sábado, 23 de agosto de 2014

Atuação do farmacêutico no auxílio do uso de recursos naturais para cura ou prevenção de doenças – uma abordagem bioética



Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Maria Fernanda Turbay Palodeto e Mônica Cristina Sampaio Majewski
Alunas especiais do Programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR

O crescente número de alimentos industrializados e funcionais, produtos fitoterápicos e homeopáticos, além da enorme gama de produtos farmacêuticos que vêm sendo pesquisados e lançados diariamente no mercado mundial, reforça a necessidade de intervenção do Estado a partir de constituições federais, fiscalização de órgãos como a Vigilância Sanitária e supervisão do Ministério da Saúde, a fim de realizar ações capazes de eliminar, diminuir e prevenir riscos relacionados à segurança da saúde da população (Bem et al, 2009). A necessidade de garantir segurança a um usuário de produtos destinados à promoção e manutenção da qualidade de vida das pessoas gera uma obrigação moral e ética aos profissionais ligados a saúde. Além disso, transforma o princípio da responsabilidade em precaução, assegurando a antecipação das medidas para amenizar as consequências (Bem et al., 2009).
Reconhecido como um profissional da saúde, o farmacêutico possui um currículo extremamente abrangente que lhe permite atuar em um amplo leque de atividades ligadas às Ciências Farmacêuticas. Pode-se dizer que o objeto central da profissão farmacêutica é o medicamento, elemento do qual este profissional possui um conhecimento privativo e peculiar, diferenciando-o de outros profissionais (Pauferro, 2008).  É inerente a esta profissão o exercício da assistência farmacêutica, isto é, interagir diretamente com o usuário do medicamento através do desenvolvimento de atitudes, comportamentos, habilidades, compromissos e co-responsabilidades, com o intuito de prevenir doenças, promover e recuperar a saúde e auxiliar na obtenção de resultados favoráveis, voltados para o objetivo de permitir que o uso dos medicamentos e outros produtos e serviços para a saúde sejam realizados da melhor forma possível, auxiliando na busca da melhoria da qualidade de vida da população (Bem et al., 2009). Este “agente da saúde” deve, além de tudo, promover o uso racional de medicamentos, isto é, garantir que um “paciente receba o medicamento apropriado para sua condição clínica, em doses adequadas às suas necessidades individuais, por um método adequado e ao menor custo para si e para a sociedade” (Sousa, 2010). Entretanto, o crescimento da indústria farmacêutica com a promessa de longevidade e juventude prolongada aguçou o consumo de produtos farmacêuticos, pois houve uma supervalorização dos seus benefícios, subestimando suas reações adversas (Lage; Freitas; Acurcio, 2005).
O hábito de praticar a automedicação irresponsável, isto é, sem a orientação e supervisão de um profissional capacitado, faz com que as pessoas coloquem a integridade de sua saúde em risco. A ideia errônea de que “existe remédio para tudo”, reflexo da cultura imediatista e consumista da sociedade atual, induz o uso de múltiplos remédios resultando na substituição da busca por tratamentos prolongados, capazes de curar ou controlar efetivamente uma patologia, pelo uso de variados medicamentos, com as mais diversas intensidades e efeitos, os quais trazem soluções rápidas e muitas vezes imediatas, mas passageiras e não capazes de contribuir para a cura ou controle da doença (Milléo, 2014). Baseando-se em fatos históricos, pode-se afirmar que houve uma distorção da visão das pessoas em relação aos medicamentos e suas utilidades. Analisando a história da farmácia e a forma com que o medicamento é utilizado ao longo da história evolutiva do homem, pode-se constatar que nos primórdios, os homens, assim como os demais seres, procuravam na natureza a solução para suas patologias, como forma de curá-las ou preveni-las. Ainda hoje, muitas espécies de animais, inclusive insetos, buscam por determinados vegetais quando eles ou seus filhotes sofrem algum tipo de incômodo ou doença (Cunha, 2013).
Atualmente o medicamento é tratado como um objeto híbrido, considerado tanto um instrumento terapêutico, quanto um bem de consumo. Sendo visto na sociedade como uma mercadoria qualquer, livre de perigos ou possíveis danos, em que a propaganda estimula o consumo, a legislação e fiscalização são frágeis e levam a automedicação e ao uso indiscriminado (Lage; Freitas; Acurcio, 2005). Críticas a este modelo através de denúncias de crescentes efeitos indesejados, propagandas intensivas e omissas ou enganosas, fraudes, comercialização de medicamentos de uso restrito, convencimento do consumidor no balcão da farmácia (chamado de “empurroterapia”), pressão dos grandes laboratórios sobre os profissionais prescritores estimulando a “escolha” do medicamento a ser utilizado pelo paciente através da oferta de bonificações, síntese e produção de fármacos com finalidades exclusivamente comerciais, entre outras, começaram, na década de 1980, a atingir diferentes setores da população fazendo com que o estudo de práticas naturistas, medicamentos fitoterápicos, culturas médicas orientais começassem a emergir, tanto no Brasil quanto no exterior (Nascimento, 2005). Foi então, que os medicamentos farmoquímicos, começaram a conviver com outras modalidades terapêuticas, recuperando e atualizando terapias já existentes, mas pouco valorizadas e estudadas, como a homeopatia e ervas medicinais. Tal coexistência alterou as maneiras de se pensar em saúde, assim como os diferentes grupos sociais também iniciaram alterações em seus hábitos de vida e a maneira de se relacionar com os demais seres (Nascimento, 2005). Vários indivíduos iniciaram uma auto avalição, ou até mesmo uma reavaliação, daquilo que era visto como certo, imutável e, muitas vezes, inquestionável pela sociedade, alterando uma linha de pensamento, quase retrógrada, de que apenas os métodos terapêuticos comprovados cientificamente são válidos.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que 80% da população nos países em desenvolvimento utilizam práticas tradicionais nos cuidados com a saúde, deste índice, 85% fazem uso de plantas e preparados (Brandão, 2006). No Brasil, cerca de 300 espécies animais, chamados recursos zooterápicos, podem ser encontrados como produtos comercializados por erveiros e curandeiros. Entretanto, estudos sob o ponto de vista clínico-patológico são escassos e o uso de animais (muitas vezes espécies raras ou ameaçadas) e plantas de forma irresponsável e errônea pode levar ao desequilíbrio ambiental de uma determinada região ou espécie, gerando consequências negativas tanto para a saúde da flora e fauna, quanto para população humana. Tal informação tornam evidentes as implicações ecológicas, sociais, culturais e de saúde pública associadas ao uso dos recursos naturais (Ferreira, 2009). Por essa razão a OMS orienta uma difusão de abrangência mundial sobre o uso racional de plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos (Brandão, 2006). A procura pelas práticas terapêuticas não-convencionais revela a ideia de estabelecer um consenso entre a tradição e a medicina moderna a fim de obter uma melhor qualidade de vida para os pacientes. As manifestações populares em saúde e a chamada medicina não-convencional são consideradas práticas voltadas à saúde e ao equilíbrio vital do homem, por essa razão, diretrizes para implementação e incorporação destas práticas, inclusive no SUS, foram estabelecidas no Brasil, a fim de garantir eficácia, eficiência e segurança dos usuários. Em maio de 2006 entrou em vigor a Portaria n. 971, que aprovou a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no sistema único de saúde, tornando legal o uso de plantas medicinais, fitoterapia, homeopatia, acupuntura, termalismo, entre outras práticas terapêuticas alternativas (Marques et al., 2011).
O aumento na procura por métodos alternativos voltados para tratamentos de saúde é perceptível, e sabe-se que várias destas práticas são tão antigas quanto o desenvolvimento da medicina científica moderna. Com isso, o uso destas terapias passa a não ser mais uma crença, ou tradição passada por gerações, e sim uma ciência que vem sendo estudada, aperfeiçoada e aplicada (Tomazzoni; Negrelle; Centa, 2006). Atualmente, estudos realizados em países como o Brasil e Estados Unidos, evidenciam que o contato com animais funciona como terapia aos seres humanos. Tratamentos com cães e cavalos, por exemplo, proporcionam sensação de alegria ao paciente, fazendo com que o mesmo libere substâncias, como a endorfina, capazes de aumentar a sensação de bem-estar, controlar a pressão sanguínea e melhorar o sono de um indivíduo. Este é um importante exemplo de que, comprovadamente, as terapias alternativas possuem resultados positivos e bastante satisfatórios na contribuição da prevenção, controle ou cura de patologias (Dias, 2011). Entretanto, é inegável que existe uma linha tênue entre a crença e o efeito real de um medicamento ou tratamento, por isso o acompanhamento por um profissional capacitado se faz indispensável para assegurar a manutenção da saúde dos usuários. A ideia de que “tudo que é natural é bom” pode levar a complicações como intoxicações, interações com outros medicamentos alopáticos, agravamento da patologia ou surgimento de patologias secundárias. Além disso, no caso do uso da fitoterapia, orientações sobre o preparo seguro e eficaz do medicamento tornam-se imprescindíveis, assim como as informações sobre qual parte da planta deve ser utilizada e a melhor forma de extrair a substância ativa, são essenciais para se obter sucesso com o uso do preparado (Tomazzoni; Negrelle; Centa, 2006). Uma especialidade que também vem sendo bastante difundida e, segundo a Resolução 516/2009 do Conselho Federal de Farmácia, pode ser exercida pelos farmacêuticos é a acupuntura (Peron et al., 2004). Trata-se de um ramo da medicina tradicional chinesa que consiste na aplicação de agulhas em pontos definidos do corpo para obter diferentes efeitos terapêuticos conforme o caso tratado. Há estudos que revelam a acupuntura como recurso terapêutico coadjuvante em tratamentos de distúrbios de ansiedade, associada à Atenção Farmacêutica (Pignone; Martini, 2011).
Frente ao exposto, nós, ambas farmacêuticas, aspirantes à bioeticistas, as quais atuam diariamente com pacientes usuários de medicamentos, auxiliando-os na otimização de suas terapias e orientando-os em relação á real necessidade e o uso correto de seus medicamentos, acreditamos que a popularização, crescimento e desenvolvimento dos métodos não-convencionais se deu, em parte, pela atenção de determinados grupos sociais ao fato de que prevenir doenças através do uso de substâncias naturais e terapias alternativas traz maiores benefícios a longo prazo e gera um aumento na qualidade de vida dos indivíduos, além de acarretar menores problemas relacionados ao uso de medicamentos, intoxicações e desenvolvimento de patologias devido ao mal uso das medicações. Entretanto, para chegar a resultados favoráveis através da prevenção e uso racional de medicamentos é indispensável o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar em saúde, na qual a participação do farmacêutico com seu conhecimento sobre a fisiopatologia, farmacologia, bioquímica, dentre outras ciências farmacêuticas, é fundamental para auxiliar na garantia da manutenção da saúde dos pacientes através do acompanhamento, orientação e contribuições na detecção de patologias. A proximidade deste profissional com os usuários de medicamentos é muito grande, o fácil acesso que a população possui ao farmacêutico no balcão da farmácia torna-o uma peça chave como participante efetivo e decisivo no uso racional de medicamentos e no auxílio a prevenção de patologias.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Temas de Bioética e Biologia, se baseando nas obras:

BEM, P. N. I.; CHACCHIO, S. S. R.; PARDI, P. C.; GORJÃO, R. Bioética na saúde pública e na produção de alimentos funcionais e medicamentos. Revista Inspirar, v. 1, n. 3, p. 17, 2009.
BRANDÃO, A. O farmacêutico nas terapias alternativas. Pharmacia brasileira, p. 45 – 46, 2006.
CUNHA, L. Pesquisa indica que animais sabem se medicar com produtos naturais. Agência de notícias de direitos de animais, 2013. Disponível em: <http://www.anda.jor.br/23/09/2013/pesquisa-indica-animais-medicar-produtos-naturais>. Acesso em: 30 de julho de 2014.
DIAS, H. Animais trazem benefícios à saúde humana. Mais equilíbrio, 2011. Disponível em: <http://maisequilibrio.com.br/saude/animais-trazem-beneficios-a-saude-humana-5-1-4-320.html>. Acesso em: 19 de agosto de 2014.
FERREIRA, F. S. Avaliação do uso e da comercialização de zooterápicos no Cariri cearense e caracterização biológica da banha de Tupinambis merianae (Duméril & Bibron, 1839) (Squamata: Teiidae). Universidade Regional do Cariri, programa de mestrado em bioprospecção molecular, 2009.
LAGE, E. A.; FREITAS, M. I. de F.; ACURCIO, F. de A. Informações sobre medicamentos na imprensa: uma contribuição para o uso racional? Ciência & Saúde coletiva, v. 10, supl. 0, 2005.
MARQUES, L. A. M.; VALE, F. V. V. R.; NOGUEIRA, V. A. S.; MIALHE, F. L.; SILVA, L. C. Atenção farmacêutica e práticas integrativas e complementares no SUS: conhecimento e aceitação por parte da população são joanense. Physis revista de saúde coletiva, n. 2, p. 663 – 674, 2011.
MILLÉO, A. Remédio para tudo. Gazeta do povo: viver bem, saúde e bem estar, 2014. Disponível em:< http://www.gazetadopovo.com.br/viverbem/saude-bem-estar/conteudo.phtml?tl=1&id=1487963&tit=Remedio-para-tudo> . Acesso em: 15 de julho de 2014.
NASCIMENTO, M. C. do. Medicamentos, comunicação e cultura. Ciência & Saúde coletiva, v. 10, supl. 0, 2005.
PAUFERRO, M. R. V. Reflexão bioética sobre a relação entre farmacêutico e usuário de medicamentos no ambiente hospitalar. Centro Universitária São Camilo, Mestrado em bioética, 2008.
PERON, A. P.; ROCHA, C. L. M. S. C.; NEVES, G. Y. S.; VICENTINI, V. E. P. Medicina alternativa II. Arg. Apadec, n. 1, v. 8, p. 33 – 39, 2004.
PIGNONE, C. B.; MARTINI, M. A. Acupuntura associada à atenção farmacêutica no transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Infarma, v. 23, n. 7/8, 2011.
SOUSA, I. F. de; BISCARO, A.; BISCARO, F.; FERNANDES, M. F. Uso racional de medicamentos: relato de experiência no ensino médio da Unesc, Criciúma-SC. Revista brasileira de educação médica, v. 3, n. 3, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022010000300014>. Acesso em: 01 de agosto de 2014.
TOMAZZONI, M. I.; NEGRELLE, R. R. B.; CENTA, M. de L. Fitoterapia popular: a busca instrumental enquanto prática terapêutica. Texto contexto Enfermagem, v. 15, n. 1, p. 115 – 121, 2006.

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