O movimento das Blue Universities nasce exatamente da percepção de que o conhecimento acadêmico pode ser um instrumento de resistência e de reconstrução. No Brasil, duas universidades se destacam nesse contexto: a Universidade Federal de Lavras (UFLA) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). A UFLA, em Minas Gerais, foi a segunda universidade do mundo e a primeira da América Latina a receber o selo Blue University, em 2016. O reconhecimento é fruto de um conjunto de ações de gestão hídrica integrada, que incluem uma Estação de Tratamento de Água com capacidade para 1,6 milhão de litros por dia, o reuso de efluentes tratados e a revegetação de nascentes, com o plantio de 90 mil mudas de 49 espécies. A universidade reduziu em 90% o consumo de água nos laboratórios com tecnologias de osmose reversa e economiza anualmente cerca de R$ 6 milhões, reinvestidos em ensino e pesquisa. Mais do que uma certificação, trata-se de um modelo de integração entre sustentabilidade ambiental e produção de conhecimento. Já a PUCPR, reconhecida como Blue University em 2023, reforça o protagonismo acadêmico na agenda hídrica (Fischer; Wolff; Silva, 2025 ]). A instituição concentra esforços na educação ambiental, na pesquisa aplicada e na conscientização comunitária, traduzindo os princípios das Comunidades Azuis para o cotidiano acadêmico e urbano. Ambas as experiências revelam que a universidade pode e deve ser um laboratório de governança pública da água, em que a teoria se converte em prática e a pesquisa em compromisso social. A articulação entre essas experiências brasileiras dá origem a um modelo que ganha destaque na pauta internacional. A proposta da “Maloca Azul”, que será apresentada na COP30, visa a promover um espaço de convergência entre universidades, comunidades locais e povos tradicionais, com três objetivos centrais: (1) fomentar o intercâmbio de saberes e soluções para o acesso à água; (2) visibilizar práticas comunitárias de gestão hídrica e proteção de mananciais; e (3) formular recomendações políticas e técnicas dirigidas à Conferência das Partes, priorizando contextos de maior vulnerabilidade. Trata-se de uma contribuição concreta do Brasil à agenda climática global — e de um chamado à responsabilidade compartilhada. Por trás dessa rede azul que se expande está uma ética da interdependência. Reconhecer a água como direito humano é reconhecer que a vida — humana e não humana — é relacional, atravessada por fluxos que ultrapassam fronteiras.
A água, essência da vida e símbolo da interdependência entre os seres, tornou-se também o espelho das desigualdades que estruturam o mundo contemporâneo. O conceito de “fome de água”, elaborado por Fischer e Rosaneli (2022), amplia a compreensão da crise hídrica global ao revelar que a escassez de água potável não se resume a uma carência física, mas representa uma crise ética, social e civilizatória. A “fome de água” expõe as múltiplas vulnerabilidades que emergem da exclusão hídrica: ambientais, biológicas, sociais e políticas. E é sob essa lente que se torna possível compreender o papel transformador das instituições de ensino superior e o potencial das Blue Universities na formação de profissionais comprometidos com novos paradigmas de justiça e corresponsabilidade. A definição de “fome de água” como a privação simultânea de acesso material, simbólico e político a um bem essencial à vida. Assim como a fome alimentar denuncia desigualdades estruturais, a fome de água revela o fracasso coletivo de um modelo de desenvolvimento que converte um direito humano em mercadoria. Três dimensões interdependentes configuram esse fenômeno. A dimensão ambiental evidencia a degradação dos mananciais, a contaminação dos solos e a exploração insustentável dos aquíferos. Trata-se do colapso de ecossistemas que sustentam o ciclo da água e garantem sua renovação natural. Essa dimensão denuncia a falência de um paradigma produtivista que enxerga a água como insumo e não como bem comum. A dimensão biológica revela o impacto direto da falta de água potável sobre a saúde humana. Doenças infecciosas, desnutrição e precariedade sanitária são sintomas corporais da injustiça hídrica. O corpo humano, como espaço de inscrição da desigualdade, torna-se o primeiro território de vulnerabilidade. Por fim, a dimensão bioética articula e dá sentido às demais. Ela reconhece que a fome de água não decorre de um acidente ecológico, mas de decisões humanas — escolhas políticas, econômicas e culturais que violam o princípio da equidade. A bioética ambiental, nesse contexto, emerge como uma ética da proteção, da precaução e da perseverança, comprometida com o bem-estar de todos os seres e das gerações futuras.
A gestão participativa da água representa a resposta ética e política à fome de água. Em oposição ao modelo tecnocrático e centralizado, ela se fundamenta na corresponsabilidade e na deliberação pública. Fischer e Rosaneli (2022) defendem que o direito humano à água exige não apenas garantias normativas, mas processos participativos reais, que assegurem o envolvimento de comunidades, universidades, movimentos sociais e governos locais na tomada de decisões. A ética da gestão participativa, inspirada na bioética de intervenção e proteção, sustenta que o Estado tem o dever de proteger os vulneráveis e intervir para corrigir desigualdades estruturais. Isso implica enfrentar a vulnerabilidade programática — a incapacidade das políticas públicas de sustentar ações de longo prazo — e promover arranjos institucionais que garantam a continuidade das políticas de água e saneamento, independentemente de ciclos eleitorais. Mas a ampliação desse horizonte aponta a necessidade de uma ética intergeracional, baseada no princípio da responsabilidade. Cuidar da água hoje é um dever moral com o futuro. A perseverança ética, nesse contexto, não se limita à manutenção dos recursos, mas à construção de uma cultura do cuidado — uma pedagogia de engajamento e solidariedade capaz de reorientar nossa relação com a natureza. É nesse ponto que a reflexão sobre a fome de água se conecta diretamente ao movimento das Blue Communities e, mais especificamente, das Blue Universities. Se a fome de água é expressão de uma crise ética e civilizatória, a educação superior torna-se um espaço privilegiado para a reconstrução de valores e práticas de governança hídrica.
A dimensão ética da educação, portanto, é inseparável da dimensão política. Profissionais formados sob essa perspectiva — engenheiros, gestores ambientais, biólogos, filósofos, teólgos, economistas, juristas e educadores — tornam-se mediadores entre saberes e comunidades, capazes de articular ciência e cidadania em prol da justiça hídrica caraacterinzando um espaço de acolhimento e partilha proprio da Bioética Ambiental. O paradigma Blue University encarna essa mudança, propondo que cada instituição de ensino seja também um agente de transformação social, comprometido com práticas de sustentabilidade e equidade. A superação da fome de água exige uma mudança de cosmovisão. A evocação de uma ética do cuidado que reconhece o valor intrínseco da água e sua dimensão simbólica, espiritual e cultural. A água é mais que recurso — é elo entre formas de vida, memória coletiva e esperança. Ao adotar essa perspectiva ampliada, as Blue Universities aproximam a racionalidade científica da sensibilidade ecológica e da sabedoria dos povos tradicionais, integrando saberes locais e acadêmicos em projetos de gestão participativa. Essa cosmovisão compartilhada é essencial para romper com a lógica antropocêntrica e mercantil. A água não pertence ao ser humano; é o ser humano que pertence ao ciclo da água. Tal consciência transforma a ética da gestão participativa em ética da convivência — uma prática que busca harmonia entre o cuidado ambiental, o desenvolvimento social e a espiritualidade da Terra. O conceito de “fome de água”, ao revelar as dimensões ambiental, biológica e bioética da crise hídrica, desafia-nos a repensar as bases de nossa convivência com o planeta. A gestão participativa, orientada pela bioética da proteção, oferece um caminho para restaurar o equilíbrio entre tecnologia, justiça e solidariedade. Mas é na educação superior — e particularmente nas Blue Universities — que esse caminho ganha força institucional e horizonte de futuro.
Esse ensaio corresponde a fala da Dra. MArta Fischer na plenária COP30 Maloca, sendo baseada nas obras:
Fischer, M. L., & Rosaneli, M. C. (2022). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Potter, I. (1996). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Fischer, M. L., et al. (2021). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Organização das Nações Unidas (ONU). (1966). Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Organização das Nações Unidas (ONU). (1992). Declaração Universal dos Direitos da Água.
Organização das Nações Unidas (ONU). (2010). Resolução 64/292. O direito humano à água e ao saneamento.
Organização das Nações Unidas (ONU). (2000). Objetivos do Milênio.
Organização das Nações Unidas (ONU). (2015). Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Blue Communities. (2024). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Fischer, M. L., Wolff, E., & Silva, L. C. da. (2025). Somos uma Blue University, e agora? Caminhos de Diálogo, 13(22), 158-180. (Base do conteúdo original)
UFLA. (2016). UFLA é Azul: 2ª universidade do mundo com o certificado Blue University em reconhecimento pela gestão das águas. Arquivo de Notícias. Disponível em: https://ufla.br/arquivo-de-noticias/9500-ufla-e-azul-2a-universidade-do-mundo-com-o-certificado-blue-university-em-reconhecimento-pela-gestao-das-aguas.
Cini, J., Rosaneli, M. C., & Fischer, M. L. (2019). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Mídia
Repercursão - https://blue-community.net/2025/11/10/blue-universities-at-cop30/
https://blue-community.net/2025/11/10/blue-universities-at-cop30/
https://blogs.pucpr.br/eeh/2025/11/13/professores-da-pucpr-debatem-estrategias-de-democracia-hidrica-na-cop-30/
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