Aspectos Éticos com Doadores Vivos não humanos


Série Ensaios: Ética no Uso de Animais
Por Anna Silvia Penteado Setti da Rocha
Pós-doutoranda do  Programa de Pós Graduação em Bioética

Recentemente a mídia tem noticiado algumas campanhas para doação de sangue entre animais. Uma entrevista veiculada pelo jornal da Band relata que pouca gente sabe que é possível doar sangue de cães e gatos, e que esta ação, assim como nos humanos, serve para salvar vidas de animais doentes ou que sofreram algum tipo de traumatismo. O cão Ítalo já esteve dos dois lados, precisou de sangue quando esteve doente, possibilitando a sua recuperação e agora completamente saudável, tornou-se um doador assíduo na clínica veterinária. Bolinha, outro cão comentado na entrevista da Tv Brasil, também foi salvo devido a uma transfusão de sangue, necessitando de doador. A reportagem mostra que o estoque de bolsas de sangue na medicina veterinária é baixa, e o conselho federal de medicina veterinária relata que pode ser devido a preconceitos, medos e outros fatores que podem atrapalhar esta conduta, necessitando melhor conscientização da população (veja a matéria)

 



 

Este ato de “amor” também pode ser questionado bioéticamente por ser o animal extremamente vulnerável. De um lado existe uma situação de estresse e sofrimento (mesmo que mínimo) do animal doador, e do outro lado o grande benefício gerado a vários animais em condições de sofrimento causado por diversas doenças.
        Outros tipos de doação também podem ser realizados entre os animais. Tratamentos por transplantes também são procedidos na medicina veterinária, sendo o mais comum o transplante de córnea e o transplante de rins em gatos. O transplante de maneira geral, pode ser definido como o processo de transferência de um órgão ou tecido, ou parte deles, de um indivíduo, chamado de doador, para outro indivíduo, chamado de receptor, ou ainda pode ser realizado em locais diferentes no mesmo individuo. Em relação ao doador, este pode estar plenamente saudável ou falecido.
     Os transplantes vêm sendo realizados com grande sucesso na medicina, possuindo cada vez mais novas tecnologias para este tipo de tratamento, prolongando a vida de muitos pacientes. Nada impede que também seja realizada a relação doador-receptor por indivíduos da mesma espécie (alogênicos) e por espécies diferentes (xenogênicos). Na medicina veterinária, os alotransplantes vem sendo um tratamento promissor para aqueles animais onde não há mais expectativa de vida. O primeiro transplante renal com sucesso realizado em gatos, ocorreu em 1987 na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Davis-Califórnia. O transplante renal tem tido mais sucesso em gatos do que em cães, onde a taxa de mortalidade e as complicações são ainda elevadas, o que impede que o transplante renal em cães se difunda (Bleedorn & Pressler, 2008).

O animal portador de doença sempre é o foco na decisão do tipo de tratamento realizado, mas a opção de um tratamento onde envolve animais saudáveis sempre precisam ser repensadas no aspecto bioético. Sobre o doador, em países que realizam com mais frequência este tipo de tratamento, este é encontrado pelo tutor do animal receptor ou através do centro de transplantes, e sempre que este não tenha proprietários, o dono do receptor é obrigado a adotar o animal doador, independentemente do que acontecer ao receptor. Em qualquer ocasião, o doador deve ser saudável e sem qualquer doença infecciosa ou sistêmica, devem ser jovens, com 1 a 3 anos de idade e com um peso e tamanho corporal idênticos ou superiores aos do receptor, e submetidos a vários testes de compatibilidade (Adin, 2002; Kadar et al., 2005). As dúvidas sobre questões éticas surgem, pois, a partir de um animal doente e um animal saudável, você acaba tendo uma necessidade de terapia associada permanente de ambos. Um argumento para se opor ao transplante é o fato de que o animal receptor pode não beneficiar por muito tempo o tratamento e o doador pode sofrer patologias futuras pelo ato heroico. Mesmo assim, o transplante para a medicina veterinária ainda não é uma cura, mas é uma das poucas opções de tratamento onde a eutanásia é o único caminho.

A preocupação também surge com a possibilidade de que estabelecimentos motivados comercialmente comecem a fornecer animais, levando a eutanásia generalizada de saudáveis ​​para a remoção de órgãos. A Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) comenta que, além das preocupações de ordem ética em torno da origem do doador e o tempo de vida do receptor, será que os tutores dos animais podem ser colocados sob estresse psicológico para realizar o tratamento no seu amado animal de estimação, com gastos financeiros elevados após o procedimento, para o cuidado adequado do animal?
  
  Sobre os xenotransplantes (tecidos e órgãos de animais não humanos para seres humanos), realizados em diversas pesquisas científicas, tem-se como exemplos o caso São Petersburgo (1992) e o caso Baby Fae (1984), ambos tendo como doador um babuíno saudável, necessitando o sacrifício do animal. O caso Baby Fae gerou muita polêmica em relação aos aspectos éticos, pois além do sacrifício do animal, um recém nascido foi utilizado como experimento de pesquisa. Outro animal bastante utilizado nas pesquisas com xenotransplantes são os suínos, pois apresentam órgãos compatíveis em tamanho e fisiologia e menor resistência por parte da sociedade por ser animal de produção e não estar tão próximo da escala genetica do ser humano. Esse distanciamento também gera um maior risco de rejeição, por esta razão, atualmente as pesquisas realizadas em suínos, fazem a introdução de genes humanos, modificando o animal geneticamente para minimizar os riscos e obter maior sucesso no tratamento.
     Os riscos presentes nas pesquisas de xenotransplantes são as chamadas xenozoonozes, sendo um potencial para o surgimento de novas doenças e mutações geneticas. A utilização de animais em xenotransplante faz surgir situações podendo lesar o bem jurídico dignidade animal, fazendo incidir o direito penal. O artigo 225, § 1o, VII, da Constituição da República, impõe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade’. Entretanto, a falta de “recursos alternativos” para suprir a demanda por órgãos para transplante em humanos e a necessidade de validação científica das pesquisas, parece justificável, o uso de animais.
               Eu como pós-doutoranda em Bioética acredito que  a doação de órgãos e tecidos no ser humano é visto como um benefício público, com leis e normas bem estabelecidas. Nos animais, as leis ainda são precárias, mas a evolução tecnológica possibilita cada vez mais a utilização deste tipo de tratamento para beneficiar a medicina humana e a medicina veterinária. Portanto, devemos pensar em normas e modelos para que possamos tratar com ética os aspectos legais em todas as espécies.

 

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Ética no Uso de Animais do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR, basenado-se nas obras:

Souza, Paulo Vinicius Sporleder. Direito Penal Médico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 19-20.

Bleedorn J, Pressler BM. Screening and medical management of feline kidney transplant candidates. Vet Med 2008;103:92-103.

Adin, C.A. Screening criteria for fenile renal transplant recipients and donors. Clinical Techniques in Small Animal Practice, 2002; 17 (4), 184-189.

Kadar, E., Sykes, J.E., Kass, P.H., Bernsteen, L., Gregory, C.R. & Kyles, A.E. Evaluation of the prevalence of infections in cats after renal transplantation: 169 cases (1987-2003). Journal of the American Veterinary Medical Association, 2005; 227 (6), 948-953.

Presidência da República. Lei nº 9.434/1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm . Acesso em 20 de outubro de 2015.

Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA), disponível em: http://www.rspca.org.uk/home . Acesso em 14 de outubro de 2015.