quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Quando um Rio pede voz: o que o caso do Rio São Francisco nos ensina sobre bioética e justiça ambiental


 Um novo olhar sobre a natureza e os direitos: do Velho Chico ao Rio Belém, em Curitiba.


Por: Brunielle dos Santos de Aguiar, Jaqueline Maria de Oliveira Lima Luvizotto, Leandro Saldivar da Silva, Pedro Gouveia Junior e Moises Fernando de Andrade.



Você já parou pra pensar que um rio pode ter direitos? Pois é, essa ideia, que parece saída de um livro de filosofia ou ficção científica, está ganhando força real no mundo todo. Cada vez mais pessoas, cientistas e comunidades tradicionais estão questionando o modo como tratamos a natureza: será que ela é apenas um recurso, ou também tem valor moral e precisa ser respeitada como um ser vivo? No Brasil, um movimento inspirador vem do povo Pankararu, de Pernambuco, que decidiu lutar pelo reconhecimento do Rio São Francisco como sujeito de direito. Essa proposta, além de inovadora, é profundamente ética e diz muito sobre o que a bioética tem a ensinar quando o assunto é justiça ambiental e respeito à vida. Para o povo Pankararu, o Velho Chico é muito mais do que um rio! É parte da própria alma de sua cultura. Ele está presente nos rituais, na alimentação, nas histórias e na espiritualidade. Mas, nas últimas décadas, o São Francisco vem sofrendo com barragens, poluição, pesca predatória e desmatamento. O resultado? Um rio doente e comunidades inteiras em risco. Cansados de ver seu território degradado, os Pankararu decidiram agir. Através da Escola de Ancestralidade Viva, organizaram uma mobilização histórica, buscando garantir ao rio personalidade jurídica, ou seja, o direito de ser representado legalmente por guardiões e de ter sua integridade ecológica protegida. Essa proposta está inspirada em experiências internacionais de sucesso, como o reconhecimento do Rio Whanganui na Nova Zelândia, que recebeu personalidade jurídica e é representado por guardiões da comunidade Māori e do governo. Essa luta vai além do campo jurídico. Ela é, antes de tudo, uma reparação simbólica e cultural, uma tentativa de restaurar o elo espiritual entre o povo e o rio, rompido por décadas de exploração e esquecimento.
A bioética nos ajuda a entender esse conflito - Nesse cenário, a bioética nos ajuda a entender quem são os atores morais desse conflito. Os agentes morais, como os próprios Pankararu, organizações ambientais e o Ministério Público, agem conscientemente para proteger o rio e as comunidades. Os pacientes morais — o Rio São Francisco e as populações tradicionais — são aqueles que sofrem as consequências diretas da degradação ambiental. E há também os corresponsáveis, como governos e empresas, que têm o dever ético de garantir a integridade ambiental e cultural do território.
A proposta de reconhecer o rio como sujeito moral amplia o conceito de comunidade ética, incluindo a natureza como parte legítima das relações de cuidado e responsabilidade. Vulnerabilidades profundas e invisíveis - As populações tradicionais enfrentam vulnerabilidades profundas, e não apenas econômicas. Elas lidam com desigualdades históricas, invisibilidade política e o que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama de epistemicídio: o apagamento dos seus saberes e modos de vida. Enquanto o Estado e as empresas priorizam o crescimento econômico, os povos indígenas defendem uma visão ecocêntrica, na qual o rio é um ente vivo com valor próprio. Essa diferença de visão é o coração do conflito bioético: de um lado, a natureza vista como instrumento; do outro, a natureza vista como parceira de existência. No caso dos Pankararu, o impacto da degradação do São Francisco vai além do ambiental: ele ameaça o equilíbrio espiritual, o sustento e a identidade cultural de todo um povo.
Valores em conflito: economia versus vida - Os valores em jogo são claros: as populações tradicionais defendem a vida, o território e a cultura; o Estado e as empresas priorizam o crescimento econômico; a sociedade civil e a ciência buscam conservação e justiça ambiental. Esses interesses colidem porque ainda vivemos sob uma lógica antropocêntrica, que coloca o ser humano acima de tudo. Em contraste, os povos tradicionais nos convidam a uma ética ecocêntrica, que reconhece o rio como parte da comunidade moral. A justiça restitutiva, nesse contexto, é uma alternativa poderosa: em vez de apenas punir, ela busca restaurar as relações justas entre pessoas e natureza, reparando danos materiais, espirituais e simbólicos. E em Curitiba? O caso do Rio Belém - Pode parecer distante, mas essa reflexão também se aplica às cidades. O Rio Belém, que corta 37 bairros de Curitiba, é um retrato urbano da degradação ambiental: canalizado, poluído e esquecido. Com uma bacia de quase 88 km², o rio enfrenta esgoto irregular, assoreamento e ocupações precárias em suas margens. Nesse contexto, os atores locais são parecidos: o poder público (Prefeitura e Sanepar), a sociedade civil (ONGs, universidades) e os moradores ribeirinhos, que muitas vezes vivem em vulnerabilidade social, enfrentando enchentes, doenças e falta de infraestrutura. Essas pessoas, mesmo no meio urbano, compartilham a mesma condição dos povos tradicionais: vivem em relação direta com o rio, sofrem com a sua degradação e têm pouco espaço de voz nas decisões que os afetam. Como aponta a literatura sobre justiça ambiental, os impactos ambientais não são distribuídos igualmente: recaem sempre sobre os mais vulneráveis.
E se o Belém também fosse sujeito de direito? - Inspirando-se no exemplo do São Francisco, seria possível aplicar o mesmo princípio no Rio Belém. Imagine só: um Conselho de Guardiões do Rio Belém, com moradores, ONGs e representantes do poder público; ações de reparação ecológica, recuperando as margens e monitorando a qualidade da água com participação popular; reparação social, com reassentamento digno e geração de renda sustentável; reconhecimento jurídico-administrativo do rio, garantindo prioridade nas políticas públicas ambientais. Com essas medidas, o Belém poderia se transformar de rio esquecido em símbolo de justiça ambiental urbana, mostrando que cuidar da natureza também é cuidar da cidade e das pessoas. Estudos sobre a qualidade ambiental do Rio Belém já demonstram a urgência de ações integradas que promovam não apenas a recuperação ecológica, mas também a justiça socioambiental. E você? - E você, já pensou que o rio que passa pela sua cidade também pode ter direitos?
Talvez o primeiro passo seja simples: escutá-lo.
Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que... Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que o reconhecimento de rios como sujeitos de direito representa muito mais do que uma inovação jurídica: trata-se de um imperativo ético de nosso tempo. Vivemos em uma era marcada pela crise climática, pela perda acelerada de biodiversidade e pelo aprofundamento das desigualdades socioambientais. Nesse contexto, a bioética não pode se limitar às questões clínicas ou biomédicas tradicionais, ela precisa se expandir para abraçar a vida em todas as suas formas e expressões. A luta do povo Pankararu pelo Rio São Francisco nos ensina que a justiça ambiental é inseparável da justiça social e cultural. Não podemos falar em sustentabilidade enquanto continuarmos invisibilizando os saberes e as vozes das populações que, historicamente, cuidaram dos territórios com sabedoria e respeito. O epistemicídio, o apagamento dos conhecimentos tradicionais, é uma forma de violência que empobrece não apenas essas comunidades, mas toda a humanidade. Reconhecer um rio como sujeito de direito é reconhecer que a vida não é propriedade, mas parceria. É romper com a lógica colonial e extrativista que ainda domina nossas relações com a natureza. É afirmar que ética, política e ecologia são inseparáveis. Como profissionais em formação, assumimos o compromisso de promover uma bioética que seja plural, intercultural e ecologicamente engajada. Uma bioética que não apenas observe os conflitos, mas que atue ativamente na construção de pontes entre conhecimentos, na defesa dos vulneráveis e na promoção de relações mais justas e respeitosas com todos os seres vivos.

O Rio São Francisco, o Rio Belém e tantos outros corpos d'água Brasil afora não são apenas recursos hídricos: são histórias vivas, memórias coletivas, fontes de espiritualidade e sustento. Defendê-los é defender a própria possibilidade de futuro.



O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética (PPGB) da PUC-PR, tendo como base as seguintes obras:

BOLLMANN, Harry Alberto; EDWIGES, Thiago. Avaliação da qualidade das águas do Rio Belém, Curitiba-PR, com o emprego de indicadores quantitativos e perceptivos. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 13, n. 4, p. 443-452, out./dez. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/esa/a/yZSRg9CWPHxv6ZKFtgjRS8N/

BRASIL. Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Resolução nº 357, de 17 de março de 2005. Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Resolucao/2005/res_conama_357_2005_classificacao_corpos_agua_rtfcda_altrd_res_393_2007_397_2008_410_2009_430_2011.pdf

BRASIL DE FATO. No Sertão pernambucano, povo Pankararu pede que o rio São Francisco seja considerado sujeito de direitos. [S.l.], 25 abr. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/04/25/no-sertao-pernambucano-povo-pankararu-pede-que-o-rio-sao-francisco-seja-considerado-sujeito-de-direitos/

CBHSF – COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO. Povo Pankararu lidera iniciativa para reconhecer o Rio São Francisco como Sujeito de Direito. Salvador, 12 maio 2025. Disponível em: https://cbhsaofrancisco.org.br/noticias/novidades/povo-pankararu-lidera-iniciativa-para-reconhecer-o-rio-sao-francisco-como-sujeito-de-direito/

FRANCISCO, Papa. Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. Vaticano, 2015.

HABERMANN, Mateus; GOUVEIA, Nelson. Justiça Ambiental: uma abordagem ecossocial em saúde. Revista de Saúde Pública, v. 42, n. 5, p. 936-944, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/LRx5Gmw7tTT3gzG6HYrg3rg/

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Contraponto, 2006 [1979].

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POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: Bridge to the Future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.

VIEIRA, Augusto Seolin. Diagnóstico sanitário e ambiental da Bacia do Rio Belém – Curitiba/PR. 2022. Dissertação (Mestrado) – UFPR. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/82694


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