Série Ensaios: Sociobiologia
Por Gabriela Baptista
Acadêmica do Curso de Biologia PUCPR
Em um caso divulgado na mídia em 15 de
março 2015, um casal decide adotar cinco crianças com idades diferentes e cada
um apresentando algum tipo de deficiência. O primeiro filho foi adotado com
dois anos e meio e tem síndrome de Down, é autista e perdeu parte da visão. O
mais polêmico é que a segunda filha adotada pelo casal, Clarinha, era dotada de
uma doença, anencefalia, não possuía cérebro. Os médicos diziam que a bebezinha
de 11 dias não passaria de um mês de vida, porém ela viveu quase oito anos. Caso
raro na ciência. Ela ganhou mais três irmãos, todos com idades e deficiências
distintas. "Quando você toma essa iniciativa de querer ter um filho, tudo
é por amor. É por vontade de acolher”, diz Ana Paula mãe adotiva das crianças.
Esse da família da Ana Paula é uma exceção do que realmente acontece no país.
Porque esse caso de solidariedade é tão raro na sociedade? Preconceito? Falta
de informação? Ou simplesmente ausência de estrutura para lidar com uma criança
deficiente?
No século XVI e XVII muitos bebês eram abandonados em instituições de
caridade, deixados por longos períodos de tempo sozinhos, e era costume enviar
as crianças com idade a partir dos sete anos para viverem com outras famílias.
Estes hábitos que antes eram comuns, hoje nos assustam, devido a criança
representar uma grande importância na família e como a força do sentimento do
amor dos pais se sobressaem nos dias de hoje. (Ariés,1981).
A adoção é compreendida como "uma inserção num ambiente familiar,
de forma definitiva e com aquisição de vínculo jurídico próprio da filiação,
segundo as normas legais em vigor, de uma criança cujos pais morreram ou são
desconhecidos, ou, não sendo esse o caso, não podem ou não querem assumir o
desempenho das suas funções parentais" (Diniz, 1994).
No Brasil, a adoção foi introduzida por influência do Reino de Portugal,
fortemente influenciado pelo Direito Canônico. Entretanto, somente com a
introdução do Código Civil de 1916, que a adoção passa a ser disciplinada no
ordenamento jurídico brasileiro, em que somente poderiam adotar os maiores de
cinquenta anos, e pelo menos dezoito anos mais velhos que os adotados. Porém em
13 de julho de 1990, com a Lei nº 8.069, instituiu o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). O ECA
veio para revogar o Código de Menores e modificar a ideia de adoção, visando
proteger o melhor interesse da criança e do adolescente. A adoção está passando
por grandes transformações e assumindo novos paradigmas, já que hoje o
princípio básico da família está na afetividade e este é o caráter que vem mais
se buscando na adoção. (Venosa, 2009).
"A precária realidade da maioria
das instituições e abrigos brasileiros, junto com a alta exigência de preferência conduz a reflexões acerca de
qual seria o verdadeiro sentido da adoção: encontrar uma família para crianças
abandonadas ou satisfazer os desejos de pessoas que, por algum motivo,
decidiram adotar estas crianças?" Apesar das crianças com necessidades
especiais serem as que mais precisam de cuidados específicos, este é o tipo de
adoção mais raro. No Brasil, 5.673 crianças estão cadastradas para adoção.
Dessas, mais de 20% apresenta alguma doença ou deficiência. Porém, dados
recentes mostram que apenas 7,5% (33.207) dos pretendentes aceitariam crianças
nessas condições. Dessa forma, há vários grupos e associações de apoio à
adoção, que há alguns anos vêm trabalhando para otimizar uma nova cultura, que
priorize as necessidades das crianças e não as dos pais. (Fonsêca et al., 2009). Entretanto o problema não
está apenas na restrição dos pretendentes, mas também na lentidão do sistema
judiciário brasileiro. Segundo levantamento de 2003 do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10,7% das crianças e adolescentes abrigados
estavam em condição de adoção. (Domiciano
et al., 2013).
No caso de crianças com necessidades especiais, a situação de abandono
no país se agrava ainda mais, pois muitos pais entregam seus filhos por falta
de informação e condições financeiras para tratá-los. Para muitos gerar
crianças com alguma deficiência, é como se sentir humilhados e envergonhados
por terem uma criança “defeituosa”.
Embora seja raro a adoção por crianças com deficiência, há algumas
famílias que decidem adotar da mesma maneira. Como relata, Niblett (2001) algumas mães já
criaram seus filhos e não se sentem mais necessárias ou se sentem maduras para
assumir tal responsabilidade; outras o fazem por impulso religioso, filosofia
de vida, ou porque querem se dedicar a esta causa por a acharem útil e
gratificante; ou até mesmo por um ato de solidariedade.
Esse gesto de solidariedade é denominado altruísmo. Segundo Simon (1993), o altruísmo é um conceito
difícil de ser compreendido. O mesmo autor cita que a teoria de Adam Smith
sobre o altruísmo é fundamentada na simpatia, através da qual um indivíduo se
coloca, pelo menos teoricamente, na posição da outra pessoa. Já Margolis
(1982), explorando o egoísmo e a racionalidade, considera altruísmo como um
senso de responsabilidade social. Emile Durkheim desenvolveu a tese de que a
verdadeira função da divisão do trabalho é criar entre duas ou mais pessoas um
sentimento de solidariedade. Os indivíduos são ligados uns aos outros e, ao
invés de se desenvolverem separadamente, eles ajustam seus esforços no sentido
de cooperarem entre si para o bem de todos (Durkheim, 2001).
O altruísmo é algo muito importante e não diz respeito exclusivamente
aos animais com um certo nível de inteligência. O altruísmo está por trás da
emergência de novos níveis de organização biológica. Martin Nowak (2008) vêm explorando vários cenários e mecanismos em que o altruísmo
se torna adaptativo, portanto, podendo evoluir por seleção natural. Machado
(2012) relata que ao fazermos uma boa ação, acionamos no cérebro o sistema de
recompensa ("brain reward system"). O mesmo que se acende em
situações de prazer, como comer e ganhar dinheiro. Então nosso sistema de recompensa
(mesolímbico dopaminérgico) é ativado, assim como o córtex subgenual, que é a
região envolvida com o apego social, como a formação de laços afetivos de longo
prazo. No corpo há a ação da ocitocina, que se refere a um neutransmissor
secretado pela glândula pituitária (localizada na base do cérebro). Em
experimentos, voluntários que receberam doses extras da substância demonstraram
uma capacidade maior de criar empatia. Ele também é mais abundante nos
circuitos de recompensa.
Exemplos desse fenômeno estão, por exemplo, nas abelhas que atacam
invasores da colmeia com o próprio ferrão, morrendo no mesmo instante (Darwin,
1985 [1859]), ou os macacos que avisam seus parceiros quando avistam um
leopardo, arriscando a própria vida (Hauser, 1996), ou os morcegos-vampiros que
compartilham o sangue obtido com os membros de seu grupo (Wilkinson, 1990).
Wynne-Edwards (1962) afirma que o egoísmo generalizado seria inviável, já que
produziria um esgotamento dos recursos naturais que levaria a população à
extinção. Se no grupo os membros se comportam altruisticamente, eles obtém um
benefício generalizado maior que um grupo composto por indivíduos egoístas, então
teríamos um caso confirmado de seleção de grupo e da existência de mecanismos
reguladores nesse nível.
O altruísmo no reino animal foi tratado como a manifestação de dois
mecanismos agentes no nível do replicador: a seleção de parentesco (Hamilton,
1963) e o altruísmo recíproco (Trivers, 1971). O primeiro consiste em um
mecanismo evolutivo que induz os organismos a defender a prole dos parentes
mais próximos (que compartilham parte da dotação genética, pela primeira lei de
Mendel). Um exemplo desse mecanismo seria o sacrifício de uma fêmea em defesa
da colmeia. O altruísmo recíproco, porém, se refere a uma dinâmica no qual os
indivíduos ajudam um parceiro com a intenção de obter em troca algum benefício
para si mesmo. Esse tipo de altruísmo seria comum, por exemplo, entre os
morcegos-vampiros, os quais precisam de uma refeição a cada, ao menos, dois
dias para poder sobreviver, e as condições de caça são frequentemente
desfavoráveis. Compartilhar sangue com outro membro do grupo assegura um
potencial aliado no futuro. O comportamento altruísta representa aqui o melhor
cálculo egoísta, a longo prazo.
Portanto, Mulligan (1996) enfatiza que a composição familiar, o tamanho
da família, a ordem de nascimento, a cooperação, trazem implicações na formação
do altruísmo e na transmissão de sentimentos de igualdade ou desigualdade entre
as pessoas. Sob estes pontos de vista,
as pessoas que optam por adotar crianças deficientes talvez ajam seguindo uma
orientação altruística, facilitada pela estabilidade e maturidade emocional,
onde as situações familiares, as experiências de vida e a idade podem ser
significativas, influenciando o modo como os indivíduos respondem às
necessidades dos outros. Dessa forma, a adoção nesse contexto poderia se
caracterizar, de acordo com a terminologia da sociobiologia, como um ato de
altruísmo verdadeiro.
Eu como formanda de Biologia acredito que para muitos pretendentes, a
adoção significa a escolha de uma criança pelo perfil feito por eles ao se
cadastrarem para a adoção, porém para a criança essa seria a oportunidade de
ter uma família, de superar os traumas do abandono ou, se for o caso, dos anos
vividos em uma instituição. Por outro lado, os pais muitas vezes por falta de informação,
sonham com uma determinada criança que não chega a seus braços. Adotar uma
criança que apresenta alguma deficiência é dar a ela a oportunidade de se
superar, desenvolver o seu potencial, melhorando sua qualidade de vida. É de grande importância informar a sociedade
às características das crianças que necessitam ser adotados, da realidade das
instituições e dos abrigos brasileiros e sobre a importância do apoio familiar
para essas crianças. Portanto, a solidariedade
deve existir para o bem da sociedade como um todo, não só em relação a adoção,
mas em outras questões da mesma forma, uma boa ação praticada para o próximo
pode ser um dos principais ingredientes para a felicidade.
O presente ensaio
foi elaborado para disciplina de etologia baseando-se nas obras:
ARIÈS, P. História
social da criança e da família. Rio de Janeiro. Guanabara, 1981.
Darwin, C. R. A origem das espécies. São Paulo: Itatiaia, 1985 [1859].
DOMICIANO, F. PILOTTO K. HATAMOTO R. Lentidão
da Justiça e exigências dos pais travam adoção. Repórter Brasil. 12 de
Julho de 2013.
DURKHEIM, Émile. Durkheim. São Paulo: Editora
Ática, 2001.
FONSÊCA, C. M., SANTOS, C. P., DIAS, C. M. S. A adoção de crianças com necessidades
especiais na perspectiva dos pais adotivos. Universidade Católica de
Pernambuco, Recife-PE, Brasil. Paideia set.-dez. 2009, Vol. 19, No. 44,
303-311.
Hamilton, W. D. The evolution of altruistic behavior.
American Naturalist, 97, p. 354-6, 1963.
Hauser, M. D. The evolution of communication.
Cambridge: The MIT Press, 1996.
MARGOLIS, H.
Selfishness, Altruism, and Rationality:
A Theory of Social Choice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
Mulligan, C. B. (1996). Parental Priorities and Economic
Inequality. Chicago: University of Chicago Press.
Niblett, R. (2001). A adoção de menores com necessidades especiais: Alguns aspectos da
experiência inglesa. In F. Freire (Org), Abandono e adoção: Contribuições
para uma cultura da adoção II (pp. 143-157). Curitiba: Terra dos Homens.
SIMON, H. A. Altruism and Economics. The American
Economic Review. May, v. 83, n. 2, p. 156-161, 1993.
Trivers, R. L. The evolution of reciprocal altruism.
The Quarterly Review of Biology, 46, p. 35-57, 1971.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
p. 275.
Wilkinson, G. Food sharing in vampire bats.
Scientific American, 262, 2, p. 64-70, 1990.
Wynne-Edwards, V. C. Animal dispersion in relation to social
behavior. Edinburg: Oliver and Boyd, 1962.
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