sábado, 12 de setembro de 2015

Adoção: Um ato de solidariedade? Ou um perfil traçado pelos pais?

Série Ensaios: Sociobiologia
Por Gabriela Baptista
Acadêmica do Curso de Biologia PUCPR
Em um caso divulgado na mídia em 15 de março 2015, um casal decide adotar cinco crianças com idades diferentes e cada um apresentando algum tipo de deficiência. O primeiro filho foi adotado com dois anos e meio e tem síndrome de Down, é autista e perdeu parte da visão. O mais polêmico é que a segunda filha adotada pelo casal, Clarinha, era dotada de uma doença, anencefalia, não possuía cérebro. Os médicos diziam que a bebezinha de 11 dias não passaria de um mês de vida, porém ela viveu quase oito anos. Caso raro na ciência. Ela ganhou mais três irmãos, todos com idades e deficiências distintas. "Quando você toma essa iniciativa de querer ter um filho, tudo é por amor. É por vontade de acolher”, diz Ana Paula mãe adotiva das crianças. Esse da família da Ana Paula é uma exceção do que realmente acontece no país. Porque esse caso de solidariedade é tão raro na sociedade? Preconceito? Falta de informação? Ou simplesmente ausência de estrutura para lidar com uma criança deficiente?


No século XVI e XVII muitos bebês eram abandonados em instituições de caridade, deixados por longos períodos de tempo sozinhos, e era costume enviar as crianças com idade a partir dos sete anos para viverem com outras famílias. Estes hábitos que antes eram comuns, hoje nos assustam, devido a criança representar uma grande importância na família e como a força do sentimento do amor dos pais se sobressaem nos dias de hoje. (Ariés,1981).
A adoção é compreendida como "uma inserção num ambiente familiar, de forma definitiva e com aquisição de vínculo jurídico próprio da filiação, segundo as normas legais em vigor, de uma criança cujos pais morreram ou são desconhecidos, ou, não sendo esse o caso, não podem ou não querem assumir o desempenho das suas funções parentais" (Diniz, 1994).
No Brasil, a adoção foi introduzida por influência do Reino de Portugal, fortemente influenciado pelo Direito Canônico. Entretanto, somente com a introdução do Código Civil de 1916, que a adoção passa a ser disciplinada no ordenamento jurídico brasileiro, em que somente poderiam adotar os maiores de cinquenta anos, e pelo menos dezoito anos mais velhos que os adotados. Porém em 13 de julho de 1990, com a Lei nº 8.069, instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA veio para revogar o Código de Menores e modificar a ideia de adoção, visando proteger o melhor interesse da criança e do adolescente. A adoção está passando por grandes transformações e assumindo novos paradigmas, já que hoje o princípio básico da família está na afetividade e este é o caráter que vem mais se buscando na adoção. (Venosa, 2009).
"A precária realidade da maioria das instituições e abrigos brasileiros, junto com a alta exigência de preferência conduz a reflexões acerca de qual seria o verdadeiro sentido da adoção: encontrar uma família para crianças abandonadas ou satisfazer os desejos de pessoas que, por algum motivo, decidiram adotar estas crianças?" Apesar das crianças com necessidades especiais serem as que mais precisam de cuidados específicos, este é o tipo de adoção mais raro. No Brasil, 5.673 crianças estão cadastradas para adoção. Dessas, mais de 20% apresenta alguma doença ou deficiência. Porém, dados recentes mostram que apenas 7,5% (33.207) dos pretendentes aceitariam crianças nessas condições. Dessa forma, há vários grupos e associações de apoio à adoção, que há alguns anos vêm trabalhando para otimizar uma nova cultura, que priorize as necessidades das crianças e não as dos pais. (Fonsêca et al., 2009). Entretanto o problema não está apenas na restrição dos pretendentes, mas também na lentidão do sistema judiciário brasileiro. Segundo levantamento de 2003 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10,7% das crianças e adolescentes abrigados estavam em condição de adoção. (Domiciano et al., 2013). 
No caso de crianças com necessidades especiais, a situação de abandono no país se agrava ainda mais, pois muitos pais entregam seus filhos por falta de informação e condições financeiras para tratá-los. Para muitos gerar crianças com alguma deficiência, é como se sentir humilhados e envergonhados por terem uma criança “defeituosa”.  Embora seja raro a adoção por crianças com deficiência, há algumas famílias que decidem adotar da mesma maneira. Como relata, Niblett (2001) algumas mães já criaram seus filhos e não se sentem mais necessárias ou se sentem maduras para assumir tal responsabilidade; outras o fazem por impulso religioso, filosofia de vida, ou porque querem se dedicar a esta causa por a acharem útil e gratificante; ou até mesmo por um ato de solidariedade.
Esse gesto de solidariedade é denominado altruísmo. Segundo Simon (1993), o altruísmo é um conceito difícil de ser compreendido. O mesmo autor cita que a teoria de Adam Smith sobre o altruísmo é fundamentada na simpatia, através da qual um indivíduo se coloca, pelo menos teoricamente, na posição da outra pessoa. Já Margolis (1982), explorando o egoísmo e a racionalidade, considera altruísmo como um senso de responsabilidade social. Emile Durkheim desenvolveu a tese de que a verdadeira função da divisão do trabalho é criar entre duas ou mais pessoas um sentimento de solidariedade. Os indivíduos são ligados uns aos outros e, ao invés de se desenvolverem separadamente, eles ajustam seus esforços no sentido de cooperarem entre si para o bem de todos (Durkheim, 2001).
O altruísmo é algo muito importante e não diz respeito exclusivamente aos animais com um certo nível de inteligência. O altruísmo está por trás da emergência de novos níveis de organização biológica. Martin Nowak (2008) vêm explorando vários cenários e mecanismos em que o altruísmo se torna adaptativo, portanto, podendo evoluir por seleção natural.  Machado (2012) relata que ao fazermos uma boa ação, acionamos no cérebro o sistema de recompensa ("brain reward system"). O mesmo que se acende em situações de prazer, como comer e ganhar dinheiro.  Então nosso sistema de recompensa (mesolímbico dopaminérgico) é ativado, assim como o córtex subgenual, que é a região envolvida com o apego social, como a formação de laços afetivos de longo prazo. No corpo há a ação da ocitocina, que se refere a um neutransmissor secretado pela glândula pituitária (localizada na base do cérebro). Em experimentos, voluntários que receberam doses extras da substância demonstraram uma capacidade maior de criar empatia. Ele também é mais abundante nos circuitos de recompensa.
Exemplos desse fenômeno estão, por exemplo, nas abelhas que atacam invasores da colmeia com o próprio ferrão, morrendo no mesmo instante (Darwin, 1985 [1859]), ou os macacos que avisam seus parceiros quando avistam um leopardo, arriscando a própria vida (Hauser, 1996), ou os morcegos-vampiros que compartilham o sangue obtido com os membros de seu grupo (Wilkinson, 1990). Wynne-Edwards (1962) afirma que o egoísmo generalizado seria inviável, já que produziria um esgotamento dos recursos naturais que levaria a população à extinção. Se no grupo os membros se comportam altruisticamente, eles obtém um benefício generalizado maior que um grupo composto por indivíduos egoístas, então teríamos um caso confirmado de seleção de grupo e da existência de mecanismos reguladores nesse nível.
O altruísmo no reino animal foi tratado como a manifestação de dois mecanismos agentes no nível do replicador: a seleção de parentesco (Hamilton, 1963) e o altruísmo recíproco (Trivers, 1971). O primeiro consiste em um mecanismo evolutivo que induz os organismos a defender a prole dos parentes mais próximos (que compartilham parte da dotação genética, pela primeira lei de Mendel). Um exemplo desse mecanismo seria o sacrifício de uma fêmea em defesa da colmeia. O altruísmo recíproco, porém, se refere a uma dinâmica no qual os indivíduos ajudam um parceiro com a intenção de obter em troca algum benefício para si mesmo. Esse tipo de altruísmo seria comum, por exemplo, entre os morcegos-vampiros, os quais precisam de uma refeição a cada, ao menos, dois dias para poder sobreviver, e as condições de caça são frequentemente desfavoráveis. Compartilhar sangue com outro membro do grupo assegura um potencial aliado no futuro. O comportamento altruísta representa aqui o melhor cálculo egoísta, a longo prazo.
Portanto, Mulligan (1996) enfatiza que a composição familiar, o tamanho da família, a ordem de nascimento, a cooperação, trazem implicações na formação do altruísmo e na transmissão de sentimentos de igualdade ou desigualdade entre as pessoas.  Sob estes pontos de vista, as pessoas que optam por adotar crianças deficientes talvez ajam seguindo uma orientação altruística, facilitada pela estabilidade e maturidade emocional, onde as situações familiares, as experiências de vida e a idade podem ser significativas, influenciando o modo como os indivíduos respondem às necessidades dos outros. Dessa forma, a adoção nesse contexto poderia se caracterizar, de acordo com a terminologia da sociobiologia, como um ato de altruísmo verdadeiro.
Eu como formanda de Biologia acredito que para muitos pretendentes, a adoção significa a escolha de uma criança pelo perfil feito por eles ao se cadastrarem para a adoção, porém para a criança essa seria a oportunidade de ter uma família, de superar os traumas do abandono ou, se for o caso, dos anos vividos em uma instituição. Por outro lado, os pais muitas vezes por falta de informação, sonham com uma determinada criança que não chega a seus braços. Adotar uma criança que apresenta alguma deficiência é dar a ela a oportunidade de se superar, desenvolver o seu potencial, melhorando sua qualidade de vida.  É de grande importância informar a sociedade às características das crianças que necessitam ser adotados, da realidade das instituições e dos abrigos brasileiros e sobre a importância do apoio familiar para essas crianças.  Portanto, a solidariedade deve existir para o bem da sociedade como um todo, não só em relação a adoção, mas em outras questões da mesma forma, uma boa ação praticada para o próximo pode ser um dos principais ingredientes para a felicidade.


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de etologia baseando-se nas obras:
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro. Guanabara, 1981.
Darwin, C. R. A origem das espécies. São Paulo: Itatiaia, 1985 [1859].
DOMICIANO, F. PILOTTO K. HATAMOTO R.  Lentidão da Justiça e exigências dos pais travam adoção. Repórter Brasil. 12 de Julho de 2013.
DURKHEIM, Émile. Durkheim. São Paulo: Editora Ática, 2001.
FONSÊCA, C. M., SANTOS, C. P., DIAS, C. M. S. A adoção de crianças com necessidades especiais na perspectiva dos pais adotivos. Universidade Católica de Pernambuco, Recife-PE, Brasil. Paideia set.-dez. 2009, Vol. 19, No. 44, 303-311.
Hamilton, W. D. The evolution of altruistic behavior. American Naturalist, 97, p. 354-6, 1963.
Hauser, M. D. The evolution of communication. Cambridge: The MIT Press, 1996.
MARGOLIS, H. Selfishness, Altruism, and Rationality: A Theory of Social Choice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
Mulligan, C. B. (1996). Parental Priorities and Economic Inequality. Chicago: University of Chicago Press.
Niblett, R. (2001). A adoção de menores com necessidades especiais: Alguns aspectos da experiência inglesa. In F. Freire (Org), Abandono e adoção: Contribuições para uma cultura da adoção II (pp. 143-157). Curitiba: Terra dos Homens.
Nowak, M. (2008). Generosity: A winner's advice Nature, 456 (7222), 579-579 DOI:10.1038/456579a.
SIMON, H. A. Altruism and Economics. The American Economic Review. May, v. 83, n. 2, p. 156-161, 1993.
Trivers, R. L. The evolution of reciprocal altruism. The Quarterly Review of Biology, 46, p. 35-57, 1971.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 275.
Wilkinson, G. Food sharing in vampire bats. Scientific American, 262, 2, p. 64-70, 1990.
Wynne-Edwards, V. C. Animal dispersion in relation to social behavior. Edinburg: Oliver and Boyd, 1962.


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