A solidão de animais e tutores em situação de isolamento social em decorrência da Pandemia da Covid-19



Série Ensaios: Sociobiologia


por Aline Eduardo Bernardino, Danielle Cristina Pires, Helena de Cassia Porto

graduandas de Biologia e Psicologia

Dentre as diversas mudanças na rotina e no ritmo de vida de pessoas do mundo inteiro submetidas ao isolamento social como medida preventiva à contaminação pelo Covid-19, destacamos o aumento do interesse em adotar animais de estimação, como descrito na matéria publicada pelo site G1 Procura por adoção de cães e gatos cresce na pandemia; cuidadores fazem alertav.

O ser humano, desde sua formação, é um animal extremamente social, em todas as suas necessidades. Porém com os avanços tecnológicos e alteração no estilo de vida das pessoas, como mudanças na comunicação, sendo necessário cada vez menos contato entre as pessoas, vem tornando o ser humano cada vez mais individual. O individualismo nas relações sociais, contrapõe a extrema capacidade humana de socialização, e gera tentativas de fuga da solidão de diversas formas possíveis, como por exemplo o comportamento sexual com a mudança frequente de parceiros.

A solidão é o mecanismo neurológico que ocorre em reposta ao isolamento social, ou seja, uma forma do sistema nervoso comunicar ao indivíduo a necessidade de contato com outros seres vivos. Como fenomeno psicologico, pode ser conceituada de várias formas, mas que tem em comum a falha ou deficiência nas relações sociais do indivíduo. Desse modo, ela é vista como um
a insatisfação com a quantidade ou qualidade desses vínculos.

Assim, a solidão pode ser aquela em que se está sozinho de fato, ou aquela em que se está cercado de pessoas, e mesmo assim sente-se só- sendo está última um dos agentes relacionados a depressão-, podendo ocorrer de forma voluntária, quando o indivíduo opta por estar só, ou de forma involuntária, quando a solidão é imposta por algum fator de relevância maior, como ocorre atualmente no mundo todo, dado ao estado atual da pandemia de Covid-19, cujo vírus tem dispersão extremamente eficiente e alta em meio a aglomerações, ou seja, o convívio social, característica marcante humana, se torna um perigoso agente de dispersão patológica, pondo em risco a vida de inúmeros indivíduos.

As bases neurológicas do sentimento de solidão são semelhantes nas espécies de comportamento social mais complexas, como os mamíferos e as aves, e fundamentam-se na ação dos neurotransmissores serotonina, dopamina e ocitocina. A serotonina é o neurotransmissor responsável pela sensação de bem estar, e a falta de interação social provoca sua depleção, como observado no estudo conduzido por Sargin, Oliver e Lambe (2016). Já a dopamina está primordialmente associada ao circuito da recompensa, sendo observado que em situações de isolamento social apresenta mudanças em alguns de seus circuitos sinápticos (Matthews et al., 2016). A circulação reduzida de dopamina pode resultar em tentativas de compensação por outras vias de estímulo, semelhante a uma pessoa que adquire compulsão alimentar após parar de fumar, a falta de dopamina resultante do isolamento social pode desencadear comportamentos aditivos – os memes sobre engordar durante a pandemia podem ser descorteses, mas certamente possuem fundamento científico (Robinson & Berridge, 1993). A ocitocina é sintetizada quando ocorre o contato agradável entre os indivíduos, inclusive interespecíficos, sendo demonstrado por Nagasawa et al. (2015) que esse neurotransmissor que também possui função hormonal realizou a mediação do vínculo afetivo entre o homem e o cão no processo evolutivo de ambas as espécies.

O comportamento social em espécies dotadas de sistemas neurológicos complexos, a exemplo da raça humana e das espécies que mais frequentemente são escolhidas pelos humanos como animais de estimação, como o cão e o gato, é uma estratégia evolutiva que foi finamente lapidada para fornecer suporte não apenas às necessidades físicas, mas também – às vezes principalmente – às necessidades emocionais. Sabe-se que o cão doméstico (Canis familiaris) é uma espécie selecionada pelos humanos a partir de indivíduos mais sociáveis de Canis lupus, o lobo. Inicialmente, era uma troca de alimento por companhia e proteção de predadores; posteriormente, o cão foi selecionado de formas tão diversas, as chamadas “raças”, que se torna difícil conceber que pertençam todos à mesma espécie, e mais ainda relacioná-los ao lobo que lhes deu origem. Já o gato doméstico (Felis catus) deriva de indivíduos selvagens mais proativos, que se aproximavam das residências, celeiros e depósitos em busca de alimento, fornecendo em troca os serviços de extermínio de roedores, e sendo também submetido a processos de seleção artificial por parte dos humanos. De qualquer forma, os cães e gatos domésticos dos dias de hoje são animais moldados, inclusive em termos de mecanismos neurológicos, à convivência com a espécie humana, sendo pouco capazes de sobreviver em ambiente selvagem. Quanto ao ser humano, são conhecidos os benefícios da companhia de um animal de estimação para pessoas doentes e saudáveis, em condições tão diversas como depressão, stress pós-traumático, autismo, tratamento quimioterápico, entre outras. Também cabe ressaltar que grande parte dos estudos comportamentais são realizados em modelos animais, conflitos éticos à parte, devido a essa enorme semelhança de padrões de resposta.

Por essas razões, é necessário ter alguma cautela na decisão de adotar um animal de estimação sob a motivação de um cenário atípico, caso do isolamento social que estamos vivendo atualmente. Uma situação frequente mesmo em lares em que há uma dedicação da parte dos tutores ao animal, mas que este permanece só na casa durante algumas horas do dia, é a Síndrome da Ansiedade de Separação, na qual o animal demonstra comportamentos anormais ou mesmo patológicos apenas durante a ausência do tutor. O que ocorrerá aos cães e gatos adotados por impulso quando as rotinas de trabalho e aulas de seus tutores voltarem à normalidade? Outro perigo é o stress gerado ao animal quando, após adotado, é devolvido novamente ao abrigo.

Esses questionamentos perpassem a noção de agente moral que o adotante assume ao escolher essa ação. Isso porque o animal não possui liberdade, razão ou linguagem/comunicação para intervir e sendo assim sofrem com as ações desses seres humanos. Desse modo, ainda que isso não traga diretamente dor, eles podem ser prejudicados. Esse prejuízo, torna-os pacientes morais do conflito que conjuntamente adquirem uma noção de vulnerabilidade e que é esta que baseará a considerabilidade moral, onde quando a pandemia termine e esse adotante decida que seu interesse já foi satisfeito e não necessita mais a contribuição oferecida que esse animal de estimação o proporcionou, possa tomar outra decisão, sendo essa a de devolver ou ainda abandonar esse animal o que o deixa a margem de danos e a até mesmo a morte.

As administradoras dos abrigos para animais ouvidas na reportagem afirmam terem sido procuradas por candidatos a tutores que desejavam um animal apenas pelo período do isolamento social, e advertem sobre os efeitos negativos sobre a saúde mental dos animais em caso de abandono ou troca repentina de tutores. Afinal, o sentimento de solidão e abandono não é exclusivo do ser humano, seria então ético adotar um animal para suprir a própria carência, e posteriormente submeter ao animal ao mesmo sofrimento? Nesse caso não é uma extrapolação indevida substituir o animal adotado pela figura hipotética de uma criança: seria ético adotar uma criança e depois devolvê-la porque não se tem mais motivação ou tempo livre para dedicar a ela?

É nesse momento que vemos então a necessidade de uma quebra a esse falso pensamento de que o ser humano tem o controle de tudo aquilo que supostamente não se valha de si mesma por não apresentar a racionalidade, onde esse as vê como simples objetos que estão ao seu dispor. Assim há mais do que uma urgência em regrar as ações humanas para que suas consequências estejam dimensionadas quando relacionadas a outros seres.




O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Etologia, baseando-se nas obras:



BASTOS, M. T.; COSTA, M. E. A influência da vinculação nos sentimentos de solidão nos jovens universitários: Implicações para a intervenção psicológica. Psicologia, v. 18, n. 2, p. 33-56, 2004.

FELIPE, S. T. Agência e paciência moral: razão e vulnerabilidade na constituição da comunidade moral. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 6, n. 3, p. 69-82, 2007.

FELIPE, S. T. Antropocentrismo, sencientismo e biocentrismo: perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos. Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1, p. 2-30, 2009.

FELIPE, S. T. Da considerabilidade moral dos seres vivos: a bioética ambiental de Kenneth E. Goodpaster. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 5, n. 3, p. 105-118, 2006.

FERNANDES, H.; NETO, F. Adaptação portuguesa da escala de solidão social e emocional (SELSA-S). Psicologia, Educação e Cultura, XIII, p. 7-31, 2009.

Nagasawa, M. et al. (2015). Oxytocin-gaze positive loop and the coevolution of human-dog bonds. Science, 6232 (348), pp. 333-336.

NEGRÃO, S. L. O critério da vida para uma ética ambiental: concepção, filiação, conceitos, argumentos e propostas de Kenneth Goodpaster. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 5, n. 3, p. 119-124, 2006.

Matthews, G. A. et al. (2016). Dorsal Raphe Dopamine Neurons Represent the Experience of Social Isolation. Cell, v. 164, pp. 617-631.

Moreira, V., & Callou, V. (2006). Fenomenologia da solidão na depressão. Mental, 4(7), 67-83.

Robinson, T. E., & Berridge, K. C. (1993). The neural basis of drug craving: An incentive-sensitization theory of addiction. Brain Research Reviews, 18 (3), 247-291

Sargin, D., Oliver, D. K. & Lambe, E. K. (2016). Chronic social isolation reduces 5-HT neuronal activity via upregulated SK3 calcium-activated potassium channels. eLife, v. 5, pp. 1-14.