Luto: Perdas e Medo da Morte pela Covid-19




Série Ensaios: Socibiologia



Por. Fernanda Raach da Silva, Giovana Maia da Luz, Jéssica Cristine Colla Raymundo, Laís Mello Floriano, Marcilene Luiza Sitta Domingos, Milene Larissa de Almeida dos Santos, Thaís Norrah de França Oliveira.

Graduandos de Biologia e Psicologia


Uma criança com microcefalia, em virtude da epidemia do Zika vírus iniciada em abril de 2015, veio a óbito com a suspeita de Covid-19 devido à problemas respiratórios e a desnutrição no dia 31 de março de 2020. Arthur, de três anos, adoeceu ficando 8 dias internado, sendo parte deles na UTI, e veio a falecer sem obter o resultado do teste para coronavírus. Neste período, a demanda de testes para o Covid-19 apresentou-se muito alta no país, e mesmo com a insistência da mãe, Maria, para priorizar o resultado, este só saiu um dia após a morte do menino, confirmando a morte devido a pneumonia e não ao Covid-19.Os 6 dias em que Arthur ficou na UTI, Maria o assistia através da vidraça apenas uma hora por dia. Ela foi privada de qualquer contato físico e, com isso, vivenciou um duplo luto do seu filho idealizado, pois nem na morte teve direito de acalentar o corpo do próprio filho, que, sem roupas, foi colocado em um caixão lavrado, além de não poder tocá-lo, a família não obteve nem o passe de se despedir no velório, pois o corpo foi enterrado sem a presença dos familiares.



Essa situação abre um debate ético sobre o direito da mãe de velar o filho e qual seria a atitude mais correta em relação ao funeral. A visualização e vestimenta do cadáver são culturalmente significantes como forma de respeito ao falecido, portanto a atitude da funerária teve um impacto emocional negativo e significativo para a mãe. Porém a pandemia coloca trabalhadores de funerária em possível risco. O dilema ético é então como manter a saúde dos trabalhadores e ainda assim mostrar esse respeito e permitir etapas importantes no processo de luto, não só nesse caso particular como em futuros funerais. Podemos identificar como agentes morais, os governantes que definiram os protocolos de restrições para o funeral de pessoas com suspeita ou confirmadas com o covid-19, assim como as restrições ditadas pelos médicos do hospital. Soma-se a isso também a atitude da própria funerária, que recusou vestir Arthur, com medo de uma possível contaminação. É explícito, nesse caso, que a mãe da criança é considerada como paciente moral, pois teve que acatar todas as decisões que médicos e agentes funerários adotaram quando Arthur estava internado, bem como quando veio a óbito.
O ser humano, como espécie social, lida com o luto através de comportamentos sociais, interações do comportamento com os demais indivíduos da mesma espécie (intraespecíficas) ou de outras espécies (interespecífico). Esse comportamento é tido pela convivência em grupo e determina as relações que ele vai ter. Uma característica importante desse comportamento é a participação de mais de um indivíduo, como por exemplo a proteção feita por uma manada de um filhote ameaçado.
A formação de grupos é muito importante como uma estratégia de sobrevivência da espécie, ampliada quando se vive em conjunto em comparação com a vida solitária. Para isso é preciso renunciar à liberdade, considerada o bem maior de um indivíduo, para pensar no bem coletivo. As vantagens são atraentes: mais proteção, mais tempo, mais comida. Em contrapartida para viver em grupos é necessário ter regras ou normas, e isso interfere no tão importante livre arbítrio dos indivíduos. Além disso, os animais formam grupos com quem mais se identificam, nas quais as regras fazem sentido e permanecem com essa organização caso traga vantagem para a sua sobrevivência.
Embora a morte faça parte do processo de desenvolvimento de todo ser vivo e seja muito presente em nosso cotidiano, no contexto sócio histórico há uma negação da morte. Para o homem ocidental moderno, a morte é sinônimo de fracasso, impotência e vergonha. Algo muito diferente do que acontecia na idade média na qual a morte era entendida como algo natural, obedecia a um ritual que envolvia tanto a pessoa que ia morrer quanto seus parentes e amigos, num contexto em que o moribundo tinha a oportunidade de se despedir e com isso podia seguir em frente. Com o desenvolvimento do capitalismo e o processo da industrialização, o corpo foi transformado em instrumento de produção e de trabalho, adoecer neste contexto significa deixar de produzir, vergonha pela inatividade e que deve a todo custo ser ocultado do mundo social.
A morte que antes estava presente na sala de visitas, uma vez que os corpos eram velados nas casas, hoje, desloca-se para os hospitais, e pacientes que se encontram em situações limite entre a vida e a morte, muitas vezes mantidos em UTIs a custo de procedimentos e equipamentos altamente sofisticados em ambiente isolados, sendo privados do convívio de seus familiares. Algo muito próximo do que está acontecendo no momento atual com os pacientes vítimas do covid-19, que são obrigados ao isolamento físico, privados de liberdade, são impedidos de sentir e de expressar suas emoções, destinados a um sofrimento solitário e discreto. Além disso, nos atuais dias em que estamos enfrentando tal pandemia, a morte e a dor da perda não estão voltadas apenas as pessoas infectadas pelo novo vírus ou parentes próximos. O estresse e o sentimento de superioridade de muitas pessoas, por não pensarem no outro, estão levando o encurtamento na vida de pessoas inocentes, as quais estavam seguindo suas vidas cuidadosamente e de forma responsável. Não apenas isso, a violência mostrada em outras formas, como a doméstica, mostrou um aumento de 30% em São Paulo durante a quarentena, além de outros países como a Argentina, a qual relatou 18 mortes de mulheres assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros apenas nos primeiros 20 dias de quarentena no país.
Na primeira fase do luto, onde há o estresse agudo, a medula da glândula supra renal secreta hormônios na corrente sanguínea, a adrenalina e noradrenalina. Após esse período, ocorre o estresse crônico, em que o principal hormônio secretado são os glicocorticóides (CHARGAS, 2010). Entre os sintomas biológicos que acometem o indivíduo durante o processo de luto, podem se manifestar a diminuição do apetite, distúrbios do sono, perda de energia e exaustão, queixas somáticas ou físicas como também a suscetibilidade a doenças e enfermidades. A dor também está associada com o aumento da mortalidade (WALDROP, 2007).
O processo de luto é um conjunto de reações diante da perda. Falar de perda significa falar dos vínculos que se rompem uma vez que o objeto é perdido, o sujeito reage de forma a reorganizar-se psiquicamente. Esse processo não se restringe apenas aos seres humanos, pode-se observar este comportamento em diversas outras espécies espalhadas por nosso planeta. Os chimpanzés, por exemplo, ao perderem um ente querido em seu grupo, comportam-se de forma semelhante a nós humanos; perdem o apetite, buscam reanimar o corpo do animal falecido e até mesmo – em casos específicos, perdem a vontade de viver, entrando em uma depressão profunda que pode levá-los a morte. Além destes primatas, o luto pode ser observado em outros mamíferos como os elefantes e até mesmo em aves. Existem diversos animais que por não aceitar a perda do filhote acabam por carregá-lo nas costas por dias, isso acontece em chimpanzés e até mesmo em Orcas.
O processo de luto acontece, com base no primatologista e etólogo holandês Fraans de Waal, em todos os animais que possuem a capacidade de se ligar individualmente a outro, ou seja, nós humanos temos ligações com nossas amizades, amores, família e conhecidos, assim como há uma ligação dentro das comunidades de diversos outros animais.
Com base no caso real introduzido neste estudo, onde percebemos os diferentes efeitos proporcionados pelos fatores biológicos (a perda de energia e exaustão por parte da mãe), psicológicos (a tristeza pela morte do filho) e os etológicos (o próprio comportamento de luto), nós como quase formandos de biologia e psicologia compreendemos as diferentes questões culturais existentes pelo mundo, na qual o aprendizado e as experiências fazem com que cada sociedade busque o seu próprio meio de se autorregular em frente a uma pandemia como a que estamos enfrentando. Em relação a isso, são estabelecidas normas legais, morais e éticas as quais controlam as decisões dos indivíduos, pois afinal, toda decisão ocasiona um impacto na vida alheia. Logo, quando nos encontramos no papel de agente moral, nossas decisões devem levar em consideração todo o coletivo, pensando principalmente nos mais vulneráveis que não apresentam o poder de decisão.
Acreditamos que na situação em que uma mãe não pode zelar seu filho, é inquestionável não salientarmos o importante papel de algumas culturas, diante de uma situação em que foi totalmente feito descaso não só da mãe que acabou de perder seu filho, como também do próprio falecido. Consideramos inaceitável, visto que já se tem um protocolo para orientar as equipes de saúde e funerárias, com medidas a serem tomadas diante de vítimas confirmadas da doença, assim como em casos suspeitos. As medidas preventivas são desde o manuseio do cadáver, até os velórios/funerais dos entes queridos, quanto para os familiares e amigos.


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de etologia, se baseando nas obras:
BOWLBY, John. Formação e Rompimento dos Laços Afetivos. 3º edição. São Paulo, 1997
COMBINATO, Denise Stefanoni  e  QUEIROZ, Marcos de Souza. Morte: uma visão psicossocial. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2006, vol.11, n.2, pp.209-216. ISSN 1678-4669.  Disponível no endereço eletrônico: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-294X2006000200010&script=sci_abstract&tlng=pt pesquisa realizada em 27 abril 2020
CHAGAS, Maria Inês Orsoni. O estresse na reabilitação. Acta fisiátrica, v. 17, n. 4, p. 193-199, 2010. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/actafisiatrica/article/view/103393/101862> Acesso em: 28 abril 2020.
CREMASCO. Maria Verginia Filomena; SCHINEMANN, Dhyone e PIMENTA, Susana Oliveira. Mães que Perderam Filhos: Uma Leitura Psicanalítica do Filme Rabbit Hole. Disponível no endereço eletrônico: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932015000100054&script=sci_abstract&tlng=pt pesquisa realizada em 27 abril 2020
NASCIMENTO. Diogo Cesar; NASSER. Gabriel Meirelles; AMORIM. Cloves Antonio de Amissis e PORTO. Tatiany Honório. Luto: Uma Perspectiva da Terapia Analítico Comportamental. doi: 10.7213/psicol.argum.33.083.AO01. Disponível no endereço eletrônico: https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/article/viewFile/19593/18937 pesquisa realizada em 27 abril 2020
WALDROP, Deborah P. Caregiver grief in terminal illness and bereavement: A mixed-methods study. Health & Social Work, v. 32, n. 3, p. 197-206, 2007. Disponível em: < https://academic.oup.com/hsw/article-abstract/32/3/197/726252> Acesso em: 28 abril 2020

WELLE, Da Deutsche. Existe luto no reino animal? G1. 22 de set. de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/09/existe-luto-no-reino-animal.html>. Acesso em: 27 de abr de 2020.