Por Flávia Dandara Rangel
Coelho Diniz Nogueira, Luciane Cristine Oliveira Valdez e Vitória Della Ventura

“Río Barigui e Rio Belém refletem crise ambiental em Curitiba” esse é o título da
notícia que relata a situação "ruim" desses rios, com
níveis críticos de poluição detectada, devido a várias causas, incluindo o crescimento populacional sem planejamento adequado e sem direcionamento. "Rios Barigui e Belém refletem crise ambiental em Curitiba" é o título da reportagem sobre a classificação desses rios como "ruim".
Os níveis críticos de poluição detectados se devem a diversas causas, incluindo o crescimento populacional sem planejamento adequado e a canalização para dar lugar a construções, deficiência de esgotamento sanitário, resíduos sólidos e ocupações desordenadas e irregulares”. A causa maior é a destinação inadequada de “esgotos domésticos tratados ou tratados com baixa eficiência”. Esta situação não é isolada, mas faz parte de um contexto global de
crise ambiental. A degradação ambiental impõe desafios que extrapolam os limites ao reconhecimento dos problemas éticos e práticos da visão de que o ser humano é o centro e a medida de todas as coisas, em especial relacionadas à natureza, uma perspectiva conhecida como
Antropocentrismo. A
Bioética Ambiental aponta para a necessidade de reconhecer que não apenas os seres humanos, mas também os elementos naturais — como os rios — devem ter o direito de viver a sua essência.
O que significa isso? Ao se considerar que a natureza possui uma personalidade jurídica, assim como as pessoas, é na verdade uma mudança que transpõe dos valores antropocêntricos para os biocêntricos e ecocêntricos, o que exigem que se considerem também as dimensões espirituais que as diversas culturas atribuem às águas. Este ensaio propõe refletir criticamente sobre a possibilidade de reconhecer os rios como sujeitos de direito, relacionando tal discussão com a espiritualidade e a partir da perspectiva da bioética ambiental analisar como está sendo ferido o
princípio da alteridade. Tradicionalmente, o conceito de sujeito de direito restringe-se a pessoas físicas e jurídicas, aptas a serem titulares de direitos e deveres. Entretanto, experiências internacionais têm demonstrado a expansão desse conceito para elementos naturais, especialmente os rios. Casos como o
Rio Whanganui (Nova Zelândia) e o
Rio Atrato (Colômbia) demonstram que o direito pode se abrir a entes não humanos, reconhecendo-os como sujeitos a serem protegidos por meio de representantes legais. Essa ampliação encontra eco na bioética ambiental, que propõe uma ética do cuidado voltada ao equilíbrio ecológico e à justiça intergeracional. Diversas tradições culturais e religiosas atribuem ao rio uma dimensão espiritual. No
hinduísmo, o rio Ganges é considerado uma deusa, purificadora e sagrada, cujos direitos foram discutidos judicialmente como de uma “pessoa jurídica”. Entre comunidades indígenas latino-americanas, rios são reconhecidos como ancestrais vivos, conectando passado, presente e futuro. Essa concepção espiritual reforça a ideia de que o rio não é mero recurso, mas um ente relacional, fundamental para identidade, saúde e espiritualidade comunitária. Mas a espiritualidade é mais do que a expressão de uma religião, é um momento único, intenso de integração e conexão entre corpo, mente e espírito, o momento em que o ser humano se conecta com suas dimensões humanas, naturais e cósmicas, permitindo se sentir pertencente, dar sentido a sua existência e se comprometer com os interesses da vida e da natureza. A espiritualidade, nesse sentido, funciona como lente bioética capaz de reconhecer o valor intrínseco do rio. A noção de espiritualidade amplia a ética ambiental ao incluir a reverência, a interdependência e o cuidado como princípios normativos. Assim, reconhecer um rio como sujeito de direito é também reconhecer sua sacralidade. A espiritualidade fortalece esse dever, pois integra dimensões simbólicas e afetivas na relação com a natureza. Cabe à bioética ambiental integrar essas visões, promovendo uma espiritualidade crítica que inspire cuidado efetivo e políticas públicas consistentes.

Agora, o que acontece se pensarmos, e sobretudo se conseguirmos vivenciar, a crise a partir de uma perspectiva diferente daquela do Rio como um recurso utilitário? Que outros valores entram em jogo se abordarmos a água doce como um ser capaz de sofrer? Como abordamos o conflito da exploração econômica, social, política, cultural e moral da natureza se considerarmos o Rio a partir de suas profundezas espirituais? Descrever o conflito por meio de uma dimensão espiritual retira do centro as nossas necessidades humanas como as únicas a serem atendidas. E, em vez de humanizar o rio, leva-nos a naturalizar o humano, afirmando que a profundidade do ser dificilmente pode ser explicada pela reflexão racional. É preciso um grande esforço para deixar de lado a necessidade primária de saciar a nossa sede. O Rio Belém, como tantos outros, é vulnerável e vítima das ações humanas, devido à sua gestão a partir de uma neutralidade moral quanto ao seu verdadeiro estatuto. O rio foi explorado e poluído, sem que se percebessem as suas fraturas e cicatrizes, o seu sofrimento. Visto como um objeto material, o seu destino era ser fornecedor, destino turístico e recurso para a indústria. Isso o destruiu a ponto de perder a sua essência e pôr em risco a sua vida. Considerar que o Rio existe como tal e nos perguntarmos sobre o lugar a partir do qual devemos nos relacionar com ele é uma questão que pode ser guiada pelo princípio da alteridade. Esse princípio, concebido como origem e guia do comportamento humano, acompanha a perspectiva profunda e global da bioética de
Potter deixar de reduzir os seres ao seu estado de produtividade e nos deixar atravessar e transformar pelo encontro. Esse outro não é algo abstrato, mas se materializa e se torna visível por meio do significado dado a esse encontro. Isso faz com que a responsabilidade e o comprometimento comunitário sejam atitudes norteadoras em nossas ações em relação aos rios. Ter em mente a dimensão espiritual e o princípio da alteridade como parâmetro para avaliar eticamente as ações humanas sobre a natureza, especialmente em relação aos rios, justifica profundamente os limites impostos às nossas ações: ou seja, não comprometer a possibilidade de vida dos seres vivos. Considerar o princípio da alteridade, na forma que nos relacionamos com o rio é garantir o respeito, estabelecer limites para as nossas ações, garantir cuidado, contemplação, convivência em harmonia e relação de igualdade. Apesar dos avanços, a atribuição de subjetividade jurídica a rios enfrenta resistências, sobretudo em sistemas jurídicos baseados no antropocentrismo. O risco é que a espiritualidade seja utilizada de forma simbólica, sem efetiva proteção ambiental. A bioética ambiental deve, portanto, articular espiritualidade e racionalidade científica, unindo saberes tradicionais e normatividade jurídica para promover justiça ecológica. Quando o princípio da alteridade é considerado, protegemos e reforçamos os aspectos espirituais do rio, já que, fazer mal ao rio é fazer mal a si mesmo.
Nós como futuras bioeticistas acreditamos que os rios não são apenas essenciais para a flora e a fauna e para o equilíbrio do ecossistema, mas também desempenham um papel fundamental na qualidade de vida das pessoas. Isso demonstra que a saúde não é determinada apenas por fatores biológicos, mas também pela dimensão espiritual que afeta diretamente as experiências humanas. Nesse sentido, um rio morto é uma causa direta de sofrimento humano. O reconhecimento dos rios como sujeitos de direito, sob a ótica da bioética ambiental, representa um passo necessário. A espiritualidade, ao atribuir valor intrínseco e reverência aos rios, reforça a legitimidade ética desse reconhecimento. O status moral e normativo que atribuímos às diversas entidades que compõem a biosfera e a forma como nos relacionamos uns com os outros determinarão as soluções que nós, como humanidade, encontraremos para esta crise. Considerar profundamente a vida de todos esses elementos nos leva a considerar a dimensão espiritual e a alteridade como categorias e princípios que devem estar presentes quando pensamos em nós mesmos como um todo. Posicionar os rios como sujeitos de direitos empodera as pessoas, em sua individualidade, comunidade e organização estatal, a responder responsavelmente às ações e omissões que afetam negativamente suas próprias chances de vida. Essa resposta normativa não será suficiente se não considerar a perspectiva global. Nesse sentido, é preciso atentar para a afirmação de que globalidade não é sinônimo de padronização de respostas, mas sim, como sustentam
Cunha e Lorenzo: “seria um bom caso para justificar não na decorrência da imposição de um padrão cultural ou moral único, mas na convivência plural e solidária entre pessoas que se reconhecem como membros de uma mesma biosfera que compartilha o mesmo destino histórico”.
Deixamos aqui um momento de espiritualidade na conexão com o rio (texto Flávia Nogueira)
Nasci sujeito de direito, mas queria mesmo ter nascido rio... Queria entender o movimento das águas, saber contornar as pedras, os galhos, as folhas... e mesmo que não entendesse, deixar seguir o fluxo, fluxo da vida que corre em cada novo encontro...
Não ter que pedir licença ou me sentir fora do lugar quando os encontros são inesperados, quando as divisas respigam as águas que escutam as prosas e cantigas de cada cultura...
Rio que corre sem a pressa do tempo, que quando há a correria é para ser cachoeira, para saudar nova vida...
Rio que corre, lava os olhos de quem quer acolhimento e que por um momento também foi água por suas lágrimas, que saúda o novo e que abençoa a sabedoria de quem o respeita...
Rio que vira espelho de nossas atitudes, que abraça a chuva e se preenche com ela, que esculpe as duras pedras no caminho, que embala a semente e a nutre, e não para um dia ser fresca com sua sombra, mas porque sabe que a semente merece germinar, rio que encharca a folha que nutre o solo...
Rio que se acalma no pisar de uma criança ao descobri-lo, que se enche de alegria ao matar a sede, mas nunca se envaidece, rio que testemunha juras de amor e o mesmo que cobre, em suas funduras, amores esquecidos...
Rio que conecta, que acalma, que limpa e que transforma!
Rio que merece ter seus direitos como sujeito mesmo sendo tanto para caber em uma palavra só!
Rio que precisa ser respeitado e livre!
Esse ensaio foi elaborado para Disciplina de Bioética Ambiental do PPGB, tendo como base as obras:
Castañeda Ruiz, HN, Gómez Osorio, Á. M., Pérez Garcés, H., & Herrera Mejía, JA (2019). A declaração do Rio Atrato como sujeito de direitos: uma oportunidade para a construção de um projeto presente-futuro de território sustentável. Diário Kavilando, 11(2), 417-433
Hernández Castellanos, Donovan Adrián. (2011). Formas de alteridade: um desafio epistemológico e político. Andaimes,8(16), 11-31.
INSTITUTO AMBIENTAL DO PARANÁ. Monitoramento da qualidade das águas dos rios da Bacia do Alto Iguaçu, na Região Metropolitana de Curitiba, no período de 2005 a 2009. Curitiba: IAP, 2009. p. 100
FISCHER, Marta Luciane et al. Da ética ambiental à bioética ambiental: antecedentes, trajetórias e perspectivas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, n.2, abr.-jun. 2017, p.391-409.
POTTER, Van Rensselaer. Bioética global: construindo sobre o legado de Leopold. Lansing: Michigan State University Press. 1988
Títulos e Ilustrações obtidos por meio de Inteligência Artifical generativa Chat GPT4 e Copilot