sábado, 15 de novembro de 2025

Entre Vidas e Lucro: o Princípio do Mal Menor na Ética Ambiental e o reconhecimento do Rio Arapiuns como sujeito de direito

 por  Leandro Augusto Agostinetti, Bacharel, Edvando Ramon Matos Vergasta e Trindade Charpare 



A Campanha em defesa do Rio Arapiuns foi uma mobilização popular que ocorreu no município de Santarém, no Pará, e dinamizou um projeto de lei para que o Rio Arapiuns seja reconhecido como um “ente vivo” e sujeito de direitos. A campanha, chamada “Arapiuns – rio de direitos”, é liderada pela juventude do Assentamento Agroextrativista, os Guardiões do Bem Viver e organizações locais, abrangendo cerca de 150 comunidades. Há um texto de lei que define direitos específicos para o rio, como a manutenção do seu fluxo natural e da quantidade de água necessária para a saúde do ecossistema. Seria criado um “comitê Guardião do Rio”, um espaço para que pessoas defendam a proteção do rio nos fóruns de discussão sobre a bacia hidrográfica. Se aprovado, o Rio Arapiuns será o primeiro do estado do Pará a ter essa garantia por lei. A campanha pelo Rio Arapiuns demonstra que o reconhecimento de rios como sujeitos de direito não é apenas uma teoria, mas uma reivindicação em curso na sociedade brasileira, impulsionada por comunidades que dependem diretamente do rio para sua sobrevivência física, cultural e econômica. Ao citar as ameaças de poluição e a importância econômica do rio para o turismo sustentável, a notícia apresenta um dilema real. Diante da pressão por desenvolvimento, reconhecer o rio como sujeito de direito é uma aplicação do princípio do mal menor: uma intervenção jurídica para evitar um dano ambiental maior e irreversível. No entanto essa campanha gerou conflitos, pois há pressões por um modelo de desenvolvimento econômico (mineração, madeireiras) que gere emprego e renda, mas à custa da destruição do ecossistema. Em contrapartida há a necessidade da sobrevivência cultural e física de comunidades tradicionais ligadas ao Arapiuns, além da integridade mesma do rio, como valor intrínseco do rio como sujeito. Essa tensão coloca em jogo valores éticos profundos, como justiça, autonomia e o próprio direito à vida. Assim os direitos do rio como sujeito implicam diretamente nos direitos humanos. Logo, defender o sujeito Arapiuns é defender todos os sujeitos humanos que estão direta e indiretamente ligados ao Rio. Diante da aparente inevitabilidade de algum impacto (econômico ou ecológico), o reconhecimento dos direitos do rio se configura como a aplicação do princípio do mal menor. A opção considerada “menos pior” ou “menos danosa” é a que impõe limites à atividade econômica para evitar um mal maior: o colapso irreversível do ecossistema fluvial, que traria prejuízos incalculáveis para a biodiversidade, o clima regional e o modo de vida de milhares de pessoas. Essa perspectiva coloca a saúde do rio e da coletividade como um valor superior aos lucros de setores específicos. 
A personalidade jurídica do rio não é apenas uma ferramenta de gestão ambiental; é um reconhecimento de que temos uma obrigação moral para com a natureza, vista não como uma coisa, mas como um sujeito em uma relação de interdependência. Esse pensamento prioriza o equilíbrio nas relações ecológicas e humanas sobre a acumulação material, assim as milhares de vidas que se relacionam com o Rio Arapiuns são mais importantes que o lucro gerado pela sua exploração predatório. Como uma “coisa” pode ser explorada e destruída, mas um “sujeito” não, pois está juridicamente amparado, o processo de reconhecer seu status de pessoa jurídica ampara as demais pessoas que dele dependem ou com ele se relacionam.    A concepção de rios como sujeitos de direitos, abordada no texto do blog Bioética no Dia a Dia, representa uma ruptura com a visão antropocêntrica tradicional do direito e da ética. Ao atribuir personalidade jurídica a ecossistemas fluviais, como ocorreu com os rios Whanganui, em Nova Zelândia, e Atrato, na Colômbia, não se busca meramente uma proteção dos recursos hídricos, mas um reconhecimento de seu valor intrínseco. Esta inovação jurídica traz profundas implicações éticas, que podem ser analisadas à luz do Princípio do Mal Menor, um conceito clássico da bioética que encontra nova ressonância neste contexto. A implicação ética central dessa mudança de status é a obrigação moral de respeitar a existência, a integridade e a funcionalidade do rio como um ente vivo e não como um mero objeto de exploração. Isso significa que qualquer intervenção humana em seu curso, para mineração, agricultura, geração de energia ou urbanização, deve ser submetida a um crivo ético rigoroso. É aqui que o Princípio do Mal Menor se torna uma ferramenta crítica crucial. 
Diante da inevitabilidade de certos impactos decorrentes da necessidade humana de desenvolvimento, a ética exige que se escolha a alternativa que cause o menor dano possível ao ecossistema fluvial, considerando-o como sujeito afetado e não como recurso a ser consumido. Tradicionalmente, o Princípio do Mal Menor é invocado em dilemas onde nenhuma opção é plenamente boa, mas uma é menos danosa que as outras. Na ética médica, por exemplo, pode guiar a escolha de um tratamento com severos efeitos colaterais para evitar um mal maior: a morte. Transpondo essa lógica para a ética ambiental, o “mal” a ser evitado não é mais apenas um prejuízo humano, mas um dano à própria entidade rio e, por extensão, a todas as formas de vida que dele dependem. A pergunta deixa de ser apenas “qual opção é menos prejudicial para nossa economia?” e passa a ser “qual opção causa o menor prejuízo à saúde do rio e, consequentemente, ao seu povo?”. Contudo, a aplicação desse princípio não é isenta de tensões. A noção de “mal menor” pode ser facilmente cooptada por uma lógica antropocêntrica que, sob o pretexto de minimizar danos, ainda legitima agressões ao ecossistema. Quem define o que é o “mal menor?”. Com base em quais valores? Uma usina hidrelétrica é um “mal menor” comparada a uma termelétrica a carvão? Para uma ética que verdadeiramente reconhece o rio como sujeito, a resposta deve emergir de um processo decisório que inclua vozes não-humanas, representadas por guardiões ou comitês de custódia, e que priorize a restauração e a manutenção dos processos ecológicos essenciais. Em conclusão, a personalidade jurídica dos rios força uma evolução ética. Ela exige que o Princípio do Mal Menor seja aplicado não como uma desculpa para a exploração mitigada, mas como um imperativo para uma convivência verdadeiramente respeitosa. A escolha pelo “mal menor” deve ser o último recurso em um processo que priorizou e esgotou todas as alternativas de não-dano. O verdadeiro desafio ético, portanto, não é apenas escolher entre impactos, mas transformar nossa relação com a natureza de uma de dominação para uma de coexistência, onde o rio, como sujeito de direitos, tenha sua voz e sua integridade garantidas.
O princípio do mal menor (PMM) é um fundamento ético que justifica a escolha de um mal para evitar outro mal maior. Em um dilema onde nenhuma opção é ideal, é moralmente válido escolher a alternativa que produz o maior bem possível ou a menor quantidade de mal. Para aplicar o princípio é indispensável que o agente esteja obrigado a agir e a tomar uma decisão diante de duas ou mais alternativas, sendo que nenhuma delas é ideal, após terem sido descartadas outras possíveis ações por uma análise criteriosa. A reflexão sobre o PMM tem raízes na ética clássica grega, sendo formulado por Aristóteles na frase latina “De duobus malis, minor est semper eligendum” (De dois males, o menor deve ser sempre elegido). Uma crítica ou ressalva fundamental a ele é que só é aplicável a dilemas estritamente binários, onde não há uma terceira opção viável. É necessário, antes de tudo, buscar ativamente essa “terceira via” que possa oferecer uma solução melhor, evitando assim a conformidade com qualquer tipo de mal.
    O paciente moral central e inovador na análise é o Rio Arapiuns e seu ecossistema. Ao ser reconhecido como “ente vivo” e sujeito de direitos, o rio deixa de ser um objeto de exploração e passa a ser um sujeito cuja integridade, existência e fluxo natural são portadores de valor intrínseco e, portanto, devem ser considerados moralmente. As ações de poluição e degradação o afetam diretamente. Os pacientes morais primários são as comunidades tradicionais e ribeirinhas. Sua saúde, cultura, sustento e modo de vida (“Bem Viver”) estão intrinsecamente ligados à saúde do rio. Eles são os primeiros e mais diretamente impactados pela sua degradação. Além disso os outros seres vivos que dependem do rio também são pacientes morais, pois sua sobrevivência é ameaçada pela ação danosa. Os agentes morais institucionais primários são o Poder Público (Legislativo e Executivo municipal e estadual). Eles detêm o poder e a responsabilidade de criar e fazer cumprir as leis. A Câmara de Vereadores de Santarém, ao votar o projeto de lei, e o prefeito, ao sancioná-lo, estão exercendo sua função de agente moral para proteger o rio e as comunidades. Já o coletivo Guardiões do Bem Viver e o Movimento Tapajós Vivo: Eles atuam em uma dupla função. São: Pacientes Morais (como visto acima) e Agentes Morais, pois assumem para si a responsabilidade de lutar pela proteção do rio, propor legislação, mobilizar a sociedade e, futuramente, atuar como seus “guardiões”. Eles estão agindo moralmente em defesa de um bem maior. Os Operadores do Direito (Ministério Público, Judiciário) são agentes morais com o poder de garantir que os direitos do rio, uma vez reconhecidos, sejam efetivados e violações sejam punidas. Também existem os Agentes Morais que Causam a Ameaça (e podem ser vulneráveis), como Garimpeiros, Madeireiros Ilegais e Grileiros. Eles tomam decisões ativas que violam a integridade do paciente moral (o rio) e, por consequência, dos outros pacientes morais (as comunidades).
  
 
No caso do Rio Arapiuns, podemos identificar ambas as situações: há a Vulnerabilidade Já Instalada nas comunidades e no rio: A degradação ambiental já está ocorrendo. A poluição por mercúrio do garimpo, a redução de peixes e a contaminação da água já causam impactos concretos na saúde e no sustento das populações. A vulnerabilidade delas não é uma possibilidade futura; é uma realidade presente. Eles já estão sofrendo os efeitos do dano. Infelizmente, o ecossistema fluvial já está sob estresse e dano mensurável. Sua vulnerabilidade também já está instalada. Aqui está um ponto da análise: os próprios agentes causadores do dano (garimpeiros etc.) podem estar em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica. Eles podem ser vulneráveis às decisões dos outros agentes morais (o Estado). Se a lei for aprovada e rigorosamente aplicada, eles perderão sua fonte de renda (ilegal). Esta vulnerabilidade, no entanto, não os exime de sua responsabilidade moral como agentes. Ela, na verdade, complexifica a solução ética. A aplicação do princípio do mal menor não significa simplesmente prender todos os garimpeiros, mas sim buscar uma solução que, ao proteger o rio (evitando o mal maior da destruição total), também considere e mitigue a vulnerabilidade desses agentes, por exemplo, através de políticas de transição para economias sustentáveis e geração de renda legal.Há rios urbanos que necessitam do mesmo reconhecimento almejado ao Arapiuns, como o Rio Belém de Curitiba: um rio totalmente urbano, canalizado e esquecido, vítima do esgoto e da impermeabilização. Ambos compartilham a mesma vulnerabilidade: a perda de sua integridade ecológica. Enquanto no Arapiuns o desafio é impedir o avanço da degradação, no Belém é reverter um dano já consolidado. Em ambos, reconhecer o rio como sujeito de direitos expressa o princípio do mal menor: limitar práticas econômicas imediatistas para evitar o colapso de um ecossistema — seja ele amazônico ou urbano.Também o Rio Tietê é digno da mesma reflexão, um rio que nasce cristalino, mas se torna um curso de esgoto ao atravessar a metrópole. Assim como o Arapiuns, ele também reflete a tensão entre desenvolvimento econômico e dignidade ecológica. Enquanto o primeiro luta contra a mineração e a exploração madeireira, o segundo sofre com a industrialização e a negligência social. Ambos são pacientes morais no sentido bioético: sofrem ações humanas e expressam, por seu estado, o grau de nossa responsabilidade moral coletiva.
  Nós como futuros bioeticistas compreendemos que os valores ameaçados pela exploração do Arapiuns é a da própria existência do rio enquanto ser e de todos os seres vivos que dependem dele, inclusive das comunidades locais. Já o valor ameaçado pelo reconhecimento do Arapiuns como sujeito de direito é econômico, sustentado pela exploração predatória. Mas a exploração econômica de uma área é sempre temporária, pois as atividades predatórias destroem e finalizam o ciclo, abandonando apenas a destruição e levando consigo a riqueza extraída. Assim, impedir que esse ciclo se concretize, reconhecendo o Arapiuns como sujeito de direitos impediria o maior mal, que é a destruição do rio, do seu ecossistema e de todas as pessoas humanas que dele dependem, em detrimento de uma geração de valor financeiro temporal. O Arapiuns, seu ecossistema e as comunidades locais (todos relativamente perenes) possuem mais valor que a “riqueza” financeira gerada com seu rastro permanente de destruição. Assim, reconhecer o Arapiuns e outros rios como sujeitos de direito é um passo importante para o futuro da natureza e da humanidade. Também compreendemos que esta visão nos permite enxergar o Princípio do Mal Menor não como uma simples calculadora de danos, mas como um imperativo de cuidado. A personalidade jurídica do rio é o “mal menor” ético apenas quando confrontada com a ameaça do 'mal maior' absoluto: a sua completa instrumentalização e destruição. Assim o ideal alcançável seria o reconhecimento de todos os rios urbanos e dos principais rios da nação como sujeitos de direito.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do PPGB tendo como base as obras:

“Arapiuns, río de derechos”: Artigo da revista Ecología Política (2023).
Instrução “Dignitas Personae” (Congregação para a Doutrina da Fé, 2008), In: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20081208_dignitas-personae_it.html
Revista internacional de bioética, deontología y ética médica, ISSN-e 2594-2166, ISSN 0188-5022, Vol. 24, Nº. 2, 2013, págs. 241-249, In: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4376850
https://ocristianismoemfoco.blogspot.com/2015/07/a-etica-crista-e-o-mal-menor.html
https://www.veritatis.com.br/principio-do-mal-menor/
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4376850
https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/1337/rio-arapiuns-no-municipio-de-santarem-pode-se-tornar-sujeito-com-direitos
https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2025/07/comunidades-do-rio-arapiuns-preservam-cultura-e-espiritualidade-tradicionais.shtml
Artigo do Padre Dário Borsi, O Reconhecimento do Rio Arapiuns: Uma Abordagem Legal da Natureza como Sujeito de Direitos, In: https://www.ecodebate.com.br/2024/06/17/o-reconhecimento-do-rio-arapiuns-uma-abordagem-legal-da-natureza-como-sujeito-de-direitos/
VIVIAN BITTENCOURT e LUCIANO FÉLIX FLORIT. Artigo: Os rios como sujeitos de direito: uma nova jurisprudência para modelos de desenvolvimento não predatórios, In: https://periodicos.pucpr.br/direitoeconomico/article/view/31094/27161

 

 

 

 

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