AUTOMEDICAÇÃO PODE SER INTERPRETADA COMO UM COMPORTAMENTO NATURAL?


Série Ensaios: Ética no Uso de Animais

Por Mônica Cristina Sampaio Majewski
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR

 

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e ICTQ em mais de 130 cidades no Brasil constatou que 40% dos brasileiros não tomam medicamentos de forma correta. A automedicação intoxica três pessoas por hora no Brasil. Segundo os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações Tóxico Farmacológicas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),o Brasil registrou 138.376 intoxicações e 365 mortes causadas por medicamentos entre 2008 e 2012. Os medicamentos mais consumidos por automedicação são os analgésicos e anti-inflamatórios (Brasil, 2014) (Konig, 2015).

A automedicação pode ser definida pela iniciativa de um doente, ou de seu responsável, em utilizar algum medicamento sem a prescrição ou aconselhamento de um profissional habilitado, para previnir ou tratar alguma doença, aliviando quaisquer sintomas, ou seja, é a ingestão de medicamentos por conta e risco próprios (Paulo, Zanini, 1988). Mesmo sendo considerada uma prática de autocuidado, a automedicação pode ter um grande potencial danoso à saúde, uma vez que nenhum medicamento é inofencivo ao organismo (Schuelter-Trevisol et al, 2011). O uso incorreto de substâncias consideradas “inócuoas” pela população pode ocasionar diversas consequências, tais como hipersensibilidade, sangramento do trato digestivo, dependência e até mascarar um transtorno de saúde maior, com o alívio momentâneo dos sintomas podendo agravar o quadro clínico de alguma doença (Forner, Silva e Brzozoeski, 2008).  

            A automedicação pode ser influenciada por diversos fatores, incluindo indicação por pessoas não adequadas como amigos, familiares e balconistas de farmácia. Porém, há também outros fatores influenciadores como economia, política e cultura. O amplo número de medicamentos atualmente disponíveis no mercado, a cultura da população em geral que torna o medicamento como um bem de consumo e a grande publicidade da indústria farmacêutica, colaboram para a que ocorra a automedicação (Faria e Cunha, 2014) (Schuelter-Trevisol et al, 2011). As propagandas sendo chamativas, coloridas e atrativas induz o consumo, aumentando os riscos às intoxicações, principalmente as acidentais por crianças (Santos, Freitas e Eduardo, 2015). Se olharmos para trás podemos perceber que a automedicação em nossa sociedade provém da cultura indígena com o uso de ervas medicinais para tratamento de doenças e da cultura popular de curandeirismo utilizada pelos escravos na época do Brasil Colonial. As práticas de cura em nosso país foram resultados de troca de experiências terapêuticas entre europeus, índios e africanos (Silva, Goulart e Lazarini, 2014).

O homem sempre buscou, por instinto, intuição ou cultura, o alívio para suas dores e o cuidado com seu corpo. Constata-se também, baseado nas observações aos animais, que os mesmos também procuraram tal alívio e cura, buscando ervas ou repouso. Ou seja, a medicina sempre se apresentou intuitiva em relação ao cuidado (Cavalcanti e Ribeiro, 2014). Fundamentado nas observações aos animais, vários estudos sobre o consumo de plantas medicinais estão sendo realizados. Animais afetados por parasitas, por exemplo, podem ter seus padrões comportamentais afetados. (Jesus, 2014). Segundo Lozano, (1991), há três mecanismos comportamentais que os animais apresentam para diminuir as ações dos parasitas: (1) evitar alguns alimentos que normalmente são fontes de parasitas, (2) selecionar dietas com determinados itens alimentares que aumentem a resistência e (3) selecionar determinados alimentos por causa dos compostos antiparasitários específicos que podem matar e / ou fazer com que a expulsão dos parasitas ocorra. A automedicação acontece nesses casos quando há a utilização de compostos secundários e não-nutricionais no combate a parasitoses. Os estudos que evidenciam isso é baseado no consumo de plantas medicinais feitos por primatas não-humanos (Huffman,2003). O fato de primatas não-humanos “engolir folhas inteiras” e de “mastigar a medula amarga” de folhas, é o que justifica o comportamento considerado terapêutico, auxiliando no controle da infecção e no alívio de dores (Jesus,2014). Com a evolução, os hospedeiros desenvolveram diversos mecanismos de proteção contra parasitas desde utilização de plantas que repelem parasitas, eliminando pelas fezes, até mudanças na alimentação (Huffman,2003).

  
          A automedicação, como relatado anteriormente, pode ser observada não somente em humanos, como em outras espécies, com o uso de plantas medicinais ou outras medidas não farmacológicas a fim de aliviar sintomas e enfermidades. Acredita-se que pode ser considerada uma prática natural e biológica, uma vez que foi observado antes na natureza e posteriormente reproduzido por humanos no tratamento e/ou cura de doenças, alívio para dores e o cuidado com o corpo. Diante disso, há um interesse maior da indústria farmacêutica em investir em publicidade de medicamentos estimulando esse sentido de “autocuidado”, principalmente para um público mais vulnerável, com baixa renda, baixa escolaridade. Porém, a automedicação mesmo sendo vista como um comportamento natural não deve ser praticada de forma indiscriminada e irracional, devendo ser sempre orientada por profissionais qualificados.

À vista do exposto, eu como farmacêutica, atuando diariamente com pacientes usuários de medicamentos, orientando-os e auxiliando-os na otimização de suas farmacoterapias, acredito que com o crescimento e desenvolvimento da sociedade, é evidente o aumento do consumo de medicamentos, uma vez que a população está cada vez mais preocupada com a saúde e está buscando mais qualidade de vida. A finalidade dos medicamentos deveria ser a recuperação e manutenção da saúde, porém com seu uso irracional pode causar danos. Diante deste risco, a sociedade precisa de farmacêuticos capazes e ativos, que assumam a responsabilidade pela terapêutica farmacológica concedida à população.

 

Este ensaio foi elaborado para a disciplina de Temas de Bioética e Bem estar Animal tendo como base as obras:

 

AQUINO, D.S.; BARROS, J.A.C.; SILVA, M.D.P. A automedicação e os acadêmicos da área de saúde. Revista Ciências e Saúde Coletiva, v.15(5) p.2533-2538, 2010.
ARRAIS, P.S.D.; COELHO, H.L.L.; BATISTA, M.C.D.S.; CARVALHO, M.L.; RIGHI, R.E.; ARNAU, J.M. Perfil da Automedicação no Brasil. Rev Saúde Pública, v.31(1),p.71-77,1997.
BERTOLDI, A.D.; BARROS, A.J.D.; HALLAL, P.C.; LIMA, R.C. Utilização de medicamentos em adultos: prevalência e determinantes individuais. Rev Saúde Pública,v.38,p.228-238, 2004.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Cuidado farmacêutico na atenção básica; caderno 1. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
CAVALCANTI, M.M.S.G.; RIBEIRO, M.S.S. Cultura do cuidado integral: autonomia e altruísmo na promoção de saúde e educação. REVASF, v.4, n.6,p.11-127, Petrolina, PE, dez. 2014
FARIA, L.M.O.; CUNHA, M.M.S.S. Perfil de Automedicação entre Estudantes de Medicina. Revista Ciência Atual, v.4, n.2, p.02-10. Riode Janeiro, 2014.
FORNER, S.; SILVA, M.S.; BRZOZOWSKI, F.S. Propaganda de medicamentos, automedicação e a ética farmacêutica: uma tríade farmacêutica. Artigo  de revisão. Instituto Sallus, 2008.
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HUFFMAN, M.A. Current Evidence for Self-Medication in Primates: A Multidisciplinary Perspective. Yearbook of Physical Anthropology, v.40, p.30, 1997.
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JESUS, A. S. Composição da dieta e intensidade de infecção parasitária em bugios-pretos (Alouatta caraya): buscando evidências de automedicação. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação em Zoologia, p.72, 2013.
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PAULO, L. G. ; ZANINI, A. C. Automedicação no Brasil. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 34, n. 2, p. 69-75, São Paulo, março/abril, 1988.
SANTOS,P.N.M; FREITAS, R.F; EDUARDO, A.M.L.N. Automedicação infantil: conhecimento e motivação dos pais. Revista Multitexto, v.3,n.01,2015.
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