quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Quando os Rios Falam: Bioética e o Direito à Vida das Água...



... Rio Belém como sujeito de direitos: educação e solidariedade

Emanuele Caroline da Silva,
médica coloproctologista
Liz Yumi Saguti,
médica nefrologista





A expressão “sujeito de direito”, tradicionalmente, refere-se a todo cidadão que possui direitos, como o direito à vida, à liberdade e à igualdade. Hoje, ser sujeito de direitos significa ter direitos e garantias fundamentais que são asseguradas pela Constituição Federal e pelas leis, permitindo com que a pessoa possa exercer determinados direitos em seu nome próprio. Mas nem sempre foi assim. No Brasil, as crianças e os adolescentes apenas foram considerados como sujeitos de direitos com a Constituição Federal de 1988. Desde a segunda metade do século XX, depois das duas grandes Guerras e, principalmente, devido a diversas tragédias ambientais, começaram a aparecer os primeiros movimentos de proteção ambiental e animal. Esses movimentos, em certo sentido, caracterizam uma busca pela ampliação do conceito de sujeito de direitos, passando a englobar o meio ambiente e os animais. 
Nesse contexto, ainda no século XX, a Bioética Ambiental e o Direito Ambiental se desenvolveram como ramos do conhecimento que buscam pensar quais seriam os princípios que poderiam ser usados para a proteção ambiental e defesa de direitos. Na Bioética, o princípio da solidariedade, por exemplo, está relacionado com o bem comum e com a busca de uma ética universal, pensando a sociedade como um grupo de pessoas onde um respeita os direitos e as vontades do outro, e todos atuam para o bem de todos.
Sabe-se que boa parte dos direitos foram conquistados historicamente. Pela teoria das gerações dos direitos humanos, a solidariedade é um direito considerado de terceira geração. Na história da conquista e do desenvolvimento dos principais direitos humanos, os chamados direitos de terceira geração são os direitos coletivos e difusos, chamados de direitos de fraternidade ou solidariedade. De acordo com Felipe Dalla Vecchia, “trata-se de direitos de titularidade coletiva; ou seja, são titularizados por uma coletividade de indivíduos que podem ser indetermináveis e se destinam à proteção da coletividade como um todo.” Esses direitos são aqueles que se relacionam à solidariedade e à fraternidade, preocupando-se, por exemplo, com o meio ambiente, com a paz e com o desenvolvimento social. Assim, a preocupação com a defesa do meio ambiente nasceu, inclusive, nesse período, como um direito de terceira geração.

Segundo o artigo “A natureza como sujeito de direitos”, do site ((o))eco, atualmente, existem duas correntes principais de pensamento sobre a relação do meio ambiente com o conceito de sujeito de direitos. Uma primeira corrente nega a natureza como sujeito de direitos. Já para a segunda corrente, reconhece-se a natureza como sujeito de direitos, pensamento que está mais alinhado à Bioética Ambiental e ao Direito Ambiental, portanto. Ainda, na mesma matéria, o site de jornalismo ambiental explica que, em 2017, após o desastre da Samarco, apareceu no noticiário o ajuizamento de uma ação pelo próprio Rio Doce. A ação continha diversos problemas técnicos, mas caracteriza um episódio em que aparece um rio como um sujeito de direitos.
Pensando o rio como um sujeito de direitos, a ética da solidariedade estaria sendo concretizada, na medida em que a proteção dos direitos do rio garante também os direitos das pessoas humanas, de forma recíproca. Ao se considerar que o rio tem a garantia do direito à vida, por exemplo, quando uma lei ambiental evita que uma pessoa polua o rio ou quando a lei pune a pessoa que poluiu as águas do rio, essa proteção da vida de um bem natural é também a proteção da própria vida da pessoa humana, uma vez que os seres humanos dependem da existência da natureza, o que caracteriza uma ética da solidariedade.

A proteção do rio contra exploração e poluição permite que ele possa manter seu ecossistema e fornecer recursos de forma sustentável. Ainda, o envolvimento da população, em especial de comunidades ribeirinhas em práticas de recuperação e preservação dos rios, implica no compromisso destas com sua própria saúde e qualidade de vida, havendo assim um respeito mútuo tanto com os direitos do rio quanto com seus próprios direitos de existir e prosperar. Além disso, o debate sobre o meio ambiente e os animais como sujeitos de direitos deve ser levado para dentro da escola. Como o pensamento das pessoas demora gerações para ser modificado, é somente através da educação ambiental que as pessoas começarão a se conscientizar do problema da poluição e do desmatamento, por exemplo.
Dessa forma, a educação ambiental contribui, no longo prazo, para combater os problemas ambientais e constituir uma relação mais harmoniosa do ser humano com o meio ambiente, caracterizando uma forma de solidariedade. No Brasil, a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) foi instituída em 1999 e regulamentada em 2002, estabelecendo princípios, diretrizes e objetivos para a Educação Ambiental no Brasil, visando a conscientização e ações de preservação do meio ambiente, uso sustentável dos recursos naturais e desenvolvimento de uma sociedade responsável em relação às questões socioambientais. Dentre os objetivos fundamentais da Educação Ambiental, destacam-se: “o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos; estímulo e fortalecimento de uma consciência crítica sobre a problemática ambiental e social; incentivo à participação individual e coletiva, na preservação do equilíbrio do meio ambiente; o fortalecimento da cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamentos para o futuro da humanidade”.
No caso do Rio Belém, algumas propostas que visam sua revitalização incluem ações de educação ambiental e mutirões de limpeza e plantio. Em 2016 foi lançada a campanha “Mais Vida no Rio Belém”, cujo objetivo era o incentivo à proteção e recuperação do rio, de modo a envolver a população local em ações de educação ambiente permanente. Como parte da campanha foi criada uma cartilha denominada “Vamos dar vida ao Rio Belém?”, que continha informações geográficas sobre sua bacia hidrográfica, dados sobre sua poluição e ações que poderiam auxiliar na recuperação do rio. O olhar do Rio como um “sujeito de direitos” sob a perspectiva da educação possui implicações em valores, com destaque para a interdependência com a natureza; educação crítica, de modo a fazer pensar sobre o impacto das ações humanas sobre o meio ambiente; comunidade, promovendo a participação ativa na proteção de recursos, e cultural, de forma a envolver as comunidades locais e levantar aspectos culturais acerca dos rios.

Pensando na educação e formação de consciência ambiente, é necessário que seja dada importância à transformação cultural, com a mudança de uma abordagem antropocêntrica para a chamada de ecocêntrica, promovendo assim um equilíbrio entre seres humanos e a natureza; a implementação de ações prática, tais como projetos educacionais de limpeza dos rios e reflorestamento; promoção de mudança de mentalidade, justamente a fim de aceitar a ideia do rio como um “sujeito de direito”; a capacitação de educadores e a mudança de políticas públicas.
Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que reconhecer o rio como sujeito de direitos é essencial para fortalecer a ética da solidariedade e a preservação ambiental. A bioética deve ir além das relações humanas e considerar a interdependência entre os seres vivos e os ecossistemas. A educação ambiental desempenha um papel fundamental nessa mudança de perspectiva, pois prepara as futuras gerações para uma relação mais respeitosa com a natureza. Assim, defendemos a implementação de políticas públicas que garantam a proteção dos rios e a participação ativa da sociedade na sua conservação.



O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR tendo como base as obras:



Imagens produzidas por Inteligência Artificial, Canva. https://www.canva.com/pt_br/
Instituto Alana, Sujeitos de Direito. Disponível em: <https://alana.org.br/glossario/sujeitos-de-direito/>.

Fernando Ferreira. O que é direito ambiental. JusBrasil. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/direito-ambiental-entenda-o-conceito-em-5-pontos/1247910096>.

Thiago Cunha; Cláudio Lorenzo. Bioética global na perspectiva da bioética crítica. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/bioet/a/pXtsDt8qV8kQ6SHmBm6LSyv/?format=pdf&lang=pt>.

Felipe Dalla Vecchia. As gerações (ou dimensões) de direitos humanos e fundamentais. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/as-geracoes-ou-dimensoes-de-direitos-humanos-e-fundamentais/781113772>.

Guilherme Purvin. A natureza como sujeito de direitos. Disponível em: <https://oeco.org.br/colunas/a-natureza-como-sujeito-de-direitos/>.

Portal de Educação Ambiental. O que é educação ambiental. Disponível em: <https://semil.sp.gov.br/educacaoambiental/2023/06/o-que-e-educacao-ambiental/>.

Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Política Nacional de Educação Ambiental - PNEA. Disponível em: <https://www.gov.br/mma/pt-br/composicao/secex/dea/pnea>.

Ceres Battistelli. Campanha incentiva a proteção e recuperaçao do Rio Belém. Disponível em: <https://www.bemparana.com.br/publicacao/colunas/conteudo-sustentavel/campanha-incentiva-a-protecao-e-reuperacao-do-rio-belem/>.

 

 


É Gente ou Água? Rios como Sujeitos de Direito, Ética, Alteridade e Bioética.


Luana Florentino Fonseca   - Advogada 
Marcio Henrique Cardoso - Médico


 


No século XXI, pode parecer até estranho falar sobre "rios como sujeitos de direito", não é mesmo? Essa ideia é realmente inovadora, especialmente porque desafia a visão antropocêntrica que ainda predomina em nossa sociedade. O antropocentrismo, como sabemos, é a ideia de que o ser humano ocupa o centro de tudo, sendo considerado o ser mais importante. Esse pensamento influencia quase todos os aspectos da sociedade moderna e frequentemente serve de justificativa para a exploração irresponsável dos recursos naturais, sem levar em conta as consequências para o futuro. O filósofo Mauro Grün, conhecido por suas reflexões sobre o antropocentrismo e suas implicações na relação entre o ser humano e o meio ambiente, resume o conceito de maneira clara: "O homem é considerado centro de tudo, e todas as demais coisas no universo existem única e exclusivamente em função dele." Esse pensamento ainda permeia a sociedade contemporânea, muitas vezes legitimando o consumo excessivo e insustentável dos recursos naturais. O reconhecimento dos rios como sujeitos de direito quebra essa lógica ao nos convidar a vê-los não apenas como recursos, mas como partes essenciais de um sistema do qual também fazemos parte. Essa abordagem ressignifica nossa relação com a natureza, propondo um olhar ético e empático, que nos leva a perceber os rios como seres vivos com direitos próprios, e não como meros instrumentos para o nosso uso. Aqui entra o princípio da alteridade, inspirado em Emmanuel Lévinas,filósofo francês nascido em uma família judaica na Lituânia. Lévinas nos ensina que a ética começa no encontro com o outro, seja uma pessoa ou a natureza. Esse princípio nos convida a reconhecer e respeitar a alteridade do outro, entendendo-o como distinto e digno de consideração, o que se aplica perfeitamente à nossa relação com os rios e o meio ambiente. Alteridade é sobre respeito e cuidado, enquanto o utilitarismo vê os rios apenas como fonte de água ou energia. A alteridade nos desafia a reconhecer o valor intrínseco dos rios, essenciais para a vida no planeta. Vejamos: os rios refletem nossas escolhas sociais. Poluição e degradação mostram negligência, enquanto projetos de revitalização, como o do Rio Belém em Curitiba, apontam que é possível mudar nossa relação com a natureza – obvio que o essencial seria não precisar de revitalização, em razão de prejuízo causado pelo comportamento humano.
Queremos dizer, e reconhecer os rios como sujeitos de direito não é apenas uma questão ou um conceito legal, mas trata-se também de uma transformação ética que promove uma convivência mais sustentável. Cabe lembrar: Epistemologicamente, a palavra "sustentável" está ligada à ideia de algo que pode ser mantido ou sustentado ao longo do tempo, sem comprometer os recursos necessários para sua continuidade. Derivada do latim "sustentare", que significa "sustentar, apoiar ou manter", o termo reflete uma compreensão multidimensional que integra aspectos ecológicos, sociais e econômicos. No campo do conhecimento, "sustentável" implica uma visão crítica e holística, reconhecendo a interdependência entre seres humanos, natureza e recursos. Esse conceito vai além do simples uso eficiente de recursos, abrangendo um compromisso ético com o equilíbrio entre atender às necessidades do presente e preservar a capacidade das gerações futuras de suprirem as suas. A sustentabilidade, nesse sentido, é tanto um desafio quanto uma responsabilidade compartilhada, que exige uma abordagem integrada e consciente sobre como coexistir no mundo. Durante o V Congresso Internacional Ibero-americano de Bioética, a Monja Coen destacou que a harmonia com o meio ambiente é essencial para nossa sobrevivência e espiritualidade, sendo necessário desenvolver consciência ecológica e ações responsáveis para proteger o planeta. Em sua fala, ressaltou que a natureza é um organismo vivo. Nesse sentido, reconhecer isso é reconhecer o óbvio: precisamos dos rios não apenas como recurso material. Afinal, a Terra, conhecida como planeta azul, tem 70% de sua superfície coberta por água. Desse total, 97,5% é salgada, e apenas 2,5% é doce. Ainda, do pouco que é doce, 69% está em geleiras, 30% em águas subterrâneas, e apenas 1% em rios e lagos (dados da ANA). O Brasil possui a maior rede hidrográfica do mundo (IBGE Educa), evidenciando a importância do ciclo hidrológico e sua interdependência com todos os seres vivos. Compreender que os rios têm um ciclo próprio, independente da intervenção humana, nos faz enxergar que sua única "dependência" é não serem prejudicados por nossas ações. Da mesma forma que as pessoas possuem autonomia como sujeitos de direitos, os rios também têm seu curso natural, essencial para o equilíbrio do planeta. Respeitá-los e reconhecê-los como sujeitos de direito é, em última instância, respeitar a vida e garantir os direitos de todos os seres humanos. Neste sentido, como futuros bioeticistas, compreendemos que adotar uma perspectiva bioética fundamentada na alteridade é fundamental para enfrentarmos os desafios ambientais. Essa abordagem nos impulsiona a reconhecer a interconexão entre todos os seres, promovendo uma ética que valoriza o respeito e a responsabilidade pela natureza e seus elementos, como os rios, que não devem ser vistos apenas como recursos, mas como sujeitos com direitos próprios. No Brasil, iniciativas como a tentativa de conceder personalidade jurídica ao rio Doce após o desastre de Mariana destacam a urgência de proteger nossos recursos hídricos. Embora ainda faltem mecanismos legais sólidos, a discussão ética já representa um marco importante no avanço dessa pauta. Assim, a bioética ambiental contribui para equilibrar as necessidades humanas e a preservação do meio ambiente, reconhecendo que a sobrevivência de todas as formas de vida está interconectada. Exemplos globais, como o reconhecimento jurídico do rio Whanganui na Nova Zelândia e a constitucionalização dos direitos da natureza no Equador, demonstram avanços significativos na busca por um equilíbrio ecológico.

Este ensaio foi elaborado para a disciplina de Direito Ambiental, tendo como base as seguintes obras, que fundamentam a reflexão sobre a relação entre os seres humanos e a natureza, e abordam a questão dos rios como sujeitos de direito dentro de uma perspectiva ética e bioética:


DAITX, Vanessa Vitcoski. O ensino de ciências e a visão antropocêntrica. 2010. Monografia (Licenciatura em Ciências Biológicas) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/35277. Acesso em: 22 dez. 2024.

SILVA, Camila Almeida da; SILVA, Francisco Sidomar Oliveira da; NICOLLI, Aline Andréia. Educação ambiental: o que pensam os professores que atuam com o ensino de Ciências, no ensino fundamental. XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências – XII ENPEC, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 25 a 28 de junho de 2019. Disponivel em: https://abrapec.com/enpec/xii-enpec/anais/resumos/1/R0380-1.pdf. Acesso em: 22 dez. 2024.

ZANON, Andrei. O princípio da alteridade de Lévinas como fundamento para a responsabilidade ética. Perseitas, vol. 8, pp. 75-103, 2020. FONDO EDITORIAL FUNLAM Disponível em: https://doi.org/10.21501/23461780.3489. Acesso em: 22 dez. 2024.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sem rio como vamos sorrir? princípio de justiça e aspecto econômico: uma análise bioética do rio Belém



Esther Braga e Ruan Monteiro

Mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR



A música Água, do BaianaSystem, reflete a força simbólica e vital da água em suas diversas formas, evocando a relação intrínseca entre os ciclos naturais e a vida humana:





H2O é ouro em pó

No ponto futuro o doce e o sal vão se misturar

Tem pé com pé, tem mão com mão, boca com bô

H2O é ouro em pó, é salvação

(...)

Água de março é chuva que vem

Água de beber, água de beber, camará

Água de beber, água de beber, camará




No caso do Rio Belém, essa perspectiva musical ressoa com a urgência de valorizar a riqueza da água, ao reconhecer o rio como um sujeito de direitos, evidenciando o papel da água como elemento central da vida: é dela que brota a vida, e é dela que precisamos para continuar existindo.
A situação do Rio Belém, com sua alta urbanização e trechos de poluição intensa, relaciona-se ao princípio bioético da justiça, uma vez que ele é impactado principalmente pela insuficiência na promoção de justiça socioambiental. A falta de esgotamento sanitário adequado e poluição por resíduos mal descartados são fatores que indicam desigualdades estruturais e injustiças na gestão urbana e no fornecimento de serviços básicos, pois essas condições afetam de modo mais crítico as populações que residem nessas áreas. Assim, a justiça socioambiental diz respeito não apenas à natureza, mas a nós, seres humanos.
Assim, a busca por garantir os direitos da natureza é um fenômeno que tem se alastrado pela América Latina. A Constituição do Equador, de 2008, é citada como um marco por reconhecer a natureza como sujeito de direitos, com disposições para a regeneração de ciclos naturais e a restauração de ecossistemas. Contudo, a pressão da indústria extrativista representa um desafio à implementação de políticas sustentáveis, como ilustrado pelo caso do projeto equatoriano Yasuní-ITT. Anunciado em 2007, o projeto propunha uma moratória sobre a exploração de petróleo em áreas ecologicamente ricas, mas acabou sendo derrubado em 2013 devido às pressões econômicas. Esse exemplo demonstra que, apesar dos avanços constitucionais, a lógica extrativista ainda predomina, gerando um contínuo dilema entre desenvolvimento e conservação.

Casos como o reconhecimento do rio Atrato, na Colômbia, como sujeito de direitos e, no Brasil, o debate sobre a Lagoa da Conceição (SC), exemplificam o avanço dessa temática na América Latina. No entanto,para que esses direitos se tornem efetivos, é necessária uma estrutura sólida de políticas públicas que assegurem a promoção e a fiscalização desses direitos. Isso inclui o compromisso do Estado com o monitoramento e a implementação de medidas que garantam a proteção ambiental, assim como a participação ativa da sociedade para exigir e acompanhar a eficácia dessas políticas.
Assim, tornar o rio um sujeito de direito é uma prática legislativa e jurídica essencial para a garantia de seus direitos. A relação entre o princípio de justiça e o conceito de "ser sujeito de direito" é fundamental para construir uma proteção ampla e equitativa que contemple tanto os indivíduos quanto o meio ambiente. O princípio de justiça busca garantir que todos os seres, sejam humanos ou elementos naturais, possam existir em condições adequadas, distribuindo de forma justa os recursos e as responsabilidades na sociedade. Como argumenta Gudynas (2014), estender essa condição aos ecossistemas, como rios e florestas, permite enfrentar a crise ecológica de maneira que beneficie toda a sociedade, promovendo uma justiça verdadeiramente ambiental
Ser sujeito de direito significa possuir direitos reconhecidos e protegidos legalmente, o que confere a esses sujeitos uma voz na esfera pública e jurídica. No caso de um rio, como o Rio Belém em Curitiba, esse reconhecimento é crucial. Ele atribui ao rio um status de entidade que merece proteção, garantindo-lhe o direito de existir, fluir e se regenerar. Como ressalta Acosta (2010), principal responsável pela inclusão dos direitos da natureza na Constituição equatoriana, reconhecer juridicamente a natureza é essencial para alcançar uma relação mais equilibrada entre desenvolvimento e conservação
Esse reconhecimento também estabelece obrigações para a sociedade e para o Estado, que devem tratar o rio não como um recurso a ser explorado, mas como uma entidade a ser respeitada. Vandana Shiva (2005) reforça que esse reconhecimento é vital para assegurar que a justiça ambiental também inclua as comunidades e ecossistemas que dependem mutuamente. Assim, o reconhecimento dos direitos da natureza não apenas protege os ecossistemas, mas também amplia a voz e os direitos das comunidades locais, promovendo justiça social e ambiental. Boyd (2021) reforça que essa abordagem possibilita que ações degradantes contra o meio ambiente sejam encaradas como violações de direitos, levando em conta tanto o bem-estar humano quanto a integridade dos ecossistemas. Portanto, quando um rio se torna sujeito de direito, ele passa a ter uma voz legal que protege tanto a si quanto às gerações futuras. Esse reconhecimento é uma forma de justiça, pois impede a exploração predatória e assegura um tratamento respeitoso, em benefício de todos os que dependem do rio para viver. A abordagem defendida por esses autores estabelece uma base para que a justiça se estenda para além do bem-estar humano, reequilibrando a relação entre sociedade e natureza e promovendo uma coexistência harmoniosa e sustentável.
No caso do Rio Belém, os seus direitos ainda não passaram por esse reconhecimento, e portanto, a perspectiva de garantir esses direitos na forma da Lei é uma possibilidade positiva e que deve ser incentivada nas instâncias legislativas municipal e estadual, de modo a garantir a efetivação do princípio da justiça para o Rio e para os cidadãos.A promoção da justiça tem impactos profundos na perspectiva econômica do Rio. As cheias do Rio, agravados pela canalização e impermeabilização do solo, geram prejuízos econômicos diretos, pois geram enchentes que causam danos a imóveis e à infraestrutura urbana, exigindo recursos contínuos para reparos e para a implementação de projetos preventivos, como a ampliação da estação de tratamento de esgoto e a construção de parques lineares.

Além disso, a degradação do Rio Belém prejudica o turismo e a valorização imobiliária nas áreas afetadas. Em contrapartida, parques urbanos e rios bem preservados contribuem para a atração de investimentos e o desenvolvimento de atividades de lazer e turismo sustentável, promovendo geração de emprego e receita. Contudo, a situação atual do rio impede seu uso recreativo, afasta turistas e reduz o potencial de revitalização de áreas urbanas, impactando negativamente a economia local e limitando o desenvolvimento econômico. Ainda que seja um custo elevado para reverter o estado do Rio, os investimentos nos projetos de revitalização – como a instalação de filtros aquáticos e o aumento da capacidade de tratamento de esgoto são essenciais para garantir não apenas a justiça, mas a manutenção urbana e a saúde pública dos cidadãos, uma vez que falta de ação ou investimento nesses projetos resulta em custos ainda maiores no longo prazo, em decorrência dos danos causados pelas enchentes e à incidência de doenças relacionadas à qualidade da água.

Nós, futuros bioeticistas, entendemos o caso do Rio Belém como uma oportunidade única para avançar na aplicação concreta do princípio da justiça em contextos socioambientais. Reconhecer o Rio Belém como sujeito de direitos não é apenas uma inovação jurídica, mas um compromisso ético fundamental que reflete nossa responsabilidade coletiva para com a natureza e as gerações futuras. Inspirados por autores como Gudynas, Acosta e Vandana Shiva, acreditamos que os direitos da natureza são um alicerce essencial para enfrentar as crises ecológicas e sociais de maneira integrada, promovendo uma convivência equilibrada entre sociedade e ambiente. Assim, ao defendermos a efetivação dos direitos do Rio Belém, reafirmamos nossa visão de que a justiça deve transcender o âmbito humano, alcançando o equilíbrio necessário entre desenvolvimento urbano e preservação ambiental, em que destacamos a riqueza da água, H20, nosso “ouro em pó”.



O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR, tendo como base as obras:UCPR tendo como base as obras:

ACOSTA, Alberto. El Buen Vivir: Una Vía para el Desarrollo. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2010.


BOYD, David R. The Rights of Nature: A Legal Revolution That Could Save the World. Toronto: ECW Press, 2017.


GUDYNAS, Eduardo. Derechos de la Naturaleza: Ética Biocéntrica y Políticas Ambientales. Lima: Ediciones CELD, 2014.


ISAGUIRRE-TORRES, Katya R. ANDRADE, Gabriel V. Direitos da natureza. Disponível em:

https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view /45640/36320


SHIVA, Vandana. Earth Democracy: Justice, Sustainability, and Peace. Cambridge: South End Press, 2005.

Rio Belém: memórias, significados e saúde

 

Luna Murillo Santos Alexandre  
Acadêmica do 11º período do curso de Medicina PUCPR; PIBIC Master PPGB
Fr. Roberto Silva 
 Diácono religioso da Sociedade do Apostolado Católico. 
Licenciado em Matemática; Bacharel em Filosofia e em Teologia 



‘’Isso que vou contar é de muitos anos atrás. Lembranças e memórias que ficaram e ficarão marcadas para sempre em minha vida. Quando eu era bem criança, eu e meus irmãos aguardávamos ansiosamente pelo sábado à tarde. Todo sábado, quando não chovia, íamos nos refrescar no Rio Belém com os nossos pais. Muitos vizinhos também iam, era uma água limpa e própria para banho. Pode parecer impossível isso que estou dizendo, mas acontecia. E sinto muitas saudades disso. Rio Belém faz parte da história curitibana e também da minha infância’’.
Esse relato é proveniente de uma moradora curitibana que teve a oportunidade de tomar banho no Rio Belém. Imagine se atualmente, os curitibanos pudessem fazer isso para se refrescar em um dia de calor? Seria espetacular poder ter contato com um rio no meio de um espaço urbano. Além disso, a água poderia ser própria para consumo, a qualidade do ar seria melhor e a fauna e flora poderiam estar presentes naturalmente nesse ambiente. É extraordinário pensar que um rio que faz parte da história curitibana poderia contribuir de modo tão significativo para a qualidade de vida e lazer da população.
Dessa maneira, é importante o conhecimento em relação ao tema Saúde Única. É necessário a reflexão de que a saúde humana está diretamente atrelada a saúde animal e ambiental. Isto é, a saúde é única, integrada e interligada a outras formas de vida e ao meio ambiente. Assim, a preservação atual e o desejo de mudança em relação a condição atual do Rio Belém está diretamente relacionada a qualidade de vida e a saúde humana no momento presente e também para o futuro. O Rio Belém é mais do que um símbolo histórico e um marco da cidade, é um ambiente natural que tem a sua fauna e flora características, com suas dimensões físicas e espirituais, sendo um elemento vital para a sociedade curitibana. O rio limpo e cuidado traria um novo espaço de lazer, melhoraria a qualidade do ar, seria uma fonte riquíssima de água, bem como traria um novo significado e uma qualidade de vida física e mental mais digna à sociedade. Seria o nosso legado, marco e responsabilidade para as futuras gerações, de modo que se gerasse orgulho de nossas ações.

‘’Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra” (Hans Jonas, 1984). O princípio da responsabilidade, conforme apresentado pelo filósofo Hans Jonas, propõe que as ações humanas devem ser guiadas pela consideração de seus impactos a longo prazo, sobretudo em relação às gerações futuras e à preservação do meio ambiente. Ele afirma que essa capacidade humana de transformar o meio ambiente, pode causar também danos irreversíveis. Isto é, a forma em que a população se relaciona com o rio vai impactar diretamente nas consequências ambientais e socioculturais das gerações subsequentes. Isso reforça o que Leonardo Boff, teólogo e filósofo, defende em sua obra “Saber cuidar”: “Cuidar não é apenas uma prática, mas um modo de ser que implica responsabilidade e compromisso com a vida em todas as suas formas”.
A interação provida de propósitos como responsabilidade e defesa do bem comum podem render bons e iluminados frutos. Todo final de semana ensolarado, a maioria dos curitibanos vão em direção a parques ou outras regiões ao redor da cidade para se conectar com a natureza e realizar um descanso mental. Imagina que um desses destinos fosse as margens do Rio Belém? Água cristalina, ar puro, conexão com a força e movimento das águas, banhos de rio e observação de animais. A cidade e os novos pontos turísticos teriam uma energia inigualável e um outro significado.
A convivência diária com o ambiente urbano é cheia de desafios, demandas e estresse, logo, é preciso que a paisagem e disposição da cidade estejam de acordo com o verdadeiro estilo de vida que almejamos e em sintonia com o que mais desejamos durante a vida: saúde e felicidade. Como defendido por Jacques Maritain: “A cidade é obra do homem, mas é também um reflexo de sua alma. Ao cuidar dela, o homem cuida de si mesmo”.
Nós como futuros bioeticistas acreditamos que ao cuidar do Rio Belém, estamos cuidando de nós, dos outros, das futuras gerações e dos milhares de seres vivos existentes. E assim, constrói-se novas memórias, conexões e significados importantes para a existência individual da população curitibana.


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR tendo como base as obras: 

Hans Jonas e o Princípio da Responsabilidade, ‘’Humanismo Integral’’ de Jacques Maritain, ‘’Saúde Ambiental e Qualidade de vida’’ da OMS. Além disso, foram utilizados artigos científicos sobre o Rio Belém. As imagem foram produzida através do ‘’MetaIA’’ do aplicativo ‘’WhatsApp’’.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Para não dizer que não falei dos rios: por uma relação ética com o rio Belém a partir do princípio do valor inerente

Alexander Fuscolin Soares
Enfermeiro. Mestrando em Bioética
Vanessa Sajnaj Ferreira
Psicóloga. Mestranda em Bioética


Apesar de sempre termos vivido próximo das águas, desde as civilizações mais antigas, pouco aprendemos sobre a fala dos rios, como nos diz o filósofo e líder indígena Ailton Krenak. Perplexo com a capacidade dos seres humanos de considerarem alguns rios sagrados enquanto depredam outros, ele nos alerta sobre o desrespeito em relação às águas e destaca a necessidade de uma mudança de rumo. O rio Belém, que atravessa diversos bairros de Curitiba, incluindo parques como o São Lourenço e o Passeio Público, é um dos que sofreu devastação. Atingido pela urbanização, ao longo dos anos teve suas margens ocupadas, suas águas contaminadas e foi perdendo sua vegetação nativa. Quem reside no município ou transita por ele provavelmente já observou partes mais poluídas e outras mais limpas. Em uma pesquisa realizada pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Paraná, foi identificada a presença de diversos poluentes no rio Belém. Foi constatado também que a qualidade de suas águas se manteve poluída ao longo dos anos, de 2010 a 2017, sendo um dos rios mais poluídos de Curitiba. Algumas consequências da poluição são a degradação do solo, enchentes e inundações, que ocorrem com frequência em alguns bairros e comunidades, como na Vila Torres.
Não raro escutamos expressões como “Cidade Verde” ou “Cidade Ecológica”, em referência a espaços urbanos projetados e construídos levando em consideração a preservação de recursos ambientais e econômicos, visando à qualidade de vida dos habitantes. Curitiba, inclusive, é considerada uma cidade verde, tendo sido denominada a Capital Ecológica. Alguns exemplos de projetos voltados à sustentabilidade são a criação de reservas particulares do patrimônio natural, a distribuição de mudas de árvores para plantio e a coleta seletiva – se você mora no município, certamente lembra da Família Folhas e do jingle “lixo que não é lixo, não vai para o lixo, se-pa-re”, tão conhecido pelos curitibanos e curitibanas. Apesar disso, os problemas associados ao rio Belém, que envolvem o desrespeito às suas águas e respectivas consequências, persistem ao longo dos anos, a despeito das ações que foram realizadas e melhorias que possam ter ocorrido. As pessoas mais atingidas por essas consequências são as que se encontram em maior condição de vulnerabilidade social, residem em locais com infraestrutura precária e têm dificuldade de acesso a serviços e a outros espaços. Diante desse cenário, é válido nos perguntarmos de que forma nós, incluindo as gerações atuais e passadas, nos relacionamos com o Belém. Parafraseando Krenak, o que esse rio está nos comunicando? Como proporcionar a biofilia, uma conexão harmônica e compassiva com o meio ambiente, em uma cidade urbanizada como Curitiba e transformar nossa relação com o rio Belém?
     O teólogo brasileiro Leonardo Boff nos explica que há uma relação de interdependência e complementariedade entre seres humanos e outras formas de vida, como as plantas e animais. Dentre esses, só o humano possui uma dimensão ética, devendo, assim, ser o cuidador e guardião de seu habitat. Esse cuidado consiste em uma relação amorosa, não agressiva e nasce do envolvimento e preocupação com o destino das outras vidas, para além da minha própria. Os rios, embora não sejam sencientes e não contenham células e outras estruturas presentes em diversos organismos, são entidades vivas: nascem, se desenvolvem, acompanham e atravessam gerações. Sendo vivos, podem morrer. Mortos, produzirão impactos nas demais formas de vida: na vegetação, nos peixes e nas pessoas. Na Declaração Universal dos Direitos dos Rios, estão estipulados seis direitos principais: fluir, desempenhar funções essenciais dentro de seu ecossistema, estar livre de poluição, alimentar-se e ser alimentado por aquíferos sustentáveis, ter biodiversidade nativa, poder regenerar-se e ser restaurado. Esses direitos servem para a proteção dos rios ou, em outras palavras, para a manutenção de suas vidas. Quais desses direitos estão sendo assegurados ao Belém e quais estão sendo violados? Estamos nós, de modo ativo ou passivo, contribuindo para a morte desse rio, coibindo-lhe a possibilidade de existir?
      Boff nos diz que o cuidado pode ser entendido de duas formas: como adjetivo e como substantivo. O cuidado como adjetivo é algo associado a alguma ação, sem, porém, implicar em uma mudança na maneira de relacionar-se com o ambiente. Um exemplo seria a produção de carros com menos poluentes, de modo circunstancial. O cuidado como substantivo, por sua vez, diz respeito justamente a uma conexão, uma transformação, em que o cuidar se torna um imperativo. Nessa última forma, a natureza é considerada um organismo vivo, dotada de valor. Assim, é preciso considerar que os rios têm um valor inerente, o qual independe de circunstâncias externas, como sua utilidade ou inutilidade aos interesses dos seres humanos. O filósofo Tom Regan afirmou que há os sujeitos-de-sua-vida, que compõem a comunidade moral, e os sujeitos-de-uma-vida, que podem sofrer danos, estando em condição de vulnerabilidade. Os primeiros têm deveres morais de beneficência e não maleficência em relação aos últimos. Diante disso, é necessário pensarmos em quais deveres nós, agentes morais, temos em relação aos rios, que estão suscetíveis às nossas ações. Quais os caminhos possíveis para que transformemos nossa relação com o rio Belém, passando do cuidado como adjetivo para o cuidado como substantivo? Reconhecer o valor inerente a ele parece ser o primeiro passo. Esse reconhecimento não se dá de forma abrupta, tampouco isoladamente. É necessário que haja proximidade, envolvimento – como recomendou Boff.
     O rio Belém é conhecido pelos problemas que acarreta: enchentes e inundações, mau cheiro devido às ligações de esgoto clandestinas e impacto na paisagem urbana em razão da poluição. Seria possível expandirmos nosso olhar sobre os atributos desse rio? Em documentário exibido pelo programa televisivo Plug, da Rede Paranaense de Comunicação, um morador da Vila Torres, comunidade na qual se encontra um trecho bastante poluído do Belém, comentou que nadava nesse rio, décadas atrás, quando o mesmo ainda era limpo. Foi encontrado também um cardume de bagres em uma parte canalizada. O Belém, assim, comporta vida, memórias e histórias. Os rios são importantes elementos da cultura e da economia, além de cumprirem funções dentro do ecossistema, para a fauna e para a flora. Como afirma Krenak, sabiamente, há pessoas que pensam que se vive apenas em terra firme e desconhecem a completude que se pode encontrar nas águas.
     Ora, sabemos que modificar nossas relações interpessoais, em nosso dia a dia, não é tarefa fácil. E por que seria diferente com outras formas de vida, com o meio ambiente, com os rios? A existência de adversidades, porém, não significa que não devemos nos esforçar para fazê-lo. Talvez um dos maiores desafios seja a manutenção de comportamentos em prol da vida dos rios a longo prazo. E, para isso, há que se olhar para a comunidade que vive ao redor deles, uma vez que esta influencia e é influenciada pelo ambiente. Qual é a relação dos moradores dessas comunidades com o rio Belém? Quais suas percepções acerca do local em que residem? Que impactos sofrem e ocasionam? A transmissão de informações visando à sensibilização e à conscientização também é uma medida necessária. Há que se escutar a voz dos rios, conforme recomendou Krenak, estar sensível aos problemas ambientais que ocorrem, bem como às respectivas causas e agravantes envolvidos. É importante, porém, que essa sensibilidade não se traduza em uma percepção passiva, mas se converta em atitudes de mobilização.
    Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que é possível a construção de uma nova forma de relação com o rio Belém, biofílica e pautada no cuidado como substantivo. Para isso, é fundamental a participação de diversos atores sociais: comunidades locais, governos e instituições, Organizações Não Governamentais e cientistas, em suas diferentes vertentes de atuação. Decerto que pessoas em maior condição de vulnerabilidade que dispõem de poucos recursos podem ter condições restritas de intervir no ambiente em que vivem, especialmente em circunstâncias em que estejam sofrendo prejuízos decorrentes de problemas como as enchentes e inundações. Todavia, é importante que haja o envolvimento do máximo de pessoas possível, em suas diferentes possibilidades. E, sem dúvida, estudantes e profissionais da Bioética devem participar, dialogando e deliberando, propondo e empreendendo ações em prol de uma relação ética com o rio Belém. Lançando mão das palavras de Geraldo Vandré, declamadas em sua canção Pra não dizer que não falei das flores, inspiração para o título do presente texto: Vem, vamos embora, que esperar não é saber!


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR tendo como base as obras:


BOFF, Leonardo. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

FELIPE, Sônia T. Valor Inerente e Vulnerabilidade. Critérios éticos não especistas na perspectiva de Tom Regan. Ethic@. Florianópolis, v. 5, n. 3, p. 125-146, Jul. 2006.

KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

A imagem que acompanha o presente texto foi gerada pela ferramenta de Inteligência Artificial Gemini.


Bioética Hídrica: Proteção dos Rios como Sujeitos de Direitos e Implicações Ético-Sociais da Crise Ambiental


 Antonio Carlos Corrêa da Conceição 
Advogado, Aluno de Disciplina Isolada (Bioética) pela PUC PR

Camile Silvello Pereira
 Médica de Família e Comunidade, Mestranda em Bioética pela PUC PR

“Este mundo curioso que nós habitamos é mais maravilhoso do que conveniente,
mais bonito do que útil, mais para ser admirado e apreciado do que usado”
Essa frase do naturalista estadunidense Henry Thoreau expõe o conflito ético entre a tradicional visão antropocêntrica e utilitarista da natureza e a visão ecocêntrica adotada pela Ecologia Profunda, cuja diferença fundamental assenta no reconhecimento do valor intrínseco que a natureza tem, independente da sua utilidade para os propósitos humanos, devendo ser respeitada e protegida em sua integralidade. A partir dessa compreensão ecocêntrica, passou-se a discutir e a defender mudanças na legislação visando conferir status de “sujeito de direitos” à natureza como um todo ou a elementos individualizados, como os rios. Essa nova concepção jurídica e ética já foi implementada em casos pontuais, como na Nova Zelandia e no Brasil (Rio Lage e Rio Bonito). O reconhecimento da personalidade jurídica dos rios não se trata de um mero formalismo jurídico, mas sim uma garantia de proteção a direitos fundamentais que possam assegurar sua existência, sua regeneração e restauração, sua defesa legal, entre outros direitos fundamentais, conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos dos Rios. A ausência de uma proteção efetiva, aliada ao uso predatório dos recursos hídricos, têm causado ao longa da história humana desastres ambientais irreversíveis. Um exemplo que ilustra essa questão é a do Rio Belém, cujo curso de aproximadamente 20km percorre inteiramente a cidade de Curitiba, no Paraná. Ao longo dos anos, esse rio sofreu diversas ofensas a sua existência, tais como despejo de esgoto clandestino, assoreamento, alteração de seu curso natural, devastamento da sua mata ciliar e canalização de grande parte de sua extensão. O Rio Belém, por anos considerado o mais poluído da capital paranaense, é o retrato de desrespeito do ser humano aos seus direitos, ainda que estes não sejam juridicamente garantidos. A ausência de proteção, manutenção e recuperação do ecossistema do Rio Belém não é uma questão bioética ligada apenas ao patrimônio ambiental, mas também o agravamento das condições sociais daqueles que vivem às suas margens e daqueles que dependem direta ou indiretamente dele, tais como: Na saúde pública: a poluição da água pode resultar em doenças infecto contagiosas como infecções gastrointestinais, hepatites, leptospirose e arboviroses que podem aumentar a carga sobre os serviços de saúde. Na qualidade de vida: o bem-estar dos moradores é afetado com a presença de lixo que gera poluição visual e odor desagradável. Com a poluição, a estética do local é comprometida e atividades econômicas locais como pesca e turismo podem ser comprometidas. Como resultado, há uma desvalorização dos imóveis locais com perda de renda e oportunidade de trabalho para os moradores locais. Na saúde mental: a degradação ambiental pode impactar nas interações sociais com a diminuição de atividades coletivas e culturais. Além disso, com a preocupação continua com a saúde, há um aumento do estresse e ansiedade das pessoas que vivem naquele local. Em relação aos danos sociais: em casos de extrema poluição, as pessoas são forçadas a deixar suas casas com a consequente perda de redes sociais e laços comunitários. Por fim, não ter acesso à água potável segura é descumprimento a um direito humano básico, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), na 4ª edição das Diretrizes para a qualidade da água potável.
Ante este panorama conceitual e fático, cabe à Bioética, através da interdisciplinaridade de áreas do conhecimento, o papel de instrumentalizar meios de superação dos danos que historicamente o ser humano causa aos recursos hídricos do planeta. A Bioética tem o condão de produzir soluções ou, ao menos, indicações que permitam compreender os rios não apenas como água corrente, mas como um conjunto complexo de coisas, vivas ou não, que quando pensado como um todo pode sofrer e até morrer. Sob o olhar ecocêntrico da Ecologia Profunda, os bioeticistas podem e devem auxiliar o Poder Público a expandir a garantida de direitos fundamentais a todos os rios, notadamente àqueles que percorrem zonas urbanas. Essa garantia se dá no reconhecimento desses ecossistemas como sujeitos de direitos. Ademais, ao fomentar a educação ambiental, notadamente a conscientização das pessoas mais jovens, será possível deixar de perceber o rio como algo inanimado e desprovido de vida/sentimento e passar a enxergá-lo como um organismo complexo que sofre a pessoas podem se identificar com esse sofrimento, com essa dor alheia, despertando nelas, assim, o sentimento de compaixão, que como Princípio Ético e Fundamento da Moral, segundo o filósofo Schopenhauer, se baseia na identificação com o outro, sendo um sentimento altruísta e desinteressado que leva a ações que visam o bem-estar do outro. Nós como aspirantes a bioeticistas acreditamos que apenas com a evolução para uma visão bioética baseado no ecocentrismo, seguida de uma garantia legal de proteção aos rios como sujeitos de direitos que são é que será possível trabalhar com a população formas de conscientização dos problemas hídricos urbanos e despertar nelas maior sentimento de compaixão, não apenas às pessoas que sofrem diretamente com a poluição e degradação dos rios, mas ao rio em si, como um ser que sofre e que deve ser cuidado.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR tendo como base as obras:



DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS RIOS. https://www.internationalrivers.org 2021. Disponível em: https://www.internationalrivers.org/wp-content/uploads/sites/86/2021/03/THE-UNIVERSAL-DECLARATION-ON-THE-RIGHTS-OF-RIVERS-translation-into-PT.pdf
GRAEZER, Verônica; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Costa. Potter e o equilíbrio do ecossistema como fundamento da moralidade da bioética. Revista Iberoamericana de Bioética, n. 17, 01-13, 2021
INSTITUO AMBIENTAL DO PARANÁ. Monitoramento da qualidade das águas dos rios da região metropolitana de Curitiba, no período de 2002 a 2005. Curitiba, IAP, 2005. Disponível em: https://www.iat.pr.gov.br/sites/agua-terra/arquivos_restritos/files/documento/2021-03/monitoramento_da_qualidade_agua_1992_2005_rmc.pdf
INSTITUO HUMANITAS UNISINOS. Os oito Princípios da Ecologia Profunda. 2017. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/186-noticias-2017/568366-os-oito-principios-da-ecologia-profunda
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS), Diretrizes para a qualidade da água potável, 4ª edição, incorporando o 1º adendo, 24 de abril de 2017, disponível em > https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/352532/9789240045064-eng.pdf?sequence=1> (acesso em 10 de dezembro de 2024)
RETRATOS DO BELÉM – A TRAJETÓRIA DE UM RIO URBANO. 2012. Disponível em: http://retratosdobelem.blogspot.com/2012/10/contexto-natural-e-urbano.html
SANTOS JUNIOR, R. J. dos, & FISCHER, M. L. (2021). Reflexão sobre o uso sustentável dos recursos hídricos a partir de uma experiência com estudantes do ensino fundamental. Caminhos De Diálogo, 9(15), 261–273. Disponível em: https://doi.org/10.7213/cd.a9n15p261-273
SGANZERLA, Anor; RAULI, Patrícia Maria Forte; RENK, Valquíria Elita. Bioética Ambiente, Curitiba, PUCPRESS, 2018

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

A Bioética Interdisciplinar, Multidisciplinar e Transdisciplinar: a necessidade de compreender cada uma.

Por Cristiano  Chiaramonti

Economista, Mestre Sustentabilidade Sócio Econômica, Graduando Ciências Biológicas e 
Aspirante  a Bioeticista


A Bioética como um campo do conhecimento busca compreender os diversos saberes na construção da necessidade de cada núcleo pensante, reunindo conclusões em torno de uma problemática, como a ambiental, por exemplo. Assim percebe as demandas efetivas para a continuação, solução e compreensão de um determinado problema, para constituição de novos caminhos no aprimoramento de propostas que abarcam visões de vários atores da biodiversidade.

Penso que mais importante do que a discussão em torno de uma problemática, é pensar que a Bioética como ferramenta pode ser efetivamente uma proposta que compõem fundamentos para o alargamento nas formas de compreender o contexto, inserindo todos os atores e seus representantes, mostrando, elevando, trazendo para a discussão entidades que não falam a nossa linguagem, mas que precisam ser ouvidas dentro das decisões as quais sua importância se mostra fundamental para a continuidade das relações complexas.

Digo isso pois, se entendermos um rio por meio de uma visão linear, compreendemos entre vários outros fatores que ele passa a ser um recurso natural para a conveniência de uma sociedade, podemos entender também que a sua preservação pode ser a salvação de muitas espécies, inclusive a humana, que mantê-lo saudável as custas da compreensão humana é viável para responder a nossa necessidade como sociedade, podemos dar vários destinos e entender que essa relação é importante para manter a espécie humana, ou seja, algo que consiga trazer benefícios e perpetuidade para a sociedade enquanto consumidora desses recursos, o rio como fim e não como meio.


O rio é parte de uma totalidade que todos os seres humanos e não humanos estão compondo. O rio tem dignidade, tem existência, tem importância como ator que participa, que vive, que pertence a uma biodiversidade. Ele precisa falar e mais, precisa ser ouvido, a sua história nos contam coisas importantes sobre nós e nossas relações.

Assim, penso que a Bioética deve propor formas de escutar esses atores, o rio na discussão acadêmica dificilmente tem voz, geralmente está sendo representado por uma disciplina que por meio da sua verdade defende o que acredita ser certo, um axioma disciplinar.

O Ecólogo quer preservar, o Economista utiliza-lo como recurso, o Biólogo para entender a Biodiversidade, o Pedagogo como educação para gerações futuras, o Historiador como conto e exemplo de diversidade, o Geólogo as suas nascentes, suas formas, suas curvas. Cada um terá a sua verdade imposta e seu interesse voltado para o que acredita ser importante ao rio, mas pergunto, onde está o rio nessa discussão, que linguagem ele está falando e nos mostrando, uma linguagem que não é a nossa, respondendo por meio de uma adversidade onde nem sempre é entendida, somente após a teia da complexidade propor respostas na sua maioria incompreensíveis e pior, o retorno a essas perguntas não demandam interesses as ciências departamentalizadas. Assim, espera-se que a Bioética, consiga além de entender cada núcleo pensante das disciplinas por meio da multidisciplinaridade, eleve a discussão trazendo as vozes, a música que o rio proporciona, evidenciando as suas dores, os seus pensamentos, as suas necessidades e mais do que isso, que ele seja um ator tão responsável para a continuidade como somos nós humanos.

Essa proposta precisa ser percebida por meio da interdisciplinaridade, avançando assim na questão da multidisciplinaridade, caminhando para quem sabe um dia entender a transdisciplinaridade na prática. Não devemos pensar na voz do rio como resposta a uma compreensão e sim, a proporção complexa que define as suas realizações e relações em um ecossistema, daí a crítica a multidisciplinaridade que não consegue efetivamente cumprir esse papel como a interdisciplinaridade.

A Bioética multidisciplinar propõe discussões entre esses atores, mas não provoca mudanças em seu núcleo, uma discussão que proporciona domínio em torno de determinado assunto, mas o núcleo de cada disciplina não se modifica, percebe a necessidade do outro, mas continua sendo algo externo a sua matriz de conhecimento, vejamos, cada ideia compõem um fluxo maior de verdades, mas o núcleo pensante de cada participante permanece o mesmo, a certeza não muda, a verdade continua.

A Interdisciplinaridade avança nessa discussão entre as disciplinas, a Bioética fundamentalmente nessa visão propõe mudanças por meio das emergências, que são criadas das demandas/perguntas de cada núcleo, compondo verdades que produzem recursividade retroagindo em todas as disciplinas mudando o ponto de vista sobre o rio. Alarga a compreensão de discutir somente o assunto, nessa preposição o conhecimento construído retroagi na busca de novos caminhos, modificando o núcleo dos saberes de cada disciplina, seria como, os atores envolvidos na discussão propondo mudanças, o resultado dessas propostas constrói verdades/emergências que mudam os saberes das disciplinas, muda a percepção de cada um pela importância do rio, ouvindo a sua voz as suas verdades.


A Transdisciplinaridade na visão ainda pouco perfeita e compreendida pelas Ciências, é muito mais complexa, não pela dificuldade, mais sim pela forma e adversidade que ocorre, onde corpo, mente e alma estão ocupando o mesmo espaço, propostas que transversam a compreensão da composição em torno da recursividade e da totalidade, como se as disciplinas estivessem compondo o mesmo pensamento mas cada uma com a sua identidade, caminhando para o mesmo objetivo utilizando simultaneamente pensamentos aleatórios de acordo com a sua matriz de saber, da sua formação, um processo continuo de completa transformação, nada estático, uma pluralidade móvel que compõem verdades a todo o momento e proporcionam uma complexidade de informações, onde cada uma vai se encaixando e construindo novas identidades/verdades.

Diversas disciplinas ocupando o mesmo espaço, no mesmo tempo, dentro de uma mesma garagem, não poderíamos pensar assim a Bioética departamentalizada em disciplinas de saberes e sim, uma composição única de verdades por meio dos saberes onde se compõem visões antagônicas que se complementam na forma de como escutar o rio.

Essa pequena reflexão, mesmo que ainda preliminar e filosófica, uma abordagem epistemológica na construção dos saberes, como Economista de formação, futuro Biólogo, um aspirante a Bioeticista, espero que muita coisa seja revista, compreendida, o caminho é longo, mas não podemos continuar a acreditar que a humanidade é o centro das coisas, a complexidade das relações, o contexto de nossas vidas precisa ser revisto, pensando em proporcionar a todos formas de evidenciar a sua importância nessa teia da vida. 


 O presente ensaio foi elaborado baseando-se nas obras: Introdução ao Pensamento Complexo e O Método I: a Natureza da Natureza de Edgar Morin, Políticas da Natureza de Bruno Latour e por fim Uma Outra Ciência é Possível de Isabelle Stengers.