Almir José de Ramos – Mestrando do Programa de pós-graduação em Bioética da PUC-PR, padre pertencente ao clero da Arquidiocese de Florianópolis - SC, bacharel em Teologia pela PUC-RS e Licenciado em Filosofia pela FEBE – Brusque - SC. Capelão e membro da equipe de Cuidados Paliativos e Comissão de Humanização do Hospital Regional de São José e Instituto de Cardiologia de Santa Catarina. Vice Coordenador da Pastoral Carcerária Nacional.
Julia Izadora da Silva Martins – Mestranda do Programa de pós-graduação em Bioética da PUC-PR, Médica Nefrologista, Docente CRES no departamento de Clínica Médica da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Preceptora do Internato em Nefrologia da PUC-PR – campus Londrina.
“Ouve o barulho do rio, meu filho
Deixa esse som te embalar
As folhas que caem no rio, meu filho
Terminam nas águas do mar
Quando amanhã por acaso faltar
Uma alegria no seu coração
Lembra do som dessas águas de lá
Faz desse rio a sua oração”
O Rio - Marisa Monte, 2006. Escute aqui!
Compositores: Antonio Carlos Santos De Freitas / Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho /
Jorge Mario Da Silva / Marisa De Azevedo Monte
Os seres humanos, animais dotados de racionalidade, já são estabelecidos como sujeitos de direito em diversas circunstâncias na estrutura social em que vivemos. Dominamos as ciências, controlamos, ou pelo menos achamos que controlamos tudo; entretanto, apesar de querermos, não é possível dominar a natureza, que tem dado muitos sinais de insatisfação com as atitudes humanas dominadoras, ou deveríamos dizer destruidoras? Parece que cada enchente, desmoronamento, tempestade, onda de calor intenso, manda o aviso: “olhem para mim, também sou sujeito de direito!”; e deixa marcas irreparáveis, memórias que querem ser esquecidas ou não lembradas por nós, humanos. Porém, o rio não esquece; seguindo a ideia do dualismo cartesiano, poderíamos dizer que ele também é “corpo” e “alma/espírito”. O corpo do rio é o seu trajeto, é a água que o preenche, são as margens, a vegetação do seu entorno, as pedras ao fundo; a alma/espírito do rio é a história que ele conta de uma população, de uma comunidade, das pessoas que com ele se encontram, é a paz e a calmaria que o som das suas águas transmite, é a percepção da vida nele e de outros animais que nele habitam. Recebemos mais de mil “avisos” da “dona” natureza e algumas centenas dos “senhores” rios em 2023. De acordo com os dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil registrou o maior número de “desastres naturais” nesse ano, um total de 1.161 eventos de desastres, sendo 716 associados a eventos hidrológicos, como transbordamento de rios; uma média de ao menos três desastres por dia. Apesar disso, continuamos fingindo-nos de “surdos”, não escutamos o som das águas que clamam por atenção de “corpo” e “alma” – rio Belém (PR), rio Taquari (MS), rio Tietê (SP), rio Ipojuca (PE), rio Parnaíba (PI), rio Amazonas (AM), rio Salgadinho (AL) e tantos outros. Tampouco nos responsabilizamos por esses rios, porém, a implicação e a relação espiritual para com eles estão descritas até na Bíblia, o livro milenar cristão, onde encontramos inúmeros textos contando a história de um povo e sua relação com as águas – rios, lagos, mares, fontes. São histórias diversas sobre encontros, curas, milagres, casamentos, dentre outros relatos que aconteceram próximos a uma fonte, e até mesmo o batismo de Jesus às margens do Rio Jordão.
No livro de Ezequiel, capítulo 47, versículo 9, temos a seguinte citação “por onde passar o rio haverá todo tipo de animais e de peixes. Porque essa água flui para lá e saneia a água salgada de modo que onde o rio fluir tudo viverá”. No livro do Apocalipse, capítulo 22, versículos 1-2, encontramos essa citação “um rio de água da vida que, translúcido como cristal, fluía do trono de Deus e do Cordeiro [...]. De uma e outra margem do rio estava a árvore da vida, que produz doze frutos, de mês em mês; e as folhas da árvore servem para a cura das nações”. São narrativas que evidenciam a capacidade dos rios em gerar e permitir a vida, a cura e sobretudo a saúde, além de terem importância cultural e religiosa para a comunidade judaico-cristã. Outras culturas também são marcadas por sua relação com os rios e a natureza. Os hindus, na Índia, possuem uma relação espiritual muito forte com o Rio Ganges, pois, para eles, a deusa Ganga está presente no rio. Os povos indígenas relacionam-se estreitamente com a natureza, pois ela representa o sagrado; muitos deles vivem às margens dos rios, que são para eles fonte de vida e de alimento, locais de esporte e de lazer. Portanto, pela história e pela cultura, é possível dizer que existe uma relação de fidelidade entre os homens e os rios. André Comte-Sponville, filósofo francês materialista, no livro “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” (1999), explorou o princípio da fidelidade em um dos capítulos e trouxe a fidelidade como virtude essencial e multifacetada, conectando-a com temas como tempo, memória, moralidade e amor. Para ele, a fidelidade é a base das virtudes, ou seja, o fundamento que possibilita a existência de valores e virtudes como justiça, paz, liberdade e verdade; sem a fidelidade, as virtudes perdem consistência e continuidade.
Ao relacionar a fidelidade com a memória, podemos dizer que Comte-Sponville também se remete ao dualismo “corpo” e “alma/espírito” quando afirma que a matéria é o próprio esquecimento e que só existe memória no espírito. “O espírito é memória, e talvez seja apenas isso” – diz o filósofo; mas apesar de ser apenas isso, não há como existir uma decisão sem memória, uma invenção sem memória, exemplificou... e ele ainda complementa, o espírito, e podemos dizer, a memória, “é o presente do passado, no duplo sentido da palavra presente”, ou seja, o que o passado deixou em nós, e o que permanece em nós do que já passou. A memória, portanto, é essencial para o princípio da fidelidade, pois só é possível ser fiel ao que se lembra, na visão do autor. Apesar de o esquecimento ser inevitável e necessário para a sanidade, a fidelidade é uma luta constante contra o esquecimento, buscando preservar o que tem valor. “O homem só é espírito pela memória, só é humano pela fidelidade. Guarde-se, homem, de se esquecer de se lembrar!” (Comte-Sponville,1999), partindo dessa interpretação a respeito do que é a fidelidade, nós não podemos deixar de nos lembrar do som das águas, as águas dos rios e dos mares que necessitam ser respeitadas, preservadas, pois elas também são “corpo” e “alma/espírito”, nelas está a vida e nelas milhares de outras vidas habitam; além disso, elas foram, desde o princípio da humanidade, fonte de vida, de alimento e bem-estar físico e espiritual. Como diz a música:
“Quando amanhã por acaso faltar
Uma alegria no seu coração
Lembra do som dessas águas de lá
Faz desse rio a sua oração”
Nós como futuros bioeticistas acreditamos que os rios, assim como toda a natureza, merecem ser tratados como sujeitos de direito, a fim de que recebam todo o respeito e cuidado dispensado com os seres humanos, dada a dependência do homem em relação a natureza; além disso, que sejam vistos, como tantos povos e culturas já os veem, como sagrados... pois possuem vida, geram outras vidas e nos permitem a vida.
Esse ensaio crítico foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética, tendo como base as seguintes referências e obras:
https://www.youtube.com/watch?v=Lzqa9qumCZ8
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-registrou-mais-de-mil-desastres-naturais-em-2023-segundo-o-cemaden/
MÓVEL, Cultura et al. (Ed.). Bíblia Sagrada (Edição Digital Inteligente). Cultura Móvel, 2014.
SPONVILLE, André-Comte. "Pequeno tratado das grandes virtudes." Trad. de (1999). Disponível em: https://christianrocha.wordpress.com/wp-content/uploads/2008/12/pequeno-tratado-das-grandes-virtudes.pdf. Acesso em: 20 novembro 2024.
Imagem gerada por IA generativa