sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Mariana/Mg, 2015: Rompimento da fidelidade entre homem e natureza

 

Por Bianca Karina Simon; Kamila Henning Rossato da Costa; Letícia Pinholato e Vitória Sousa da Silva

 





Em 5 de novembro de 2015, na cidade de Mariana/MG, o Brasil assistiu a um ecocídio após a intervenção humana na localidade: o rompimento da barragem controlada pela Samarco Mineração S/A Além dos dezenove mortos, três desaparecidos e vários sentimentos de desespero com olhares tristes, via-se o maior desastre ambiental da história brasileira e o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos com um volume total despejado de mais de 40 milhões de metros cúbicos, conforme afirmado por Mônica Tarantino. No final do dia do ocorrido, a lama oriunda do rompimento das barragens atingiu o Rio Doce. Além disso, a lama tóxica – em decorrência do rompimento – percorreu mais de 600 quilômetros até o mar, devastando comunidades, ecossistemas e modos de vida. 

A tragédia de Mariana ilustra o fracasso do paradigma antropocêntrico que a Bioética, desde sua fundação pelo bioquímico norte americano Van Rensselaer Potter (1970), busca superar. A Bioética Ambiental nasce da necessidade de unificar a ética médica à ética ecológica, exigindo que os deveres do ser humano para com o planeta sejam reavaliados. Neste contexto, surgem correntes como o Ecocentrismo e a Biofilia que se consolidam como perspectivas futuras para a inovação e aplicação de um Direito mais alinhado com a vida. Ao analisar o contexto referente ao presente caso, verificamos que os agentes morais, além da empresa Samarco, são os Entes Federativos – especialmente o estado e município – visto a concordância da exploração do minério. Contudo, configuram-se como pacientes morais aqueles que sofreram as consequências pelos danos, por suas vezes, mesmo que indiretamente. O Rio Doce figura como paciente moral principal, visto que perdeu sua vitalidade e capacidade de regeneração, seguindo das populações do município de Mariana, as ribeirinhas, indígenas, animais e o próprio ecossistema do meio ambiente. Porém, a urgência de sua devastação exige um avanço civilizatório, que o promova de paciente a sujeito de direito[MF6] , conferindo-lhe a capacidade de ter sua dignidade intrínseca protegida, para além da utilidade humana. Historicamente, o princípio da fidelidade se destacou na Bioética Principialista[MF7] , embora não seja um dos quatro princípios primários (autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça) propostos por Beauchamp e Childress [MF8] em 1979. Na área da saúde, ele representa o dever de lealdade e confiança do profissional de saúde para com o paciente. Por outro lado, na Bioética Ambiental, este princípio é transposto para o contexto ecológico. 
      O caso do Rio Doce enquadra-se no conflito envolvendo os valores de fidelidade (princípio da fidelidade) entre homem e natureza. Vislumbra-se a exigência constante da confiança mútua entre ambos. Ocorre que, a infidelidade ocasionada pelo rompimento da barragem traduz-se em negligência, omissão e exploração predatória objetivando exclusivamente o mercantilismo. Ao abordar a tragédia do rompimento da barragem, verifica-se que se trata não apenas de problemas técnicos, mas também éticos, visto que se rompeu a fidelidade entre homem e natureza, um por visualizar inúmeras consequências à sua vida – destacam-se as perdas – e outra por perder sua capacidade de regeneração . No livro “O contrato animal”, o biólogo, zoólogo e etólogo britânio Desmond Morris (1990), questiona se o homem não está predestinado ao “fim” como ocorreu com os dinossauros. Segundo o autor, devido ao rompimento de um acordo primordial entre a espécie humana e a natureza, nós passamos a explorar o meio ambiente em vez de viver em harmonia com ele, como ocorre no caso de que se trata esse ensaio. Por outro lado, a biofilia, conceito desenvolvido pelo biólogo e entomólogo Edward O. Wilson, sustenta que o ser humano possui uma tendência inata a se conectar com as formas de vida e com o ambiente natural. Essa ligação é biológica e emocional: nossos processos fisiológicos, mentais e até genéticos são moldados em interação com o mundo natural. Por mais que a tecnologia avance, permanece no ser humano a necessidade essencial de retornar à natureza como forma de reconectar-se à própria origem e restaurar seu equilíbrio interior. 
            O rompimento da barragem não apenas afetou a paisagem, como transmitiam os jornais e mídias, mas desestruturou o equilíbrio humano. As consequências dessas tragédias afetaram diretamente a saúde de muitas pessoas , não apenas das que residiam no local. A biofilia, enquanto impulso inato de conexão, serve como fundamento psicológico para a exigência do princípio da fidelidade. Ou seja, se a Natureza é parte essencial da nossa saúde, a infidelidade com ela é um ato de autodestruição, pois o adoecimento do ecossistema é o adoecimento do ser humano. O acordo homologado pelo STF objetivando a reparação do Rio Doce pela Samarco traz uma reflexão quanto ao reconhecimento do rio como sujeito de direito, ainda que judicialmente controverso, contudo, demonstra um avanço civilizatório, pois reconhece que a natureza possui valor intrínseco. Entendemos que esse valor significa a autonomia da dignidade por ser natureza e não apenas o que ela possui de valores para oferecer ao ser humano. E, portanto, vislumbra uma importância de capacidade civil igualitária entre as partes (natureza e humana), capaz de gerar reparação de danos e, quiçá, a visão da natureza além de bem disponível ao uso do ser humano. Todas as formas de vida são dignas de respeito e possuem seu valor, pois todas fazem parte do conjunto que proporciona um equilíbrio ecológico para sustentar as vidas das espécies. O caso da tragédia de Mariana é um exemplo infeliz de colapso na fidelidade entre natureza e ser humano. Apesar de ser considerada a maior tragédia ambiental da história, temos que analisar as ínfimas ações do ser humano com a natureza e reafirmar a lealdade moral e ecológica envolvendo o equilíbrio da vida. Infelizmente, outros casos de infidelidade entre homem e natureza estão muito próximos do nosso contexto de vida, como é o caso do Rio Belém (Curitiba – PR) e de outros rios que se localizam em regiões urbanas. Historicamente as cidades cresceram as margens de rios para se utilizar dos recursos destes, criando uma conexão forte e fiel entre humanos e rios. Porém, embora as necessidades de recursos para a vida humana fossem supridas pelos rios, o ser humano, por interesses próprios, quebrou a fidelidade dessa conexão e passou a destruí-los através da poluição e da contaminação dessas fontes de água. 
            A verdadeira reparação dos rios não está apenas e exclusivamente em um acordo financeiro, mas na restauração da confiança e renovação do vínculo com a natureza. A defesa de que o rio seja reconhecido como Sujeito de Direito não é apenas um artifício legal, mas a formalização ética desse dever de fidelidade, garantindo que a nossa necessidade biofílica de um rio vivo e saudável seja legalmente inegociável para as gerações futuras. Sob a ótica da Saúde, o reconhecimento do Rio Doce (e de outros rios) como sujeito de direito é a solução consensual que explica a interdependência “Saúde do Rio = Saúde Humana”. A infidelidade ao Rio Doce resultou em doenças físicas e psicossociais nas comunidades. Portanto, nós como futuras bioeticistas acreditamos que a única forma de garantir a saúde e o bem-estar das populações atingidas e futuras é dar ao rio o direito legal de existir e fluir com integridade, transformando a proteção ambiental em uma política pública de saúde prioritária e inegociável.

Esse ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental tendo como base as obras de Van Rensselaer Potter (Bioethics: Bridgeto the Future - 1970), Beauchamp e Childress (Principles of Biomedical Ethics - 1979), Desmond Morris (O contrato animal - 1990) e Edward O. Wilson (Biophilia – 1984). Utilizado Inteligência Artificial para revisão de ortografia e geração da ilustração presente no texto.


quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Entre Correntes e Encontros: A Espiritualidade dos rios e o princípio da Alteridade na Bioética Ambiental

 

Por Flávia Dandara Rangel Coelho Diniz Nogueira, Luciane Cristine Oliveira Valdez e Vitória Della Ventura




“Río Barigui e Rio Belém refletem crise ambiental em Curitiba” esse é o título da notícia que relata a situação "ruim" desses rios, com níveis críticos de poluição detectada, devido a várias causas, incluindo o crescimento populacional sem planejamento adequado e sem direcionamento. "Rios Barigui e Belém refletem crise ambiental em Curitiba" é o título da reportagem sobre a classificação desses rios como "ruim". Os níveis críticos de poluição detectados se devem a diversas causas, incluindo o crescimento populacional sem planejamento adequado e a canalização para dar lugar a construções, deficiência de esgotamento sanitário, resíduos sólidos e ocupações desordenadas e irregulares”. A causa maior é a destinação inadequada de “esgotos domésticos tratados ou tratados com baixa eficiência”. Esta situação não é isolada, mas faz parte de um contexto global de crise ambiental. A degradação ambiental impõe desafios que extrapolam os limites ao reconhecimento dos problemas éticos e práticos da visão de que o ser humano é o centro e a medida de todas as coisas, em especial relacionadas à natureza, uma perspectiva conhecida como Antropocentrismo. A Bioética Ambiental aponta para a necessidade de reconhecer que não apenas os seres humanos, mas também os elementos naturais — como os rios — devem ter o direito de viver a sua essência. 
O que significa isso? Ao se considerar que a natureza possui uma personalidade jurídica, assim como as pessoas, é na verdade uma mudança que transpõe dos valores antropocêntricos para os biocêntricos e ecocêntricos, o que exigem que se considerem também as dimensões espirituais que as diversas culturas atribuem às águas. Este ensaio propõe refletir criticamente sobre a possibilidade de reconhecer os rios como sujeitos de direito, relacionando tal discussão com a espiritualidade e a partir da perspectiva da bioética ambiental analisar como está sendo ferido o princípio da alteridade. Tradicionalmente, o conceito de sujeito de direito restringe-se a pessoas físicas e jurídicas, aptas a serem titulares de direitos e deveres. Entretanto, experiências internacionais têm demonstrado a expansão desse conceito para elementos naturais, especialmente os rios. Casos como o Rio Whanganui (Nova Zelândia) e o Rio Atrato (Colômbia) demonstram que o direito pode se abrir a entes não humanos, reconhecendo-os como sujeitos a serem protegidos por meio de representantes legais. Essa ampliação encontra eco na bioética ambiental, que propõe uma ética do cuidado voltada ao equilíbrio ecológico e à justiça intergeracional. Diversas tradições culturais e religiosas atribuem ao rio uma dimensão espiritual. No hinduísmo, o rio Ganges é considerado uma deusa, purificadora e sagrada, cujos direitos foram discutidos judicialmente como de uma “pessoa jurídica”. Entre comunidades indígenas latino-americanas, rios são reconhecidos como ancestrais vivos, conectando passado, presente e futuro. Essa concepção espiritual reforça a ideia de que o rio não é mero recurso, mas um ente relacional, fundamental para identidade, saúde e espiritualidade comunitária. Mas a espiritualidade é mais do que a expressão de uma religião, é um momento único, intenso de integração e conexão entre corpo, mente e espírito, o momento em que o ser humano se conecta com suas dimensões humanas, naturais e cósmicas, permitindo se sentir pertencente, dar sentido a sua existência e se comprometer com os interesses da vida e da natureza. A espiritualidade, nesse sentido, funciona como lente bioética capaz de reconhecer o valor intrínseco do rio. A noção de espiritualidade amplia a ética ambiental ao incluir a reverência, a interdependência e o cuidado como princípios normativos. Assim, reconhecer um rio como sujeito de direito é também reconhecer sua sacralidade. A espiritualidade fortalece esse dever, pois integra dimensões simbólicas e afetivas na relação com a natureza. Cabe à bioética ambiental integrar essas visões, promovendo uma espiritualidade crítica que inspire cuidado efetivo e políticas públicas consistentes.
  Agora, o que acontece se pensarmos, e sobretudo se conseguirmos vivenciar, a crise a partir de uma perspectiva diferente daquela do Rio como um recurso utilitário? Que outros valores entram em jogo se abordarmos a água doce como um ser capaz de sofrer? Como abordamos o conflito da exploração econômica, social, política, cultural e moral da natureza se considerarmos o Rio a partir de suas profundezas espirituais? Descrever o conflito por meio de uma dimensão espiritual retira do centro as nossas necessidades humanas como as únicas a serem atendidas. E, em vez de humanizar o rio, leva-nos a naturalizar o humano, afirmando que a profundidade do ser dificilmente pode ser explicada pela reflexão racional. É preciso um grande esforço para deixar de lado a necessidade primária de saciar a nossa sede. O Rio Belém, como tantos outros, é vulnerável e vítima das ações humanas, devido à sua gestão a partir de uma neutralidade moral quanto ao seu verdadeiro estatuto. O rio foi explorado e poluído, sem que se percebessem as suas fraturas e cicatrizes, o seu sofrimento. Visto como um objeto material, o seu destino era ser fornecedor, destino turístico e recurso para a indústria. Isso o destruiu a ponto de perder a sua essência e pôr em risco a sua vida. Considerar que o Rio existe como tal e nos perguntarmos sobre o lugar a partir do qual devemos nos relacionar com ele é uma questão que pode ser guiada pelo princípio da alteridade. Esse princípio, concebido como origem e guia do comportamento humano, acompanha a perspectiva profunda e global da bioética de Potter  deixar de reduzir os seres ao seu estado de produtividade e nos deixar atravessar e transformar pelo encontro. Esse outro não é algo abstrato, mas se materializa e se torna visível por meio do significado dado a esse encontro. Isso faz com que a responsabilidade e o comprometimento comunitário sejam atitudes norteadoras em nossas ações em relação aos rios. Ter em mente a dimensão espiritual e o princípio da alteridade como parâmetro para avaliar eticamente as ações humanas sobre a natureza, especialmente em relação aos rios, justifica profundamente os limites impostos às nossas ações: ou seja, não comprometer a possibilidade de vida dos seres vivos. Considerar o princípio da alteridade, na forma que nos relacionamos com o rio é garantir o respeito, estabelecer limites para as nossas ações, garantir cuidado, contemplação, convivência em harmonia e relação de igualdade. Apesar dos avanços, a atribuição de subjetividade jurídica a rios enfrenta resistências, sobretudo em sistemas jurídicos baseados no antropocentrismo. O risco é que a espiritualidade seja utilizada de forma simbólica, sem efetiva proteção ambiental. A bioética ambiental deve, portanto, articular espiritualidade e racionalidade científica, unindo saberes tradicionais e normatividade jurídica para promover justiça ecológica. Quando o princípio da alteridade é considerado, protegemos e reforçamos os aspectos espirituais do rio, já que, fazer mal ao rio é fazer mal a si mesmo.
                Nós como futuras bioeticistas acreditamos que os rios não são apenas essenciais para a flora e a fauna e para o equilíbrio do ecossistema, mas também desempenham um papel fundamental na qualidade de vida das pessoas. Isso demonstra que a saúde não é determinada apenas por fatores biológicos, mas também pela dimensão espiritual que afeta diretamente as experiências humanas. Nesse sentido, um rio morto é uma causa direta de sofrimento humano. O reconhecimento dos rios como sujeitos de direito, sob a ótica da bioética ambiental, representa um passo necessário. A espiritualidade, ao atribuir valor intrínseco e reverência aos rios, reforça a legitimidade ética desse reconhecimento. O status moral e normativo que atribuímos às diversas entidades que compõem a biosfera e a forma como nos relacionamos uns com os outros determinarão as soluções que nós, como humanidade, encontraremos para esta crise. Considerar profundamente a vida de todos esses elementos nos leva a considerar a dimensão espiritual e a alteridade como categorias e princípios que devem estar presentes quando pensamos em nós mesmos como um todo. Posicionar os rios como sujeitos de direitos empodera as pessoas, em sua individualidade, comunidade e organização estatal, a responder responsavelmente às ações e omissões que afetam negativamente suas próprias chances de vida. Essa resposta normativa não será suficiente se não considerar a perspectiva global. Nesse sentido, é preciso atentar para a afirmação de que globalidade não é sinônimo de padronização de respostas, mas sim, como sustentam Cunha e Lorenzo: “seria um bom caso para justificar não na decorrência da imposição de um padrão cultural ou moral único, mas na convivência plural e solidária entre pessoas que se reconhecem como membros de uma mesma biosfera que compartilha o mesmo destino histórico”.

Deixamos aqui um momento de espiritualidade na conexão com o rio (texto Flávia Nogueira)


Nasci sujeito de direito, mas queria mesmo ter nascido rio...
Queria entender o movimento das águas, saber contornar as pedras, os galhos, as folhas... e mesmo que não entendesse, deixar seguir o fluxo, fluxo da vida que corre em cada novo encontro...
Não ter que pedir licença ou me sentir fora do lugar quando os encontros são inesperados, quando as divisas respigam as águas que escutam as prosas e cantigas de cada cultura...
Rio que corre sem a pressa do tempo, que quando há a correria é para ser cachoeira, para saudar nova vida...
Rio que corre, lava os olhos de quem quer acolhimento e que por um momento também foi água por suas lágrimas, que saúda o novo e que abençoa a sabedoria de quem o respeita...
Rio que vira espelho de nossas atitudes, que abraça a chuva e se preenche com ela, que esculpe as duras pedras no caminho, que embala a semente e a nutre, e não para um dia ser fresca com sua sombra, mas porque sabe que a semente merece germinar, rio que encharca a folha que nutre o solo...
Rio que se acalma no pisar de uma criança ao descobri-lo, que se enche de alegria ao matar a sede, mas nunca se envaidece, rio que testemunha juras de amor e o mesmo que cobre, em suas funduras, amores esquecidos...
Rio que conecta, que acalma, que limpa e que transforma!
Rio que merece ter seus direitos como sujeito mesmo sendo tanto para caber em uma palavra só!
Rio que precisa ser respeitado e livre!


Esse ensaio foi elaborado para Disciplina de Bioética Ambiental do PPGB, tendo como base as obras:


Beltrán Ulate, E. Prolegômenos para uma bioética a partir do princípio da alteridade. Revista da Escola de Estudos Gerais, Universidade da Costa Rica. Janeiro-Junho de 2017 • Volume 7, número 1. https://archivo.revistas.ucr.ac.cr//index.php/humanidades/article/view/27621/27916
Castañeda Ruiz, HN, Gómez Osorio, Á. M., Pérez Garcés, H., & Herrera Mejía, JA (2019). A declaração do Rio Atrato como sujeito de direitos: uma oportunidade para a construção de um projeto presente-futuro de território sustentável. Diário Kavilando, 11(2), 417-433
Hernández Castellanos, Donovan Adrián. (2011). Formas de alteridade: um desafio epistemológico e político. Andaimes,8(16), 11-31.
INSTITUTO AMBIENTAL DO PARANÁ. Monitoramento da qualidade das águas dos rios da Bacia do Alto Iguaçu, na Região Metropolitana de Curitiba, no período de 2005 a 2009. Curitiba: IAP, 2009. p. 100
FISCHER, Marta Luciane et al. Da ética ambiental à bioética ambiental: antecedentes, trajetórias e perspectivas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, n.2, abr.-jun. 2017, p.391-409.
POTTER, Van Rensselaer. Bioética global: construindo sobre o legado de Leopold. Lansing: Michigan State University Press. 1988
Títulos e Ilustrações obtidos por meio de Inteligência Artifical generativa Chat GPT4 e Copilot


quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Couro exótico: ceifando vidas para o luxo


Por Ana Júlia dos Santos, Ana Carolina Januário, Carmen de Freitas Nunes, Francis Zonatto, Gabriela Machado, João Victor Mueller



É possível e ético criar uma indústria sustentável de pele de animais exóticos a partir de espécies em extinção e contando com o suporte da UICN, para suprir o mercado da moda de luxo?
Pois é exatamente isso que a National Geographic (2020) aborda na reportagem “Marcas de alta-costura tiveram milhares de artigos em couro exótico apreendidos”, que traz dados sobre a apreensão de produtos feitos com a pele de répteis, capturados na natureza, inclusive em extinção. Dados estes, que evidenciam como a moda de luxo é baseada em exclusividade e status, colocando-os acima da ética e vida animal. O comércio de couro exótico diz estar preocupado com o bem estar animal e conservação das espécies, mas em sua busca desenfreada por lucro e status, fere a Declaração Universal dos Animais, proclamada pela UNESCO em 1978, que afirma em seu artigo 1º, "Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.”, e em seu artigo 2º e 3º, trata do direito ao respeito, cuidado e atenção, aos quais são responsabilidade dos seres humanos, portanto não permitindo maus-tratos e atos cruéis contra os mesmos. Também fere a Lei Nº 9.605 (1998) de Crimes Ambientais, que em seu artigo 32 tipifica como crime "praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais". As investigações de crueldade extrema no abate, como animais esfolados vivos, são uma violação direta deste artigo que trata de maus-tratos. A indústria da moda, ao utilizar peles exóticas, muitas vezes provenientes de cativeiros com condições desumanas ou de tráfico ilegal, ignora esses princípios fundamentais.

A vida desses animais é reduzida a mero insumo para um produto de luxo, violando seu direito inerente à existência digna e livre de crueldade. E seus clientes, em sua maioria, milionários, têm somente interesse na exclusividade e ostentação, as quais se sobrepõem à ética. Por isso as empresas não se preocupam em se envolver em escandalos ligados a origem ilegal da pele, pois mesmo com escandalos envolvendo o comercio ilegal de peles permanecem impunes, devido a decisão dos Estados Unidos, pais que é origem das maiores companhias de moda de luxo ligadas a couro, de não divulgar mais os nomes das empresas envolvidas em apreensõe. Essa falta de transparência contribui muito para a exploração de animais e reforça a impunidade sobre o tráfico animal. Os répteis estão sendo muito afetados, sua excentricidade e padrões de escamas chamam a atenção e estampam bolsas, sapatos, carteiras e roupas de luxo. O fascínio estético acaba sendo usado de justificativa para essas práticas que colocam em risco a biodiversidade, banalizando a vida animal. A moda sustentável está sendo deixada de lado, para priorizar status social e lucro, associando o uso de peles e couros exóticos ao prestígio, reforçando ideias ultrapassadas de exclusividade, baseadas na exploração ilegal da natureza. Muitas empresas praticam o greenwashing, abordagem que visa deturpar a visão de sustentabilidade ao apresentar para o consumidor uma ideia de responsabilidade ecológica, como estratégia de marketing, enquanto a empresa continua a poluir ou explorar recursos naturais ilegalmente. Por outro lado, empresas realmente sustentáveis enfrentam dificuldades para entrar e permanecer no mercado, e o luxo domina, promovendo distinções sociais. No Brasil a Lei Arouca, formalmente Lei nº 11.794/2008, não possui uma aplicação direta na indústria da moda no que se refere à produção de roupas, tecidos e acessórios. O escopo dessa legislação é estritamente focado em regulamentar o uso de animais vivos em atividades de pesquisa científica e de ensino. Isso significa que a lei estabelece normas para procedimentos realizados em laboratórios e instituições de ensino, como testes de medicamentos, estudos de doenças ou aulas de práticas cirúrgicas, mas não abrange o uso de animais como matéria-prima. Dessa forma, a Lei Arouca não legisla sobre a produção de materiais de origem animal amplamente utilizados na moda, como o couro, a lã, a seda, as peles ou as plumas. As atividades relacionadas à obtenção desses materiais, como a criação de gado para a produção de couro ou a tosquia de ovelhas para a obtenção de lã, são regulamentadas por outras esferas da legislação, principalmente por normas do Ministério da Agricultura ligadas ao bem-estar animal na agropecuária e pela Lei Nº 9.605 (1998) de Crimes Ambientais, que trata de maus-tratos. A única situação em que a Lei Arouca poderia tangenciar a indústria do vestuário seria de forma muito indireta: por exemplo, se um novo corante ou produto químico têxtil precisasse passar por testes de toxicidade em animais para garantir sua segurança antes de ser comercializado. Nesse caso, o procedimento de pesquisa científica em si teria que seguir as diretrizes da Lei Arouca. Portanto, o debate sobre o uso de animais na moda de vestuário não é guiado pela Lei Arouca, e sim por questões éticas, pela pressão de consumidores e organizações de direitos dos animais, e pelo crescimento de movimentos como a moda vegana e sustentável, que buscam alternativas livres de crueldade. Desta forma, na legislação brasileira, a proteção à fauna tem respaldo na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) e na Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/1967), que além de coibir o comércio de produtos derivados de animais, tange à utilização inadequada, caça, maus-tratos, captura e perseguição de animais domésticos, domesticados e selvagens. À vista do que foi previamente abordado, a indústria da moda de alta-costura viola os princípios da dignidade à vida animal, fazendo-se necessárias ações de fiscalização mais rigorosas na apreensão de objetos e na apuração de irregularidades praticadas por funcionários públicos em exercício de seus cargos, aplicando multas elevadas e sanções comerciais às empresas que corroboram com tais ações.

Nós, como futuros biólogos, repudiamos veementemente a utilização de animais como artigos de luxo. Denunciamos o grave retrocesso ético que a atual normalização da crueldade em prol da ostentação representa. Práticas antes amplamente criticadas estão sendo revalidadas pelas elites, que financiam o sofrimento animal e fomentam o consumo de itens oriundos do tráfico, meramente para afirmação de status e diferenciação social, em detrimento de alternativas sustentáveis. Cabe a nós, profissionais da área, e a toda a sociedade pressionar esses grupos — consumidores e marcas. O silêncio, neste contexto, equivale ao consentimento. Devemos, portanto, nos posicionar firmemente contra tais práticas para garantir a dignidade e os direitos dos animais.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Biologia e Evolução do comportamento animal e se baseou e se baseou na análise de documentos científicos como o estudo da CUNY publicado na EcoHealth, investigações de ONGs (PETA) e legislações vigentes sobre maus-tratos e bem-estar animal, para fundamentar a discussão sobre o comportamento humano de consumo. Também foram consultados vídeos que demonstram nitidamente tais infrações.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Animais no entretenimento: até onde vai o nosso direito de usar a vida de outros?

por Déborah Souza, Mariane Pinheiro e Melissa Santos


Você já parou para pensar no que acontece por trás de espetáculos que usam animais como “atração”? Circos, zoológicos, rodeios, vaquejadas ou parques aquáticos são vendidos como momentos de diversão em família, mas muitas vezes escondem uma realidade bem diferente para os bichos que estão ali. A questão não é só se os animais são bem cuidados ou se o público gosta, mas sim, será que é justo transformar seres vivos em entretenimento? Um exemplo marcante foi o caso de Tilikum, uma orca mantida pelo SeaWorld que esteve envolvida em três mortes humanas ao longo de sua vida em cativeiro. O episódio mais conhecido e chocante foi em 2010, quando Tilikum matou sua treinadora, Dawn Brancheau, diante de visitantes horrorizados (CBS News). O documentário Blackfish (YouTube) deu visibilidade internacional ao caso, levantando debates sobre estresse, sofrimento psicológico e agressividade em animais privados de liberdade. No Brasil, embora não tenhamos parques de orcas como o SeaWorld, também enfrentamos situações que mostram a fragilidade da relação entre humanos e animais em cativeiro. Um exemplo trágico aconteceu em 2014, no zoológico de Cascavel (PR), quando uma criança de 11 anos, teve seu braço arrancado ao atravessá-lo pela grade da jaula de um tigre (Diário Gaúcho). O menino acabou sofrendo amputação. O caso repercutiu em todo o país e levantou a discussão sobre responsabilidade compartilhada: até que ponto é culpa da família que não supervisionou, da criança curiosa ou da instituição que não ofereceu barreiras de segurança adequadas?O comparativo entre Tilikum e o tigre é revelador. Em ambos os casos, o animal foi retratado como “perigoso e culpado”, quando, na verdade, estava apenas reagindo ao ambiente artificial e às situações impostas. Tanto a orca quanto o tigre não estavam ali por escolha: eram mantidas em espaços de confinamento para satisfazer a curiosidade e o entretenimento humanos. Além disso, temos práticas culturais como a vaquejada, que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2016, o tribunal considerou a prática inconstitucional por causar maus-tratos aos animais (ADI 4983 – disponível em JusBrasil). A decisão foi simbólica porque reforça que tradição não pode ser justificativa para sofrimento animal. Mas será que a lei brasileira é suficiente? Temos alguns avanços, sim. A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), em seu artigo 32 (Planalto), prevê punição para quem maltrata animais. Também existe a chamada Lei Arouca (Lei nº 11.794/2008), que regulamenta o uso científico de animais (Fiocruz). E a própria Constituição de 1988, no artigo 225, § 1º, inciso VII, determina que o Estado deve proteger a fauna e vedar práticas cruéis (Planalto). Ou seja, a base legal existe, o que falta muitas vezes é mudança cultural, fiscalização, e como consequência uma punição adequada. No caso de Tilikum, a pressão social e a mídia internacional resultaram em mudanças concretas: o SeaWorld anunciou o fim da reprodução de orcas em cativeiro e uma mudança nos shows, além da criação de uma lei (CBS News). Já no Brasil, tragédias como a da criança atacada por tigre ainda não provocaram uma reforma estrutural nos zoológicos, que seguem existindo com propostas educativas, mas muitas vezes em condições precárias. É importante, porém, não demonizar todos os zoológicos, já que muitos realizam um trabalho imprescindível de educação ambiental acessível, conservação de espécies ameaçadas, reprodução em cativeiro, programas de soltura de animais reabilitados na natureza e outras ações relevantes. O que deve gerar revolta não é a existência dos zoológicos em si, mas a resistência daqueles que se negam a se adequar para garantir o verdadeiro bem-estar animal. No fim das contas, a forma como tratamos os animais em nome do entretenimento diz muito sobre os valores da sociedade. Queremos um mundo em que diversão signifique exploração e risco? Ou queremos uma convivência mais respeitosa, que preserve a dignidade dos animais e a segurança das pessoas?

 



          Nós, como futuras biólogas, acreditamos que talvez a resposta esteja em uma transição: substituir práticas cruéis por alternativas éticas, como santuários devidamente fiscalizados e com uma equipe multiprofissional para garantir o bem estar desses animais, reservas abertas, como o caso do Projeto Tamanduá aqui no Brasil, que trabalha com pesquisa, conservação e soltura de tamanduás e tatus reabilitados (Projeto Tamanduá), ou até experiências virtuais de realidade aumentada para redes de ensino e outros públicos, para garantir que todos tenham acesso a esses animais de forma segura e sem deixar de ter uma experiência realista e que possa ser acessível a todos. Se o entretenimento é feito para encantar, ele não deveria ser construído sobre sofrimento.

💭 E para ampliar o debate, deixamos aqui uma provocação:

Será que as redes sociais não estão se tornando os novos “palcos” de entretenimento animal, onde curtidas e visualizações substituem aplausos, e o que parece “fofo” pode esconder sofrimento e exploração? Em meio a tantos vídeos de bichinhos engraçados, é fácil esquecer que, muitas vezes, há privação e/ou estresse por trás das câmeras. Talvez o desafio atual esteja na forma como consumimos e reproduzimos conteúdos digitais. Afinal, o respeito pelos animais também passa por repensar o que escolhemos assistir, compartilhar e normalizar online.


Este ensaio foi elaborado para a disciplina de Biologia e Evolução do Comportamento Animal, tendo como base as obras e legislações:

Blackfish (2013) – Documentário disponível em YouTube
Lei nº 9.605/1998 – Crimes Ambientais
Lei nº 11.794/2008 – Lei Arouca
ADI 4983 – Vaquejada no STF (JusBrasil)
Imagem que ilustra o ensaio elaborada pelos autores utilizando IA (2025).

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Biofilia: reconectar humanos à vida para cidades mais saudáveis e sustentáveis



por Marta L Fischer


A biofilia, do grego bios (vida) e philia (afeição), representa a inclinação natural do ser humano para se conectar com os seres vivos e com os elementos da natureza. Esse conceito expressa não apenas uma afinidade estética ou emocional, mas um vínculo evolutivo que moldou nossa espécie ao longo do tempo. O termo foi introduzido pelo psicanalista Erich Fromm, na década de 1960, para designar o “amor pela vida e por tudo o que está vivo”, em oposição à necrofília, ou seja, a atração pela destruição e pela morte. Contudo, foi o biólogo Edward Osborne Wilson (1929–2021), professor da Universidade de Harvard, quem consolidou o termo como base científica para compreender a relação entre seres humanos e natureza. Em sua obra Biophilia (1984), Wilson propôs que a necessidade de contato com o mundo natural é um traço herdado da evolução, resultado de milhões de anos em que a sobrevivência humana dependeu da observação atenta de ecossistemas, paisagens e organismos vivos.
Wilson foi também um dos fundadores da sociobiologia e um dos grandes divulgadores da conservação da biodiversidade, articulando ciência e ética em torno da ideia de que proteger a vida no planeta é proteger a nós mesmos. Sua parceria com Stephen R. Kellert, na obra The Biophilia Hypothesis (1993), ampliou o debate para outras áreas, como psicologia ambiental, filosofia, arquitetura e planejamento urbano, consolidando o campo do design e das cidades biofílicas. Esse paradigma entende que o bem-estar humano depende da reintegração da natureza nos espaços cotidianos, desde residências e escolas até hospitais e ambientes corporativos. Nas últimas décadas, a urbanização acelerada, o avanço da tecnologia e a artificialização das experiências humanas têm provocado o que o escritor Richard Louv denominou “transtorno de déficit de natureza” — um conjunto de sintomas físicos, emocionais e cognitivos associados à escassez de contato com ambientes naturais. Embora o termo não represente uma categoria médica formal, ele tem sido amplamente utilizado em pesquisas e políticas públicas para alertar sobre os efeitos do distanciamento da natureza sobre a saúde mental, o desenvolvimento infantil e a coesão social.
Viver em cidades densamente construídas, com pouco verde acessível, limita a recuperação psicológica e reduz a empatia ambiental, agravando a crise ecológica e humanitária contemporânea. É nesse contexto que emergem as cidades biofílicas — espaços urbanos concebidos para restaurar a conexão entre pessoas e natureza. O design biofílico, inspirado na hipótese de Wilson, propõe integrar elementos naturais e padrões orgânicos na arquitetura e no urbanismo, por meio da luz natural, da ventilação cruzada, do uso de vegetação e da presença de água, além de materiais e formas que evoquem a vida. Estudos recentes mostram que mesmo breves períodos — cerca de quinze minutos diários — em contato com ambientes verdes podem reduzir o estresse, melhorar a concentração e promover sensação de vitalidade e pertencimento. Cidades que investem em infraestrutura verde, jardins verticais, corredores ecológicos e áreas de convivência arborizadas estão, de fato, investindo em saúde pública, educação ambiental e coesão social. A biofilia também se insere como um eixo estratégico dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU. Ela dialoga diretamente com o ODS 3 (Saúde e Bem-Estar), ao reconhecer os efeitos positivos da natureza sobre a saúde física e mental; com o ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis), ao promover espaços urbanos inclusivos, resilientes e acessíveis; e com o ODS 15 (Vida Terrestre), ao fortalecer o compromisso com a conservação da biodiversidade e a restauração dos ecossistemas. Sob essa ótica, a biofilia se torna também uma questão ética e social: trata-se de garantir o direito de todos ao acesso à natureza, superando as desigualdades ambientais que fazem com que as populações mais vulneráveis vivam em territórios com menos áreas verdes e piores condições ambientais. Assim, pensar biofilia hoje é pensar em uma reconciliação: entre natureza e cultura, entre ética e estética, entre desenvolvimento e cuidado. Ela nos convida a rever a forma como planejamos, habitamos e compartilhamos o espaço urbano, incorporando a dimensão do vivo como princípio de saúde coletiva e justiça ecológica.

Inspirado por essa visão, o Grupo de Pesquisa Bioética Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná está desenvolvendo um conjunto de investigações que integram ciência, ética e sensibilidade ecológica. Nossos três questionários de iniciação científica buscam compreender como as pessoas percebem, experienciam e desejam transformar os espaços urbanos em ambientes mais biofílicos, acessíveis e sustentáveis. Convidamos você, leitor e leitora, a participar dessa construção coletiva, contribuindo com suas respostas e reflexões. Seu olhar é essencial para que possamos avançar rumo a cidades mais vivas, justas e inclusivas — cidades que respeitam o direito universal à natureza e reafirmam a vida como o valor central da ética contemporânea.



Questionário sobre Rios Urbanos Clique aqui




Questionário sobre espaços Biofílícos Clique aqui




Questionário sobre Aves Urbanas Clique aqui





Referências
Wilson EO. Biophilia. Harvard University Press, 1984.
Kellert SR, Wilson EO (eds.). The Biophilia Hypothesis. Island Press, 1993.
Louv R. Last Child in the Woods: Saving Our Children from Nature-Deficit Disorder. Algonquin Books, 2005.
ONU. Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://www.un.org/sustainabledevelopment.
Frontiers in Psychology. Biophilia and Well-being. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2021.700709/full.
Urban Transformations. Planning Cities with Nature. Disponível em: https://urbantransformations.biomedcentral.com/articles/10.1186/s42854-024-00066-2.

domingo, 5 de outubro de 2025

Lançamento da Pastoral da Ecologia Integral – Um Encontro de Sentidos e Esperanças


Por Marta Fischer


Ontem, 4 de outubro de 2025, vivi uma experiência que quero registrar não apenas como pesquisadora, mas como alguém profundamente tocada pelo encontro entre fé, ciência e compromisso com a vida. A Arquidiocese de Curitiba realizou o lançamento da Pastoral da Ecologia Integral, em um evento associado à pré-COP 30, reunindo vozes diversas em torno de um mesmo propósito: o cuidado com a Casa Comum. 
      A abertura foi conduzida com sensibilidade e inspiração pelo bispo de Curitiba, Dom Reginei José Modolo, acompanhado do coordenador da nova pastoral, Marcus Vinicius Segedi da Silva, que destacaram a importância de integrar espiritualidade e ação concreta em favor da ecologia integral. Em seguida, tive a honra de abrir as falas representando a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), o Programa de Pós-Graduação em Bioética (PPGB), o Grupo de Pesquisa em Bioética Ambiental e o Comitê da Água (Blue University). Ao meu lado, o Dr. Raphael Rolim de Moura apresentou as iniciativas de sustentabilidade implementadas em Curitiba, mostrando como políticas públicas e engajamento social podem caminhar juntos. Na sequência, o Dr. Elias Wolf, também da PUCPR e membro do Comitê da Água, junto da Irmã Neriuza e Fabiane refletiram sobre a encíclica Laudato Si’, a ecologia integral e a relação desses princípios com os debates internacionais da COP. Encerrando o evento, Patrícia e a Dra. Márcia Sacoman Kszan, uma das organizadoras, compartilharam as ações já em curso pela Pastoral da Ecologia Integral Estadual e os próximos passos da pastoral em Curitiba.
Participar desse evento foi, para mim, uma grata surpresa e um presente. Confesso que não sabia exatamente o que encontraria. Na véspera, comentaram que havia 32 pessoas inscritas. Mas, ao chegar, me deparei com um auditório lotado, repleto de energia e diversidade: biólogos, geógrafos, engenheiros ambientais, professores, líderes comunitários — pessoas que, em suas realidades, já fazem diferença com ações criativas e inspiradoras. Antes de falar, decidi que não usaria imagens ou slides. Falar sobre mudanças climáticas quase sempre nos conduz a mostrar catástrofes e destruição, mas naquele momento, eu queria propor um olhar para dentro. Levei comigo um texto preparado, mas ele adormeceu sobre a mesa. Quando assumi a fala, deixei meu coração falar. Se era para ser técnico, foi bioético — como é da minha essência. Senti a troca acontecer ali mesmo, de forma viva. A fala do Dr. Raphael me contagiou ainda mais, e a participação do público trouxe questionamentos que ampliaram o diálogo. Um dos presentes observou que eu usava “clima” e “tempo” como sinônimos — e me lembrou que o clima seria algo muito maior, que as variações do tempo seriam passageiras. Questionei: o tempo é o presente, é o que vivenciamos. Precisamos esperar 500 anos para enxergar o clima? As transformações dos últimos 150 anos, com tanta dor e desequilíbrio, não bastam como sinal de alerta? Está tudo normal? É isso?
As falas seguintes também me tocaram profundamente, especialmente aquelas que trouxeram a vivência das comunidades mais vulneráveis, que enfrentam de perto os impactos das desigualdades ambientais. Foi revigorante ver a realidade ganhar voz — aquela mesma realidade que tantas vezes discutimos em nossos gabinetes acadêmicos. No intervalo, reencontrei Deyse Dotto, uma ex-aluna do início da minha carreira — um abraço reconfortante. Vieram também outras pessoas se aproximar, compartilhar percepções, agradecer, trocar ideias. Cada gesto, cada olhar, cada conversa me reabastecia. Fazia tempo que não sentia tão forte a sensação de pertencimento e preenchimento. Saí desse encontro com o coração leve e cheio de esperança. Levo comigo a certeza de que a ecologia integral é, antes de tudo, um chamado à comunhão: entre saberes, entre pessoas, entre fé e ciência. Ao final ajudei a plantar o Ipê Amareno na calçada a frente da Arquidiocese marcando a fundação da Pastoral da Ecologia Integral. Meu agradecimento especial ao Padre Elias Wolf, pela indicação do meu nome e pela oportunidade de integrar essa rede de pessoas que cultivam o mesmo propósito — que nossas ações frutifiquem em mais sentimentos bons, mais esperança e menos sofrimento para o planeta.



Mudanças Climáticas pelo olhar de uma Bioeticista


    
O clima é uma preocupação legítima de todos os habitantes do planeta. Não há um único dia em que não se noticie alguma catástrofe ambiental: enchentes, secas, incêndios, calor ou frio extremos. Esses eventos, independentemente do país em que ocorrem, carregam perdas humanas, materiais e espirituais. Em um mesmo lugar, onde meses atrás pessoas morreram pelo calor extremo, hoje podem enfrentar nevascas. Embora todos sejam vulneráveis, o nível de sofrimento e a dignidade das pessoas são inversamente proporcionais ao desenvolvimento do país.
    O clima pode ser compreendido por múltiplas perspectivas que se entrelaçam em diferentes dimensões da vida humana. Na dimensão espiritual, simboliza a força criadora do divino, como bênção nas chuvas que fertilizam ou juízo em secas e tempestades. Na social, é mediador de vínculos, conversas e preocupações coletivas, aproximando pessoas pela solidariedade ou gerando conflitos por desigualdade de riscos. Na cultural, molda narrativas, rituais, festas agrícolas e práticas de cuidado. Na ética, convoca responsabilidade compartilhada, justiça climática e dever com as gerações futuras. Na legal, dá origem a normas, tratados e direitos ambientais. Na ambiental, é central para a vida, regulando ecossistemas e a interação entre espécies, sendo determinante para uma chance de futuro da vida em nosso planeta.
    O clima regula o ritmo do planeta, influenciando ciclos circadianos, mensais e anuais de todas as espécies. Ao longo de 4,5 bilhões de anos, esse ritmo foi incorporado aos ciclos de vida, em uma harmonia impressionante orquestrada por uma força invisível. Mas uma espécie, com seus grandes feitos tecnológicos, conseguiu interferir nesse sistema, e agora os ritmos internos já não encontram identificação com os externos e a vida em nosso planeta adoece em descompasso.
Alo longo da história do planeta ocorrem Períodos glaciares e interglaciares (Pleistoceno, últimos 2,6 milhões de anos): ciclos de avanço e retração de geleiras causados por variações orbitais da Terra (ciclos de Milankovitch), com temperaturas globais variando até 5–6 °C. Ótimo climático do Holoceno (~9.000–5.000 anos atrás): períodos mais quentes que favoreceram expansão agrícola e assentamentos humanos. Ótimo climático medieval (~950–1250 d.C.): aumento moderado de temperatura em algumas regiões do Hemisfério Norte, ligado a variações solares e vulcânicas. Pequena Idade do Gelo (~1300–1850): resfriamento global moderado, associado a atividade solar reduzida e erupções vulcânicas.
Evidências arqueológicas mostram que o ser humano pré-histórico já causava impactos locais significativos. Alguns exemplos reais:
Extinção da megafauna: caça intensiva contribuiu para a perda de mamutes, preguiças-gigantes e gliptodontes.
  
 
Queimadas e destruição de florestas: populações pré-históricas utilizavam o fogo de forma sistemática para abrir clareiras e facilitar a caça e a agricultura inicial, como na Austrália há 40 mil anos. Poluição inicial: análises de gelo da Groenlândia revelam aumento de chumbo atmosférico já na Antiguidade por queimadas em grande escala; Alteração de cursos d’água: canais e sistemas de irrigação neolíticos modificaram rios, levando a salinização e degradação hídrica. Agricultores da Mesopotâmia e do Vale do Indo, que já enfrentavam salinização do solo e degradação hídrica
Sambaquis no Brasil: esses grandes depósitos de conchas, ossos e restos de fauna, construídos por populações costeiras há 8 mil anos, transformaram radicalmente a paisagem litorânea. Eles alteravam o solo, o relevo e os ecossistemas marinhos ao acumular toneladas de matéria orgânica e calcária, funcionando como verdadeiras “cidades de conchas”.
    As Mudanças climáticas só passaram a ser consideradas um problema real na Revolução Industrial, com a queima massiva de carvão, petróleo e gás aumentando as emissões de gases de efeito estufa e a constatação do buraco na camada de ozônio (uma camada que existe ao redor do planeta e funciona um filtro natural, absorvendo a maior parte da radiação ultravioleta (UV) do Sol, que é prejudicial à vida na Terra). Mas desde 1896, Arrhenius já projetava que o aumento de CO₂ aqueceria a atmosfera. No século XX, o tema ganhou caráter social e político, culminando na criação em 1988 do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) um órgão da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) - quando a comunidade internacional reconheceu oficialmente a crise climática como um desafio global que ultrapassa fronteiras naturais e exige cooperação internacional. Seu objetivo é fornecer avaliações científicas rigorosas e imparciais sobre as mudanças climáticas, seus impactos e possíveis estratégias de mitigação e adaptação.
    Fatos observados: o escurecimento do ar nas cidades industriais devido à fuligem do carvão; aumento de doenças respiratórias entre trabalhadores; desmatamento acelerado para expansão agrícola e industrial; secas e enchentes mais intensas registradas em regiões da Europa; e, no campo científico, a constatação de que o dióxido de carbono retém calor (descoberta de John Tyndall em 1859). Projeções iniciais, como as de Arrhenius, mostravam aumento da temperatura global e alterações em regimes de chuva e fertilidade do solo. Críticos sociais como Marx e Engels ressaltaram efeitos indiretos da industrialização sobre a vida humana e ambiental. Nos anos 1980, eventos como Chernobyl (1986) e o buraco na camada de ozônio, somados a desastres climáticos, reforçaram a urgência. As ações internacionais contra as mudanças climáticas se estruturam principalmente em acordos globais negociados no âmbito da ONU, a partir da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1992). Entre os principais marcos: Protocolo de Kyoto (1997), Acordo de Paris (2015), COPs anuais (Conferências das Partes), Fundo Verde para o Clima (2010). 

 
As evidências de impactos aumentam a cada dia, mostrando que se trata de uma realidade já instalada: Recifes de coral: branqueamento e risco de desaparecimento de 70% a 90% com +1,5 °C. Biodiversidade terrestre: derretimento do Ártico, incêndios frequentes, colapso de polinizadores e migração de espécies. Saúde física: mais mortes por calor, aumento de doenças respiratórias e expansão de doenças vetoriais. Saúde mental: ansiedade climática, depressão e estresse pós-traumático crescentes. Catástrofes extremas: furacões intensos, megainundações, secas prolongadas e incêndios devastadores.
    O negacionismo climático desconsidera ou minimiza essas evidências, muitas vezes por interesses econômicos, políticos ou ideológicos. Ele atrasa políticas de mitigação e adaptação, perpetua padrões de consumo insustentáveis e aumenta o risco de catástrofes. Os adeptos do negacionismo incluem: setores políticos que veem medidas de mitigação como ameaças à economia ou à indústria fóssil; empresas ligadas a combustíveis fósseis ou desmatamento; e alguns grupos ideológicos que rejeitam consenso científico por razões culturais, econômicas ou religiosas. Muitas vezes esses atores financiam campanhas de desinformação para gerar dúvida sobre a ciência climática. Na luta contra as consequências das mudanças climáticas, o negacionismo é um obstáculo sério: atrasa políticas de mitigação e adaptação, dificulta investimentos em energia limpa e reduz a conscientização pública. Ele contribui para a manutenção de padrões de consumo e exploração ambiental insustentáveis, aumentando o risco de catástrofes, perdas de biodiversidade e impactos sociais e econômicos.
Embora o planeta já tenha passado por mudanças climáticas naturais. A diferença principal é que estas ocorreram lentamente permitindo que ecossistemas e sociedades humanas se adaptassem lentamente, ao longo de séculos ou milênios. Hoje, a mudança é rápida, global e impulsionada pelo ser humano, principalmente pela queima de combustíveis fósseis, desmatamento e emissões de gases de efeito estufa, elevando a temperatura média global cerca de 1,1 °C desde o período pré-industrial em apenas ~150 anos. Além disso, os impactos atuais são globais, simultâneos e combinam aumento de extremos climáticos, acidificação dos oceanos e derretimento acelerado de geleiras, o que não tem paralelo nas mudanças naturais anteriores.Parte inferior do formulário Com impactos simultâneos sobre clima, oceanos e ecossistemas, sem paralelo na história natural.
  
 
Estatísticas, fatos históricos, opiniões e percepções estão disponíveis para serem mobilizadas, a questão é como? As nações, cientistas e coletivos populares estão tentando fazer algo, mas quando falamos de um problema global, com uma pluralidade de agentes morais que tomam decisões com base em seus valores e interesses e uma despreocupação com vulneráveis sem voz, é um desafio.
Quem sofre é quem está na ponta e não pode fazer quase nada para mudar, embora a narrativa midiática diz para fazer sua parte, mesmo que seja separando o lixo. O compromisso seve ser coletivo. Precisamos urgentemente procurar uma nova forma de ouvir e se conectar com a natureza. A forma que nos ensinaram não está dando certo. Será que não precisamos de uma cosmovisão, que mobilizem conjunto de ideias, valores, crenças e interpretações que as pessoas e sociedade têm sobre o mundo, a natureza, o cosmos e o lugar do ser humano nele. Não seria essa nova visão capaz de funcionar como lente através da qual se compreendem fenômenos naturais, sociais, espirituais e existenciais, orientando comportamentos, decisões e práticas culturais. Integrando percepção, conhecimento e valores, moldando como interpretamos o universo e como nos relacionamos com ele, influenciando ética, cultura, ciência e espiritualidade. A meu ver, estamos procurando soluções em uma mesma estrutura de pensamento, de valores e de crenças, ajustamos um lado, remendamos outro, mas ainda estamos na mesma estrutura, no qual o Ser humano ainda se vê de fora da natureza. A Natureza é o outro, que deve ser domando, controlado e previsível. Enquanto seguimos nessa perspectiva, não haverá equilíbrio, harmonia e conexão. 



Obrigada!