional da RedBioética Unesco

 


Eutanásia Animal e Bioética: dilemas em famílias multiespécie à Luz da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos

Por Flávia Dandara Nogueira

Os conceitos de eutanásia (boa morte), distanásia (morte prolongada) e ortotanásia (morte natural) (Aurélio 2004; Alves 2001) são tradicionalmente acolhidos pela bioética no âmbito da medicina humana. Contudo, questiona-se como esses conceitos têm mobilizado os dilemas éticos no campo da medicina veterinária. Enquanto a eutanásia voluntária em humanos envolve a autonomia do paciente, na medicina veterinária a decisão é tomada por terceiros, tutores ou profissionais, o que levanta questões sobre conflitos de interesse (Nedel 2004). Com o objetivo de avaliar como o meio acadêmico tem acolhido a temática da eutanásia na confluência da bioética e medicina veterinária, foi utilizado o portal da CAPES, plataforma do governo brasileiro que reúne diversas bases de dados. Utilizaram-se os descritores "Bioética + Eutanásia", em português e inglês, categorizando os artigos por data de publicação, idioma, acesso e área do saber. Os textos relacionados à medicina veterinária (Bioética + Eutanásia + Veterinária) foram analisados também quanto à corrente bioética adotada, valores éticos mobilizados, atores envolvidos e ações propostas. A análise dos 1.375 artigos sugeridos evidenciou uma predominância da produção internacional (93%), com maior concentração na área das Ciências da Saúde (19%) e publicações desde 1934. No recorte específico de nove artigos sobre veterinária, identificou-se que a bioética ainda é um campo incipiente, embora predominem contribuições das áreas da Saúde e Agrárias. A escassez de publicações revela uma lacuna relevante no debate bioético sobre a vida e a morte de animais, especialmente considerando os vínculos afetivos em contextos de famílias multiespécie. Três correntes bioéticas principais se destacam nas análises: o utilitarismo, o principialismo e o debate entre perspectivas antropocêntricas e biocêntricas. O sofrimento aparece como valor transversal, mas com pesos distintos, ora econômico, ora afetivo, conforme o contexto. Os atores centrais foram os médicos veterinários e tutores, cujas entre as ações propostas, destacam-se a criação de comitês de ética, elaboração de normativas jurídicas e formação ética de profissionais. Um ponto crítico identificado foi a ausência de diálogo entre abordagens utilitaristas e teorias dos direitos animais, o que evidencia a necessidade de maior integração teórica e epistemológica. Em síntese, a bioética aplicada à medicina veterinária ainda é marcada por uma visão antropocêntrica/utilitarista, mas há sinais de avanço rumo a uma ética multiespécie. Essa trajetória se alinha aos princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), que defendem a dignidade, o respeito à vulnerabilidade e a justiça. Incluir os animais como sujeitos éticos exige reconhecer a interdependência entre os seres vivos e promover uma bioética plural, inclusiva e comprometida com os desafios dos tempos atuais.


Conflitos éticos relacionados à violação de direitos fundamentais em saúde ambiental no contexto de saneamento urbano e ambiental: Um estudo em torno da prática de fecalismo à céu aberto no Bairro Mateus Sansão Muthemba, Tete – Moçambique

Por Trindade Charpare




O fecalismo a céu aberto, não é um fenómeno que está ligado só as condições ecológicas e socioeconómicas, mas também ao comportamento dos indivíduos em termos de higiene individual e colectiva, o que concorre a conflitos éticos relacionados à violação de direitos fundamentais em saúde ambiental. Os desequilíbrios ecológicos observados no bairro em alusão, relacionam-se com o deficiente sistema de saneamento urbano e ambiental, atrelado a prática do fecalismo. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), incorporou e tornou-se o primeiro documento internacional a incluir o ambiente, a biosfera e a biodiversidade como objetos da reflexão Bioética. Em 2017, a OMS e UNICEF divulgaram um relatório que mostrava que 2,1 bilhões de pessoas no mundo não tem acesso à água potável em casa; 4,5 bilhões não tem acesso a saneamento básico e 892 milhões de pessoas defecam a céu aberto. Nas últimas décadas, o fecalismo passou a caracterizar-se por uma maior dispersão, atingindo todas as províncias do país, incluindo as zonas rurais, com uma menor magnitude, mas de longa duração. A ética deve reconhecer e visualizar os limites da natureza e impor limites à própria ação humana, com o fim de evitar a arbitrariedade em todos os níveis, “junto com as libertinagens, já não toleráveis, de um capitalismo desenfreado e seus excessos de consumo, também algumas liberdades que nos são queridas, pessoais e coletivas” (Jonas 2013:84). O fecalismo neste bairro está ligado a factores culturais, hábitos e custumes, localização geográfica do bairro que compreende zonas baixas propensas a inundações e zonas altas rochosas inapropriadas para construção de uma latrina melhorada. Consequentemente nota-se a eclosão de diarreias aguda, vómitos, malária entre outras doenças resultantes do deficiente saneamento. A ética individual sugerida por Potter não é suficiente para lidar com os problemas ecológicos contemporâneos e defende a conversão da ética ecológica em lei para garantir a proteção do meio ambiente (Potter 2018). Há uma necessidade de se construir sanitários, reassentar uma parte dos moradores, conceber um plano de sensibilização/educação ambiental, campanhas de limpeza e actividades de fiscalização. A solução para essa questão precisa transpor esse cenário e imputar como critérios e indicadores os princípios éticos norteadores da relação com a natureza e com as pessoas (Chapare, Lummertz e Fischer 2020), deve haver uma gestão participativa que encontra nos espaços multidisciplinares dos comitês de ética a oportunidade de diálogo entre os diferentes atores envolvidos em uma questão complexa, plural e global, característica da agenda da bioética ambiental.


Participação cidadã e juventudes: uma proposta formativa a partir da articulação entre Bioética e Psicologia.

Por Ana Carolina de Campos e Julio Tozzo


O engajamento estudantil em práticas de participação cidadã configura-se como eixo fundamental para a formação de sujeitos críticos e comprometidos com as transformações sociais e ambientais (Gadotti, 2014; Fischer et al., 2017; Erikson, 1972). No entanto, observa-se um distanciamento significativo dos jovens em relação a espaços deliberativos, o que levanta questões sobre os fatores que limitam ou motivam sua inserção nesses contextos. Este trabalho, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR e apoiado por bolsas de Iniciação Científica (PIBIC e PIBIC Jr), integra um projeto maior que visa identificar as fragilidades e potencialidades do engajamento social em diferentes perfis populacionais, com destaque para o grupo estudantil .A pesquisa, de abordagem qualitativa e delineamento exploratório, utilizou a metodologia dos grupos focais online (Fischer et al., 2022), com aplicação da ação “E-Caminhos do Diálogo”. Foram realizados quatro grupos com participantes engajados em causas ambientais, sociais, estudantis e não engajados, sendo o grupo estudantil composto por 10 participantes. Os resultados evidenciaram que os estudantes demonstraram significativa sensibilidade às questões sociais, mas enfrentaram dificuldades relacionadas à autoeficácia, regulação emocional e percepção de pertencimento, sendo estes fatores que limitaram seu engajamento. A partir dessas vulnerabilidades, foi desenvolvido um curso de extensão com base em estratégias psicoeducativas voltadas ao fortalecimento da empatia, regulação emocional, deliberação ética e construção coletiva de sentido. O curso propôs ainda a criação de um Comitê de Bioética Ambiental como espaço contínuo de formação e deliberação, fomentando redes de apoio ao engajamento juvenil. A proposta dialoga com os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), especialmente no que tange à responsabilidade social e à solidariedade intergeracional. Espera-se que a experiência revele a eficácia da articulação entre os fundamentos da Bioética Social e Ambiental (Fischer et al., 2017; Porto; Garrafa, 2005) e referenciais psicológicos, como a Teoria da Autodeterminação (Deci; Ryan, 2013), o desenvolvimento moral (Kohlberg, 1992) e a inteligência emocional (Mayer; Salovey, 1990), para a promoção do engajamento estudantil. O projeto apresenta potencial de replicabilidade em outras instituições de ensino superior e na educação básica, ampliando seu impacto formativo e social. Conclui-se que, ao reconhecer as vulnerabilidades e potencialidades dos estudantes, é possível propor intervenções educativas que sejam sensíveis, colaborativas e efetivas, capazes de fomentar uma cultura participativa desde os espaços acadêmicos.


Contribuições Da Bioética Ambiental E Da Deliberação Mediada Por Arte Para O Engajamento Ambiental

Por Thierry Lummterz


A educação é um caminho fundamental para a construção da dignidade humana frente aos desafios planetários e às desigualdades sociais, favorecendo processos de sensibilização e transformação por meio de aprendizagens significativas sobre as questões ambientais, tendo a vida como valor comum e inegociável (Potter, 2016). Nesse horizonte, diferentes abordagens pedagógicas têm sido pensadas na interface entre a Bioética e a Educação Ambiental (Sato, 2003; Fischer et al., 2017), destacando a importância de metodologias ativas e interdisciplinares para a formação de sujeitos conscientes, críticos e comprometidos com a justiça socioambiental. Dentre essas propostas, o Bioteatro desponta como estratégia educativa que mobiliza a linguagem cênica para promover a Bioética Ambiental com crianças e jovens, ampliando o repertório simbólico, ético e relacional dos participantes. Trata-se de um método que, ao integrar arte e educação, potencializa o protagonismo, a autonomia e a corresponsabilidade na formação cidadã, favorecendo o autoconhecimento e a capacidade de ação diante dos dilemas ético-ambientais contemporâneos (Lummertz & Fischer, 2021). Este resumo apresenta um relato de experiência realizado no Dia Mundial da Água de 2025, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com o objetivo de sensibilizar estudantes universitários por meio da performance teatral intitulada “Potter do Futuro”, na qual o personagem, circulando pelos corredores da instituição, convidava os transeuntes a refletirem a partir da provocação “a última gota de água se apagou no futuro”. A atividade propôs uma roda de conversa em torno da escassez hídrica e da acessibilidade universal à água potável, considerando seus impactos sociais, éticos e ambientais (Fischer, Wolff & Caetano 2025). Observou-se, inicialmente, uma resistência dos estudantes à participação, revelando uma distância entre o reconhecimento da crise ambiental e o engajamento efetivo em ações transformadoras. No entanto, aqueles que se dispuseram ao diálogo demonstraram, ainda que timidamente, inquietações éticas e abertura à escuta, permitindo identificar zonas de sensibilização latentes. A experiência reforça a constatação de que o acesso à informação, por si só, não garante mudanças de atitude, sendo urgente investir em práticas pedagógicas que integrem o sensível, o simbólico e o experiencial como vias de construção do pertencimento e da responsabilidade. Em consonância com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (Unesco, 2005), que afirma o direito de todos a um ambiente saudável e equilibrado, a ação evidencia a importância da educação ética, artística e dialógica para promover a justiça, a solidariedade intergeracional e o compromisso com o bem comum. A iniciativa foi amplamente divulgada, em nível nacional e internacional, no âmbito da Blue Community e do projeto “Bioética no dia a dia” (2025), consolidando-se como uma prática significativa de educação bioética para a cidadania planetária.



Governança ambiental sustentável e participação cidadã: Os Conselhos Municipais de Meio Ambiente sob a perspectiva da Bioética

Por Daihany Silva dos Santos


O processo de urbanização impõe desafios como desigualdade social e degradação ambiental. As cidades inteligentes surgem como resposta, integrando tecnologia e gestão eficiente para promover sustentabilidade e qualidade de vida (Quilice et al. 2018). Nesse contexto, os conselhos municipais, em especial, os conselhos municipais de meio ambiente, representam instrumentos fundamentais parar estabelecer uma governança urbana sustentável. Esta pesquisa faz parte de um projeto maior, intitulado “A dimensão ambiental do autocuidado: uma pauta para a agenda das cidades inteligentes”, que investiga a relação entre o autocuidado e a dimensão ambiental nas cidades inteligentes. Buscou-se analisar os conselhos municipais de meio ambiente como espaços potenciais de participação cidadã e deliberação democrática, à luz dos referenciais da bioética deliberativa e da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, bem como o direito ambiental. Realizou-se uma revisão integrativa com ênfase nos estudos nacionais sobre conselhos ambientais e engajamento comunitário, utilizando dados das bases CAPES, Oasisbr e Google Acadêmico, resultando em 1395 artigos sobre conselhos municipais e 174 sobre engajamento comunitário, que foram categorizados e analisados. Os resultados demonstram que, quando bem estruturados, esses conselhos têm potencial para fortalecer o controle social, promover a corresponsabilidade e ampliar a justiça ambiental. Por outro lado, existem entraves relacionados à estrutura e gestão institucional precária, desigualdade de poder, representação social frágil e barreiras no acesso à informação (Corrêa 2020, Ferreira; Fonseca 2014). Tais limitações comprometem a legitimidade e o caráter deliberativo das decisões ambientais. O engajamento foi identificado como essencial para a efetividade das políticas públicas e a promoção da justiça social, especialmente em contextos de vulnerabilidade (Santos et al. 2021). Mais do que participação formal, trata-se de um processo político e coletivo, que valoriza o saber local, fortalece redes de solidariedade e defende direitos coletivos. Diante disso, a bioética torna-se um instrumento essencial para enfrentar as fragilidades identificadas. A bioética deliberativa (Gracia 2001) reforça a importância da escuta plural, do diálogo e da tomada de decisões coletivas, valores indispensáveis ao funcionamento legítimo dos conselhos municipais de meio ambiente. Complementarmente, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (UNESCO 2005) sustenta a responsabilidade ética com as gerações futuras e com o meio ambiente, especialmente nos artigos 14 e 17. Assim, reafirma-se a necessidade de práticas políticas baseadas na deliberação coletiva, no respeito à pluralidade e na articulação entre ética e direito, enaltecendo princípios como equidade, precaução, solidariedade, responsabilidade social e justiça intergeracional, todos alinhados à Declaração da UNESCO e ao direito ambiental.

Território e engajamento desigual: o conflito urbano do Novo Inter 2 em Curitiba à luz da Bioética ambiental

Por Carina Del Pino Sandrini


O presente ensaio critico pretende analisar o projeto Novo Inter 2, implementado na cidade de Curitiba, com base em premissas da Bioética Ambiental e da colonialidade do saber-poder, e ênfase na abordagem territorial das desigualdades urbanas. O método utilizado parte de uma abordagem qualitativa, através de estudo de caso do projeto Novo Inter 2 em Curitiba, articulado com elementos da bioética ambiental, territorialidade e colonialidade do saber-poder, por meio de análise documental de fontes oficiais, notícias e artigos acadêmicos. Nessa linha, o discurso de Curitiba como cidade modelo e cidade inteligente, demanda de uma ideologia hegemônica historicamente construída, que direciona o planejamento urbano a efetivar politicas seletivas, que privilegiam uma parcela da população concentrada em determinados setores da cidade (ALBUQUERQUE, 2007), inclusive, a avenida Arthur Bernardes foi estruturada com base no Plano Agache, que visava fomentar a segregação social e espacial (PEREIRA et. al., 2024). O projeto do Novo Inter 2, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), visa melhorar os cenários de mobilidade urbana. Contudo, ao prever o corte de diversas arvores nativas ao longo da Av. Arthur Bernardes, sofreu resistência popular, resultando na criação do movimento SOS Arthur Bernardes, que denunciou a falta de transparência da prefeitura e os impactos ambientais (GONÇALVES, 2024). Esse movimento, ganhou grande repercussão, conquistando modificações no projeto com redução do corte das árvores (CURITIBA, 2025), em contrapartida, bairros periféricos afetados não receberam a mesma atenção, mesmo com cenários semelhantes, manifestando um padrão de engajamento desigual. Essa assimetria revela como o discurso do desenvolvimento se apresenta como regime de poder-saber, e é integrado ao capitalismo global, moldando estruturas baseadas na separação entre o que desenvolvido e subdesenvolvidos (ESCOBAR, 2014). A partir disso, o território urbano não é neutro, mas concentra um espaço historicamente disputado e marcado pela colonialidade do saber-poder, que impõe uma hierarquia baseada nos fatores raça, gênero e classe, consolidando o sistema-mundo moderno/colonial (FLÓREZ, 2007). Assim, a legitimidade do engajamento social está condicionada a estruturas de poder-saber, principalmente aquelas alinhadas a linguagens formais e canais institucionalizados eurocentrados, gerando silenciamento e invisibilidade de vozes periféricas lidas como subdesenvolvidas. Nesse contexto, a Bioética Ambiental, em harmonia com os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), possui arcabouço para abordar criticamente e de forma integrada problemas bioéticos em contextos de desigualdade, propondo soluções baseadas na justiça socioambiental, garantindo a dignidade humana, inclusão de saberes e participação democrática nas tomadas de decisões.

Território e engajamento desigual: o conflito urbano do Novo Inter 2 em Curitiba à luz da Bioética ambiental

por Carina Del Pino Sandrini


O presente ensaio critico pretende analisar o projeto Novo Inter 2, implementado na cidade de Curitiba, com base em premissas da Bioética Ambiental e da colonialidade do saber-poder, e ênfase na abordagem territorial das desigualdades urbanas. O método utilizado parte de uma abordagem qualitativa, através de estudo de caso do projeto Novo Inter 2 em Curitiba, articulado com elementos da bioética ambiental, territorialidade e colonialidade do saber-poder, por meio de análise documental de fontes oficiais, notícias e artigos acadêmicos. Nessa linha, o discurso de Curitiba como cidade modelo e cidade inteligente, demanda de uma ideologia hegemônica historicamente construída, que direciona o planejamento urbano a efetivar politicas seletivas, que privilegiam uma parcela da população concentrada em determinados setores da cidade (ALBUQUERQUE, 2007), inclusive, a avenida Arthur Bernardes foi estruturada com base no Plano Agache, que visava fomentar a segregação social e espacial (PEREIRA et. al., 2024). O projeto do Novo Inter 2, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), visa melhorar os cenários de mobilidade urbana. Contudo, ao prever o corte de diversas arvores nativas ao longo da Av. Arthur Bernardes, sofreu resistência popular, resultando na criação do movimento SOS Arthur Bernardes, que denunciou a falta de transparência da prefeitura e os impactos ambientais (GONÇALVES, 2024). Esse movimento, ganhou grande repercussão, conquistando modificações no projeto com redução do corte das árvores (CURITIBA, 2025), em contrapartida, bairros periféricos afetados não receberam a mesma atenção, mesmo com cenários semelhantes, manifestando um padrão de engajamento desigual. Essa assimetria revela como o discurso do desenvolvimento se apresenta como regime de poder-saber, e é integrado ao capitalismo global, moldando estruturas baseadas na separação entre o que desenvolvido e subdesenvolvidos (ESCOBAR, 2014). A partir disso, o território urbano não é neutro, mas concentra um espaço historicamente disputado e marcado pela colonialidade do saber-poder, que impõe uma hierarquia baseada nos fatores raça, gênero e classe, consolidando o sistema-mundo moderno/colonial (FLÓREZ, 2007). Assim, a legitimidade do engajamento social está condicionada a estruturas de poder-saber, principalmente aquelas alinhadas a linguagens formais e canais institucionalizados eurocentrados, gerando silenciamento e invisibilidade de vozes periféricas lidas como subdesenvolvidas. Nesse contexto, a Bioética Ambiental, em harmonia com os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), possui arcabouço para abordar criticamente e de forma integrada problemas bioéticos em contextos de desigualdade, propondo soluções baseadas na justiça socioambiental, garantindo a dignidade humana, inclusão de saberes e participação democrática nas tomadas de decisões.



Entre estranhos morais e a vulnerabilidade ambiental: relações éticas entre humanos e a natureza

Por Cristiano Chiaramonti




O conceito “estranhos morais”, aplicado às relações entre humanos e natureza convida à reflexão sobre modos de convivência onde diferentes formar de moralidade coexistem. As divergências e antagonismos não impedem a complementaridade, mas a fortalecem, reconhecendo a força presente em cada parte da relação (Morin, 2005). A noção de estranheza moral revela a singularidade e o valor ético da natureza, compondo com os humanos compondo um cenário de interdependência socioambiental. A vulnerabilidade ambiental emerge da relação inconstante entre humanos e natureza. O julgamento ético-histórico imposto à natureza, pautado por valores humanos, a tornou vulnerável sob os parâmetros dessa coletividade. Esse ensaio crítico tem como objetivo analisar os vínculos morais entre humanos e natureza a partir da noção de vulnerabilidade ambiental, com foco na responsabilidade ética pela da proteção da biosfera e da biodiversidade, em consonância com os Artigos 14 e 15 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005). A metodologia adotada é qualitativa, de natureza teórica e reflexiva, baseada em revisão bibliográfica exploratória. A discussão aponta que os princípios éticos predominantes estabelecem formas de controle da natureza, gerando conflitos morais. O intuito não é equiparar humanos e natureza, mas evidenciar sua interdependência para a manutenção da vida. O que os diferencia são os sistemas de organização: a racionalizada humana versus as relações coexistentes da natureza. Na ética projetada pelos humanos, a natureza é excluída das escolhas morais, sendo reduzida a um objeto de doutrinação ética. a vulnerabilidade ambiental, portanto, não é uma condição intrínseca da natureza, mas um estado imposto pela ótica antropocêntrica. A ausência de reconhecimento da agência moral da natureza compromete a reponsabilidade ética contemporânea, contribuindo par ao agravamento de crises ambientais e par ao uso da tecnologia como solução imediatista, em detrimento da compreensão das consequências futuras (Potter, 2018). Ao submeter a natureza a padrões éticos unilaterais, perde-se a oportunidade de construir uma relação harmônica com o planeta, colocando em risco a responsabilidade ética de proteção da natureza, da biosfera, da biodiversidade e os benefícios de proteção aos interesses e direitos das gerações futuras, conforme preconizado pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005). Esse ensaio propõe, assim, uma abertura para o reconhecimento da natureza como parceira moral na construção de uma sociedade mais que humana, fundada no respeito e na corresponsabilidade pela vida.




Temas emergentes na Bioética: animais de apoio emocional
Por Maria Natalia Martins


A presença de cães no ambiente universitário apoia a saúde mental dos estudantes, contribuindo para a melhora do humor, a redução do estresse e da ansiedade associados à vida acadêmica, além de favorecer a motivação e o aprendizado (Pendry; Vandagriff 2019). Interações com cães promovem conforto emocional e sensação de bem-estar, podendo ser uma estratégia eficaz para apoiar estudantes e promover um ambiente acadêmico mais acolhedor (Peel; Nguyen; Tannous 2023). Assim, a partir de uma ação de cães de terapia em uma Instituição de Ensino Superior Privada em Curitiba questionou-se qual a receptividade dos estudantes, professores e colaboradores quanto à presença dos animais no campus. Com objetivo de caracterizar o perfil dos respondentes e sua receptividade para ação foi aplicado um questionário on line. Os 1.916 respondentes foram agrupados de acordo com as características dos animais que possuíam, utilizando-se uma análise de cluster pelo método de Ward, resultando em três grupos: simpatizantes de animais (24%), gateiros (28%) e cachorreiros (62%). Encontrou-se uma população predominantemente composta por estudantes (77%), que tutelavam cães (74%), não temiam animais (89%). A maioria dos participantes (95%) demonstrou entusiasmo com a possibilidade de interagir com os cães. Esses resultados ressaltam o potencial desses programas para promover interações sociais positivas e mitigar o estresse acadêmico, evidenciando seu valor como estratégia de cuidado psicossocial no ambiente universitário (Huber et al. 2024). Contudo, os potenciais impactos sobre os cães suscitam uma importante reflexão bioética sobre o modo como esses seres são considerados no processo, muitas vezes vistos apenas como recursos para a promoção da saúde humana e não como participantes sencientes e integrantes legítimos dessa interação (Fischer; Zanatta; Adami 2016; Horowitz 2021). Esse tema emergente deve ser acolhido pela Bioética na identificação de potenciais vulnerabilidades relativas ao bem-estar-animal, das pessoas e da Instituição, demandando deliberações coletivas, nas quais os valores e interesses de todos os atores sejam reconhecidos e articulados, em prol de decisões consensuais e justas para todos, em conformidade com Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (UNESCO 2006).



Bioética e Educação, Biofilia e Psicologia: a complexidade do Déficit de Natureza como vulnerabilidade social

Por Alex Aparecido Da Silva


A urbanização acelerada, o confinamento e o distanciamento dos ambientes naturais têm gerado uma vulnerabilidade social silenciosa, com impactos biopsicossociais relevantes em indivíduos de diferentes idades. Trata-se do déficit de natureza, caracterizado pela redução do contato humano com ambientes naturais, limitando o desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social (Louv 2005). Este estudo apresenta uma revisão bibliográfica de caráter crítico, com o objetivo de discutir o déficit de natureza como uma vulnerabilidade social complexa, articulando a teoria da biofilia e a psicologia ambiental sob mediação da bioética no campo da educação. A teoria da biofilia, proposta por Wilson (1982) e desenvolvida por Kellert e Wilson (1995), sugere que a afinidade humana com a natureza é fruto de adaptações evolutivas que promovem bem-estar. Sua contraparte, a biofobia, refere-se à predisposição para o aprendizado rápido acerca de ameaças naturais, como escuridão, altura e animais perigosos (Ulrich 1993). A biofilia fundamenta políticas globais de reconexão entre humanos e natureza, como no ODS 11.7 da Agenda 2030 da ONU, que propõe o acesso universal a espaços públicos verdes, seguros e inclusivos (Trevisam, Oliveira 2024), contrapondo-se ao déficit de natureza. A psicologia ambiental evidencia que a ausência de experiências sensoriais com elementos naturais compromete o senso de pertencimento e de cuidado ambiental (Cavalcante, Elali 2018), dificultando práticas éticas e sustentáveis. A presença de vegetação, luz natural e vistas para o exterior são estímulos que favorecem a criatividade, reduzem o estresse e fortalecem vínculos interpessoais, compondo determinantes ambientais de saúde e bem-estar (Neumann, Kuhnen 2019). A bioética, como campo interdisciplinar comprometido com a dignidade, a sustentabilidade e a justiça, atua como mediadora crítica da educação ambiental. Apesar de diretrizes como os PCNs, DCNs e a BNCC abordarem a temática ambiental, o fazem de forma técnica e descontextualizada, limitando a ação pedagógica (Branco, Royer, Branco 2018). A bioética, ao valorizar a interdependência entre humanos e natureza, fortalece a educação ambiental crítica e integradora (Santos-Junior, Fischer 2020). Essa abordagem está em consonância com os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005), que destacam a proteção da vulnerabilidade humana, a responsabilidade ambiental e o compromisso com as futuras gerações. Assim, reconhecer o déficit de natureza como vulnerabilidade social complexa implica promover uma educação ética que restabeleça os vínculos entre seres humanos e natureza em contextos crescentemente urbanos e desconectados.



Uma leitura da bioética ambiental da aplicação da biofilia na construção de cidades multiespécies

Por Marta Luciane Fischer



A transformação de cidades em espaços inteligentes e sustentáveis exige mais do que tecnologia e indicadores urbanísticos. Este estudo propõe uma abordagem ampliada, ancorada na bioética ambiental (Fischer, Cunha, Renk et al. 2017), que valoriza os vínculos entre humanos e não humanos. Apresenta-se aqui a articulação do projeto “Biofilia na construção de Cidades Multiespécies: a sinergia entre a Bioética Ambiental e as Cidades Inteligentes”, desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa em Bioética Ambiental, com foco na identificação de vulnerabilidades simbólicas e institucionais que dificultam o engajamento comunitário em agendas socioambientais. A pesquisa baseia-se na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), com ênfase na biodiversidade, responsabilidade ambiental e solidariedade intergeracional. A metodologia é interdisciplinar, integrando revisão teórica, análise documental, questionários online e grupos focais com estudantes e lideranças. A hipótese central é que os fenômenos da biofilia e da biofobia (Wilson 1982) influenciam diretamente a reconexão das pessoas com a natureza. A biofobia, caracterizada por medo ou aversão a animais e ambientes naturais, emerge como barreira ao engajamento ambiental, agravada pela urbanização e pela virtualização da vida. Dados preliminares revelam desconhecimento do conceito de biofobia, embora sentimentos de medo, nojo ou estranhamento frente a espécies como aranhas, cobras e roedores sejam recorrentes (Fischer, Campos, Santos-Junior 2025). Por outro lado, experiências diretas com a fauna e uma formação interdisciplinar favorecem a ressignificação dessas percepções. A mobilização social pode ocorrer em conselhos ambientais, organizações civis e ações de educação ambiental. A análise dos conselhos identificou baixa qualificação técnica e pouca diversidade ética, mas também uma forte valorização do engajamento e da construção coletiva. Os resultados apontam para a necessidade de incorporar dimensões simbólicas, educativas e bioéticas ao planejamento urbano. A proposta de cidades multiespécies amplia o conceito de inteligência urbana, articulando sustentabilidade com justiça interespécies, cuidado ambiental e autocuidado. Conclui-se que a bioética ambiental oferece subsídios para enfrentar a biofobia, o racismo ambiental e a exclusão socioecológica, contribuindo com políticas públicas comprometidas com futuros habitáveis para todos os seres.