sábado, 22 de novembro de 2025

O que as teias escondem: descobrindo caminhos para o controle ético da aranha-marrom

 Por Gabriel Henrique Cadenas SIEBURGER




Desde o colégio Positivo, quando participei do Clube de Ciências, criei o gosto por observar o comportamento animal e entender como pequenas interações respondem a perguntas maiores. Naquela época, mergulhei em temas variados: herpetologia, dengue, saúde pública, ciência forense e até projetos de limpeza de lago com plantas aquáticas. Apesar da paixão pela ciência, meu foco era prestar medicina. Com o ENEM acontecendo em plena pandemia, não consegui seguir esse caminho e assim fui para minha segunda opção a Biologia. O que eu não sabia é que essa escolha acabaria me levando exatamente ao que sempre me fascinou. Ao entrar na PUCPR, jamais imaginei que trabalharia com aranhas ou que passaria tantas horas observando tais, movimentos quase imperceptíveis e comportamentos que, aos poucos, revelaram um mundo complexo. Logo no primeiro período, ingressei no estágio no Núcleo de Estudos do Comportamento Animal (NEC), e ali tive meu primeiro contato com o tema do controle. Esse início me levou a um PIBITI (DESENVOLVIMENTO DE PROTOCOLO DE CONTROLE BIOLÓGICO PARA ARANHA-MARROM).
Mais tarde, ao meu Trabalho de Conclusão de Curso, uma jornada contínua que uniu comportamento, ética, ecologia e convivência.  No dia 13 de novembro de 2025 no auditório Madre Leone da EMCV da PUCPR defendi meu TCC intitulado CONTRIBUIÇÃO PARA PROTOCOLO DE CONTROLE BIOLOGICO DA ARANHA-MARROM A PARTIR DO COMPORTAMENTO DE CONSTRUÇÃO DE TEIAS DE ARANHAS ARANEOFÁGICAS de diante a banca comporta pelos professores Dra. Lays Parolin e Dr. João Minoso, concluindo mais um ciclo da minha formação profissional que já é marcada pela publicação de um resumo expandido (clique aqui para conhecer) e um artigo no prelo.  
A aranha-marrom é considerada uma das principais pragas ambientais, que afetam diretamente a sociedade, devido a sua aproximação a casas urbanas, gerando acidentes. Esses acidentes, chamados de Loxoscelismo, são um grande problema para as pessoas, por apresentarem um aumento anual de registros, em que predominam na região de Curitiba, há mais de 30 anos. A pesquisa teve como foco a aranha-marrom e os desafios do seu controle em ambientes urbanos. Em vez de recorrer a métodos agressivos ou estritamente químicos, busquei uma abordagem mais ética, para entender como diferentes espécies de aranhas interagem entre si e como as próprias teias podem revelar caminhos para um controle biológico. No viveiro do laboratório, observei e registrei teias e comportamentos de aranha-marrom, aranha treme-treme (Pholcus phalangioides) e viúva-vermelha (Nesticodes rufipes). 
Analisei padrões, comportamentos e situações de interação, buscando compreender como espécies predadoras de aranhas poderiam atuar como agentes naturais de controle, reduzindo a presença da aranha-marrom sem causar danos ambientais. Esse estudo tem relevância social, devido o loxoscelismo continuar sendo um problema de saúde pública no Brasil. Muitas estratégias usadas hoje são ineficientes ou geram impactos ambientais. Pensar em alternativas que considerem a biologia das espécies, suas interações naturais e princípios éticos abre caminho para métodos mais eficazes, seguros e sustentáveis, contribuindo para uma convivência mais equilibrada entre humanos e aranhas nas cidades. Os resultados revelaram diferenças importantes nos padrões de ocupação e movimentação, estratégias de captura e arquitetura das teias, de cada espécie. Onde a treme-treme e a viúva-vermelha se mostraram ótimas para o controle, por conta das estratégias de posicionamento de teias próximas às aranha-marrom, reduzindo a movimentação das mesmas. Além de no caso da treme-treme, houve a melhor adaptação e movimentação durante a pesquisa. Porém o maior desafio não está apenas nas técnicas de controle, mas sim na relação humano animal, pelo medo, preconceito histórico e o incômodo estéticos pelas teias, impedindo que essa alternativa ecológica seja aceita pela população. Depois de anos convivendo com essas espécies, observando suas teias e compreendendo seu papel ecológico, uma pergunta permanece:

“As aranhas são realmente o problema, ou é o preconceito que construímos sobre elas?”

Nada disso seria possível sem pessoas que caminharam comigo. Desde a profa. Flavia Amend até minha orientadora, Dra. Marta Luciane Fischer, minha gratidão pela paciência, confiança e incentivo desde o início da graduação. Agradeço também aos colegas do laboratório, pelas coletas, pelas horas no viveiro e pelas conversas compartilhadas. À minha família e amigos, pelo apoio constante. E à minha antiga professora do colégio, Flavia, por ter despertado em mim o encantamento pela biologia. Cada uma dessas pessoas teve um papel essencial na construção desse trabalho.




O presente ensaio tem o intuito de informar a defesa do Trabalho de conclusão se curso, para informações complementares indicamos os artigos a seguir:
 

SIEBURGER, Gabriel Henrique Cadenas; FISCHER, Marta Luciane. DESENVOLVIMENTO DE PROTOCOLO DE CONTROLE BIOLÓGICO PARA ARANHA-MARROM. In: XIII Jornada de Produção Científica e Tecnológica, XVI Ciclo de Palestras Tecnológicas, I Semana da Pedagogia e X Semana da Biologia. Instituto Federal de São Paulo-Câmpus São Roque, 2025. (clique aqui)

FISCHER, Marta Luciane. Vivências de 30 anos do loxoscelismo em Curitiba, Paraná, Brasil: rumos de uma educação em saúde disruptiva, inclusiva, humanitária e sustentável. Revista Inclusiones, v. 9, n. 3, p. 52-77, 2022. (Clique aqui)

Projeto Interprofissional em Bioética e Direitos Humanos: semeando uma nova forma de olhar para os Rios

 

Na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), a disciplina inovadora Projeto Interprofissional de Bioética e Direitos Humanos foi concebida como um espaço de encontro entre saberes diversos, tais como as ciências biológicas e da natureza, ciências da saúde, educação, tecnologia e humanidades, ela nasceu da convicção de que os desafios éticos contemporâneos exigem diálogo, deliberação coletiva e responsabilidade compartilhada entre diferentes profissões.

A proposta da disciplina surgiu de dois compromissos centrais. O primeiro é a atuação da PUCPR como Blue University, selo internacional que reconhece instituições engajadas com a justiça hídrica, a sustentabilidade e a gestão ética dos recursos naturais. O segundo é o próprio território: o Rio Belém, que cruza silenciosamente o campus, poluído e invisibilizado, mas ainda assim parte integrante de nossa comunidade.

Neste contexto, estruturamos a disciplina com objetivos claros: desenvolver consciência ética; articular bioética e direitos humanos com realidades socioambientais locais; fortalecer o trabalho interprofissional; e produzir ações extensionistas concretas. A metodologia integrou debates teóricos, participação em espaços públicos de discussão — como o blog Bioética no dia a dia —, visitas ao rio Belém para análise crítica da paisagem urbana e entrevistas com profissionais de diferentes áreas sobre a realidade deste Rio que cruza toda a cidade de Curitiba. Por fim, equipes interprofissionais elaboraram produtos de sensibilização social, consolidando o percurso de aprendizagem por meio da entrega e apresentação de um folder de divulgação.

Os resultados mais expressivos emergiram do trabalho coletivo. Ao refletirem sobre o rio como sujeito de direitos, estudantes de cursos diversos mobilizaram princípios bioéticos como dignidade, responsabilidade ambiental, solidariedade, respeito à biodiversidade, equidade e justiça social. Essa prática deliberativa está alinhada aos eixos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, especialmente no que diz respeito ao direito a um meio ambiente saudável e ao dever ético de proteger populações vulneráveis e bens naturais.

O diálogo entre área da saúde, biologia, educação física, psicologia, biotecnologia, medicina veterinária, fisioterapia, agraonomia e outras formações da Escola de Medicina e Ciências da Vida sobre a realidade do entorno aproximou os estudantes de questões reais que atravessam Curitiba. Foram analisadas dimensões sociais, econômicas, sanitárias, culturais e espirituais da poluição do rio Belém, assim como sua relação com profissões distintas. Essas reflexões dialoga ainda com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, sobretudo o ODS 6 (Água Potável e Saneamento), o ODS 13 (Ação Climática) e o ODS 15 (Vida Terrestre).

            Ao introduzir conceitos como biofilia, ecologia integral e direitos da natureza, ampliamos o entendimento dos estudantes sobre sua relação com o ambiente. A ideia de reconhecer o rio Belém como sujeito de direitos  convida a transformar a forma como enxergamos a natureza: não apenas como recurso, mas como ente vivo que compõe a comunidade moral e política. Esse olhar biocêntrico e ecocêntrico está no centro das perspectivas contemporâneas da bioética e aproxima-se das discussões globais sobre justiça ambiental e proteção dos bens comuns.

Conforme destacado, como culminância da disciplina, as equipes interprofissionais produziram folders educativos sobre o rio Belém e seus direitos, articulando ciência, ética e cidadania em linguagem acessível. Esses materiais foram elaborados ao longo das aulas, empregando análise crítica das entrevistas, reflexões individuais e referenciais teóricos trabalhados no semestre. Alguns exemplos desses folders serão divulgados nesta postagem, ilustrando o compromisso dos estudantes com a educação ambiental, a bioética e a valorização da água como bem comum.

Ainda que o impacto imediato possa parecer sutil, afinal, não despoluímos o rio Belém hoje, estamos realizando algo essencial: formando profissionais e cidadãos capazes de escutar os rios, de integrar ética e técnica, de reconhecer o valor intrínseco dos ambientes naturais e de agir em defesa deles. Como Blue University, reafirmamos que ter um rio poluído atravessando nosso território não é motivo para ignorá-lo, mas um chamado ético. Ao trazer esse tema que também é caro aos ODS para o centro do currículo, cultivamos sementes de uma nova cultura: estudantes que olharão rios, mares e florestas não como objetos ou cenários, mas como membros da comunidade com os quais compartilhamos destino. É assim que, a partir de uma disciplina interprofissional, a universidade contribui para transformar consciências e futuros, e para reconstruir, passo a passo, uma relação mais justa e igualitária entre todo o mundo vivo.







quinta-feira, 20 de novembro de 2025

A comunicação-não violenta: potencial no desenvolvimento de competências em deliberação coletiva na educação básica

por Alex Aparecido da Silva



A comunicação é uma condição fundamental da convivência humana. Por acontecer no campo dos relacionamentos é importante compreender: se trata de uma via de mão dupla e, então, tão importante quanto saber se expressar é também saber escutar. Em diversos contextos cenários, as relações podem ser bem difíceis. E aqui vale destacar a relação entre professores e estudantes, no contexto escolar, investigado à luz da Comunicação-Não Violenta (CNV), em que se compreende o processo ensino-aprendizagem como trocas mediadas pela comunicação, desde as teorias, práticas e avaliações necessárias. Além disso, é importante considerar o meio educacional também precisa corresponder, em certo nível, às demandas de desenvolvimento sociais e emocionais das crianças e adolescentes, evitando práticas de bullying e modelando comportamentos de cuidado e respeito mútuos. Esse problema, portanto, não dificulta apenas as relações interpessoais particulares, mas também afeta instituições de todos os tipos, inclusive no campo da Educação.
Relacionamentos interpessoais, às vezes, podem ser difíceis. Simples conversas podem acabar em briga, confusão ou mágoa? E o desgaste emocional que essas situações causam e que acarretam disputas, inimizades, separações e até guerras? É essencial estarmos atentos às coisas que são importantes para os outros assim como também é precisamos estar conscientes das próprias emoções em uma conversa, diálogo ou negociação. Os tons de voz e expressões corporais, podem comunicar tanto ou mais que as próprias palavras, pois podem estar sinalizando a emergência de emoções importantes, que precisam ser consideradas, para que elas não roubem o sentido original da comunicação, ou até mesmo, se não é a própria emoção a motivadora da comunicação. Nas escolas, instituições que tendem a espelhar as realidades sociais de suas respectivas comunidades, a comunicação empática e compassiva pode ser um antídoto contra violências de todo tipo. ,É aí que entra a CNV: uma forma de se expressar que ajuda as pessoas a se entenderem melhor e a resolverem conflitos sem gritos, ofensas ou disputas. Ela foi criada por um psicólogo chamado Marshall Rosenberg, que acreditava que todo ser humano quer ser compreendido e respeitado. Ele mostrou que, quando aprendemos a falar com empatia e a escutar com atenção, conseguimos transformar situações de raiva ou tristeza em momentos de aprendizado e reconciliação.

Em nosso estudo, nós analisamos centenas de pesquisas sobre como a CNV vem sendo usada, principalmente nas escolas do mundo todo, e o que descobrimos é inspirador. As escolas que aplicam essa técnica vivem menos conflitos, têm alunos mais tranquilos e professores mais preparados para lidar com as diferenças. Em países como Áustria, Sérvia e no Brasil, a CNV já é usada até nas aulas, nas reuniões e em projetos de convivência escolar. A premissa é de que quando há real interesse em entender os sentimentos uns dos outros, disposição para compreender as necessidades que emergem e intencionalidade empática ao levantar questões e formular pedidos, não sobra espaço para agressões e mágoas. Praticar a CNV é, na verdade, aprender aplicar competências socioemocionais, saber se colocar no lugar do outro, controlar impulsos, expressar sentimentos de modo claro e buscar soluções conjuntas. Algo que, pedagogicamente, encontra espaço em métodos deliberativos. Nas deliberações, como diferentes valores pessoais podem surgir orientando posicionamentos diferentes sobre um mesmo assunto, os conflitos são inevitáveis. Entretanto, como a Bioética pressupõe, conflito não é sinônimo de briga ou embate, mas sim de um impasse que dificulta uma tomada de decisão diante de diferentes valores pessoais envolvidos. Sendo assim, a CNV pode ser hábil como instrumento ao professor que utiliza a deliberação em suas aulas, mas principalmente, pode se revelar como modelo aos estudantes envolvidos. E este da pesquisa que estamos apresentando aqui: “A comunicação não-violenta: potencial no desenvolvimento de competências em deliberação coletiva na educação básica”, resultado de uma revisão ampla que analisou como a Comunicação Não-Violenta tem sido utilizada em diferentes países e contextos escolares, disponível gratuitamente, ele pode ser acessado aqui: https://periodicos.unisantos.br/pesquiseduca/article/view/1662/1462. Em perspectiva com a Bioética, a CNV se revela como uma ferramenta prática, que operacionaliza os princípios do cuidado da vida e da ação responsável, pois esses princípios são perpassados pela necessidade de uma comunicação eficaz, compassiva e empática. E, em um mundo que fala muito e escuta pouco, a Comunicação Não-Violenta nos ensina que compreender é tão importante quanto ser compreendido. É assim que começamos a construir uma cultura de paz, dentro e fora da escola.

Quando um Rio pede voz: o que o caso do Rio São Francisco nos ensina sobre bioética e justiça ambiental


 Um novo olhar sobre a natureza e os direitos: do Velho Chico ao Rio Belém, em Curitiba.


Por: Brunielle dos Santos de Aguiar, Jaqueline Maria de Oliveira Lima Luvizotto, Leandro Saldivar da Silva, Pedro Gouveia Junior e Moises Fernando de Andrade.



Você já parou pra pensar que um rio pode ter direitos? Pois é, essa ideia, que parece saída de um livro de filosofia ou ficção científica, está ganhando força real no mundo todo. Cada vez mais pessoas, cientistas e comunidades tradicionais estão questionando o modo como tratamos a natureza: será que ela é apenas um recurso, ou também tem valor moral e precisa ser respeitada como um ser vivo? No Brasil, um movimento inspirador vem do povo Pankararu, de Pernambuco, que decidiu lutar pelo reconhecimento do Rio São Francisco como sujeito de direito. Essa proposta, além de inovadora, é profundamente ética e diz muito sobre o que a bioética tem a ensinar quando o assunto é justiça ambiental e respeito à vida. Para o povo Pankararu, o Velho Chico é muito mais do que um rio! É parte da própria alma de sua cultura. Ele está presente nos rituais, na alimentação, nas histórias e na espiritualidade. Mas, nas últimas décadas, o São Francisco vem sofrendo com barragens, poluição, pesca predatória e desmatamento. O resultado? Um rio doente e comunidades inteiras em risco. Cansados de ver seu território degradado, os Pankararu decidiram agir. Através da Escola de Ancestralidade Viva, organizaram uma mobilização histórica, buscando garantir ao rio personalidade jurídica, ou seja, o direito de ser representado legalmente por guardiões e de ter sua integridade ecológica protegida. Essa proposta está inspirada em experiências internacionais de sucesso, como o reconhecimento do Rio Whanganui na Nova Zelândia, que recebeu personalidade jurídica e é representado por guardiões da comunidade Māori e do governo. Essa luta vai além do campo jurídico. Ela é, antes de tudo, uma reparação simbólica e cultural, uma tentativa de restaurar o elo espiritual entre o povo e o rio, rompido por décadas de exploração e esquecimento.
A bioética nos ajuda a entender esse conflito - Nesse cenário, a bioética nos ajuda a entender quem são os atores morais desse conflito. Os agentes morais, como os próprios Pankararu, organizações ambientais e o Ministério Público, agem conscientemente para proteger o rio e as comunidades. Os pacientes morais — o Rio São Francisco e as populações tradicionais — são aqueles que sofrem as consequências diretas da degradação ambiental. E há também os corresponsáveis, como governos e empresas, que têm o dever ético de garantir a integridade ambiental e cultural do território.
A proposta de reconhecer o rio como sujeito moral amplia o conceito de comunidade ética, incluindo a natureza como parte legítima das relações de cuidado e responsabilidade. Vulnerabilidades profundas e invisíveis - As populações tradicionais enfrentam vulnerabilidades profundas, e não apenas econômicas. Elas lidam com desigualdades históricas, invisibilidade política e o que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama de epistemicídio: o apagamento dos seus saberes e modos de vida. Enquanto o Estado e as empresas priorizam o crescimento econômico, os povos indígenas defendem uma visão ecocêntrica, na qual o rio é um ente vivo com valor próprio. Essa diferença de visão é o coração do conflito bioético: de um lado, a natureza vista como instrumento; do outro, a natureza vista como parceira de existência. No caso dos Pankararu, o impacto da degradação do São Francisco vai além do ambiental: ele ameaça o equilíbrio espiritual, o sustento e a identidade cultural de todo um povo.
Valores em conflito: economia versus vida - Os valores em jogo são claros: as populações tradicionais defendem a vida, o território e a cultura; o Estado e as empresas priorizam o crescimento econômico; a sociedade civil e a ciência buscam conservação e justiça ambiental. Esses interesses colidem porque ainda vivemos sob uma lógica antropocêntrica, que coloca o ser humano acima de tudo. Em contraste, os povos tradicionais nos convidam a uma ética ecocêntrica, que reconhece o rio como parte da comunidade moral. A justiça restitutiva, nesse contexto, é uma alternativa poderosa: em vez de apenas punir, ela busca restaurar as relações justas entre pessoas e natureza, reparando danos materiais, espirituais e simbólicos. E em Curitiba? O caso do Rio Belém - Pode parecer distante, mas essa reflexão também se aplica às cidades. O Rio Belém, que corta 37 bairros de Curitiba, é um retrato urbano da degradação ambiental: canalizado, poluído e esquecido. Com uma bacia de quase 88 km², o rio enfrenta esgoto irregular, assoreamento e ocupações precárias em suas margens. Nesse contexto, os atores locais são parecidos: o poder público (Prefeitura e Sanepar), a sociedade civil (ONGs, universidades) e os moradores ribeirinhos, que muitas vezes vivem em vulnerabilidade social, enfrentando enchentes, doenças e falta de infraestrutura. Essas pessoas, mesmo no meio urbano, compartilham a mesma condição dos povos tradicionais: vivem em relação direta com o rio, sofrem com a sua degradação e têm pouco espaço de voz nas decisões que os afetam. Como aponta a literatura sobre justiça ambiental, os impactos ambientais não são distribuídos igualmente: recaem sempre sobre os mais vulneráveis.
E se o Belém também fosse sujeito de direito? - Inspirando-se no exemplo do São Francisco, seria possível aplicar o mesmo princípio no Rio Belém. Imagine só: um Conselho de Guardiões do Rio Belém, com moradores, ONGs e representantes do poder público; ações de reparação ecológica, recuperando as margens e monitorando a qualidade da água com participação popular; reparação social, com reassentamento digno e geração de renda sustentável; reconhecimento jurídico-administrativo do rio, garantindo prioridade nas políticas públicas ambientais. Com essas medidas, o Belém poderia se transformar de rio esquecido em símbolo de justiça ambiental urbana, mostrando que cuidar da natureza também é cuidar da cidade e das pessoas. Estudos sobre a qualidade ambiental do Rio Belém já demonstram a urgência de ações integradas que promovam não apenas a recuperação ecológica, mas também a justiça socioambiental. E você? - E você, já pensou que o rio que passa pela sua cidade também pode ter direitos?
Talvez o primeiro passo seja simples: escutá-lo.
Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que... Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que o reconhecimento de rios como sujeitos de direito representa muito mais do que uma inovação jurídica: trata-se de um imperativo ético de nosso tempo. Vivemos em uma era marcada pela crise climática, pela perda acelerada de biodiversidade e pelo aprofundamento das desigualdades socioambientais. Nesse contexto, a bioética não pode se limitar às questões clínicas ou biomédicas tradicionais, ela precisa se expandir para abraçar a vida em todas as suas formas e expressões. A luta do povo Pankararu pelo Rio São Francisco nos ensina que a justiça ambiental é inseparável da justiça social e cultural. Não podemos falar em sustentabilidade enquanto continuarmos invisibilizando os saberes e as vozes das populações que, historicamente, cuidaram dos territórios com sabedoria e respeito. O epistemicídio, o apagamento dos conhecimentos tradicionais, é uma forma de violência que empobrece não apenas essas comunidades, mas toda a humanidade. Reconhecer um rio como sujeito de direito é reconhecer que a vida não é propriedade, mas parceria. É romper com a lógica colonial e extrativista que ainda domina nossas relações com a natureza. É afirmar que ética, política e ecologia são inseparáveis. Como profissionais em formação, assumimos o compromisso de promover uma bioética que seja plural, intercultural e ecologicamente engajada. Uma bioética que não apenas observe os conflitos, mas que atue ativamente na construção de pontes entre conhecimentos, na defesa dos vulneráveis e na promoção de relações mais justas e respeitosas com todos os seres vivos.

O Rio São Francisco, o Rio Belém e tantos outros corpos d'água Brasil afora não são apenas recursos hídricos: são histórias vivas, memórias coletivas, fontes de espiritualidade e sustento. Defendê-los é defender a própria possibilidade de futuro.



O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética (PPGB) da PUC-PR, tendo como base as seguintes obras:

BOLLMANN, Harry Alberto; EDWIGES, Thiago. Avaliação da qualidade das águas do Rio Belém, Curitiba-PR, com o emprego de indicadores quantitativos e perceptivos. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 13, n. 4, p. 443-452, out./dez. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/esa/a/yZSRg9CWPHxv6ZKFtgjRS8N/

BRASIL. Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Resolução nº 357, de 17 de março de 2005. Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Resolucao/2005/res_conama_357_2005_classificacao_corpos_agua_rtfcda_altrd_res_393_2007_397_2008_410_2009_430_2011.pdf

BRASIL DE FATO. No Sertão pernambucano, povo Pankararu pede que o rio São Francisco seja considerado sujeito de direitos. [S.l.], 25 abr. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/04/25/no-sertao-pernambucano-povo-pankararu-pede-que-o-rio-sao-francisco-seja-considerado-sujeito-de-direitos/

CBHSF – COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO. Povo Pankararu lidera iniciativa para reconhecer o Rio São Francisco como Sujeito de Direito. Salvador, 12 maio 2025. Disponível em: https://cbhsaofrancisco.org.br/noticias/novidades/povo-pankararu-lidera-iniciativa-para-reconhecer-o-rio-sao-francisco-como-sujeito-de-direito/

FRANCISCO, Papa. Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. Vaticano, 2015.

HABERMANN, Mateus; GOUVEIA, Nelson. Justiça Ambiental: uma abordagem ecossocial em saúde. Revista de Saúde Pública, v. 42, n. 5, p. 936-944, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/LRx5Gmw7tTT3gzG6HYrg3rg/

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Contraponto, 2006 [1979].

NEW ZEALAND. Te Awa Tupua (Whanganui River Claims Settlement) Act 2017. Wellington: New Zealand Legislation, 2017. Disponível em: https://www.legislation.govt.nz/act/public/2017/0007/latest/whole.html

POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: Bridge to the Future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.

VIEIRA, Augusto Seolin. Diagnóstico sanitário e ambiental da Bacia do Rio Belém – Curitiba/PR. 2022. Dissertação (Mestrado) – UFPR. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/82694


#Bioética #JustiçaAmbiental #PovosTradicionais #RioSãoFrancisco #Curitiba #DireitosDaNatureza #JustiçaRestitutiva #Sustentabilidade #CulturaViva

sábado, 15 de novembro de 2025

Entre Vidas e Lucro: o Princípio do Mal Menor na Ética Ambiental e o reconhecimento do Rio Arapiuns como sujeito de direito

 por  Leandro Augusto Agostinetti, Bacharel, Edvando Ramon Matos Vergasta e Trindade Charpare 



A Campanha em defesa do Rio Arapiuns foi uma mobilização popular que ocorreu no município de Santarém, no Pará, e dinamizou um projeto de lei para que o Rio Arapiuns seja reconhecido como um “ente vivo” e sujeito de direitos. A campanha, chamada “Arapiuns – rio de direitos”, é liderada pela juventude do Assentamento Agroextrativista, os Guardiões do Bem Viver e organizações locais, abrangendo cerca de 150 comunidades. Há um texto de lei que define direitos específicos para o rio, como a manutenção do seu fluxo natural e da quantidade de água necessária para a saúde do ecossistema. Seria criado um “comitê Guardião do Rio”, um espaço para que pessoas defendam a proteção do rio nos fóruns de discussão sobre a bacia hidrográfica. Se aprovado, o Rio Arapiuns será o primeiro do estado do Pará a ter essa garantia por lei. A campanha pelo Rio Arapiuns demonstra que o reconhecimento de rios como sujeitos de direito não é apenas uma teoria, mas uma reivindicação em curso na sociedade brasileira, impulsionada por comunidades que dependem diretamente do rio para sua sobrevivência física, cultural e econômica. Ao citar as ameaças de poluição e a importância econômica do rio para o turismo sustentável, a notícia apresenta um dilema real. Diante da pressão por desenvolvimento, reconhecer o rio como sujeito de direito é uma aplicação do princípio do mal menor: uma intervenção jurídica para evitar um dano ambiental maior e irreversível. No entanto essa campanha gerou conflitos, pois há pressões por um modelo de desenvolvimento econômico (mineração, madeireiras) que gere emprego e renda, mas à custa da destruição do ecossistema. Em contrapartida há a necessidade da sobrevivência cultural e física de comunidades tradicionais ligadas ao Arapiuns, além da integridade mesma do rio, como valor intrínseco do rio como sujeito. Essa tensão coloca em jogo valores éticos profundos, como justiça, autonomia e o próprio direito à vida. Assim os direitos do rio como sujeito implicam diretamente nos direitos humanos. Logo, defender o sujeito Arapiuns é defender todos os sujeitos humanos que estão direta e indiretamente ligados ao Rio. Diante da aparente inevitabilidade de algum impacto (econômico ou ecológico), o reconhecimento dos direitos do rio se configura como a aplicação do princípio do mal menor. A opção considerada “menos pior” ou “menos danosa” é a que impõe limites à atividade econômica para evitar um mal maior: o colapso irreversível do ecossistema fluvial, que traria prejuízos incalculáveis para a biodiversidade, o clima regional e o modo de vida de milhares de pessoas. Essa perspectiva coloca a saúde do rio e da coletividade como um valor superior aos lucros de setores específicos. 
A personalidade jurídica do rio não é apenas uma ferramenta de gestão ambiental; é um reconhecimento de que temos uma obrigação moral para com a natureza, vista não como uma coisa, mas como um sujeito em uma relação de interdependência. Esse pensamento prioriza o equilíbrio nas relações ecológicas e humanas sobre a acumulação material, assim as milhares de vidas que se relacionam com o Rio Arapiuns são mais importantes que o lucro gerado pela sua exploração predatório. Como uma “coisa” pode ser explorada e destruída, mas um “sujeito” não, pois está juridicamente amparado, o processo de reconhecer seu status de pessoa jurídica ampara as demais pessoas que dele dependem ou com ele se relacionam.    A concepção de rios como sujeitos de direitos, abordada no texto do blog Bioética no Dia a Dia, representa uma ruptura com a visão antropocêntrica tradicional do direito e da ética. Ao atribuir personalidade jurídica a ecossistemas fluviais, como ocorreu com os rios Whanganui, em Nova Zelândia, e Atrato, na Colômbia, não se busca meramente uma proteção dos recursos hídricos, mas um reconhecimento de seu valor intrínseco. Esta inovação jurídica traz profundas implicações éticas, que podem ser analisadas à luz do Princípio do Mal Menor, um conceito clássico da bioética que encontra nova ressonância neste contexto. A implicação ética central dessa mudança de status é a obrigação moral de respeitar a existência, a integridade e a funcionalidade do rio como um ente vivo e não como um mero objeto de exploração. Isso significa que qualquer intervenção humana em seu curso, para mineração, agricultura, geração de energia ou urbanização, deve ser submetida a um crivo ético rigoroso. É aqui que o Princípio do Mal Menor se torna uma ferramenta crítica crucial. 
Diante da inevitabilidade de certos impactos decorrentes da necessidade humana de desenvolvimento, a ética exige que se escolha a alternativa que cause o menor dano possível ao ecossistema fluvial, considerando-o como sujeito afetado e não como recurso a ser consumido. Tradicionalmente, o Princípio do Mal Menor é invocado em dilemas onde nenhuma opção é plenamente boa, mas uma é menos danosa que as outras. Na ética médica, por exemplo, pode guiar a escolha de um tratamento com severos efeitos colaterais para evitar um mal maior: a morte. Transpondo essa lógica para a ética ambiental, o “mal” a ser evitado não é mais apenas um prejuízo humano, mas um dano à própria entidade rio e, por extensão, a todas as formas de vida que dele dependem. A pergunta deixa de ser apenas “qual opção é menos prejudicial para nossa economia?” e passa a ser “qual opção causa o menor prejuízo à saúde do rio e, consequentemente, ao seu povo?”. Contudo, a aplicação desse princípio não é isenta de tensões. A noção de “mal menor” pode ser facilmente cooptada por uma lógica antropocêntrica que, sob o pretexto de minimizar danos, ainda legitima agressões ao ecossistema. Quem define o que é o “mal menor?”. Com base em quais valores? Uma usina hidrelétrica é um “mal menor” comparada a uma termelétrica a carvão? Para uma ética que verdadeiramente reconhece o rio como sujeito, a resposta deve emergir de um processo decisório que inclua vozes não-humanas, representadas por guardiões ou comitês de custódia, e que priorize a restauração e a manutenção dos processos ecológicos essenciais. Em conclusão, a personalidade jurídica dos rios força uma evolução ética. Ela exige que o Princípio do Mal Menor seja aplicado não como uma desculpa para a exploração mitigada, mas como um imperativo para uma convivência verdadeiramente respeitosa. A escolha pelo “mal menor” deve ser o último recurso em um processo que priorizou e esgotou todas as alternativas de não-dano. O verdadeiro desafio ético, portanto, não é apenas escolher entre impactos, mas transformar nossa relação com a natureza de uma de dominação para uma de coexistência, onde o rio, como sujeito de direitos, tenha sua voz e sua integridade garantidas.
O princípio do mal menor (PMM) é um fundamento ético que justifica a escolha de um mal para evitar outro mal maior. Em um dilema onde nenhuma opção é ideal, é moralmente válido escolher a alternativa que produz o maior bem possível ou a menor quantidade de mal. Para aplicar o princípio é indispensável que o agente esteja obrigado a agir e a tomar uma decisão diante de duas ou mais alternativas, sendo que nenhuma delas é ideal, após terem sido descartadas outras possíveis ações por uma análise criteriosa. A reflexão sobre o PMM tem raízes na ética clássica grega, sendo formulado por Aristóteles na frase latina “De duobus malis, minor est semper eligendum” (De dois males, o menor deve ser sempre elegido). Uma crítica ou ressalva fundamental a ele é que só é aplicável a dilemas estritamente binários, onde não há uma terceira opção viável. É necessário, antes de tudo, buscar ativamente essa “terceira via” que possa oferecer uma solução melhor, evitando assim a conformidade com qualquer tipo de mal.
    O paciente moral central e inovador na análise é o Rio Arapiuns e seu ecossistema. Ao ser reconhecido como “ente vivo” e sujeito de direitos, o rio deixa de ser um objeto de exploração e passa a ser um sujeito cuja integridade, existência e fluxo natural são portadores de valor intrínseco e, portanto, devem ser considerados moralmente. As ações de poluição e degradação o afetam diretamente. Os pacientes morais primários são as comunidades tradicionais e ribeirinhas. Sua saúde, cultura, sustento e modo de vida (“Bem Viver”) estão intrinsecamente ligados à saúde do rio. Eles são os primeiros e mais diretamente impactados pela sua degradação. Além disso os outros seres vivos que dependem do rio também são pacientes morais, pois sua sobrevivência é ameaçada pela ação danosa. Os agentes morais institucionais primários são o Poder Público (Legislativo e Executivo municipal e estadual). Eles detêm o poder e a responsabilidade de criar e fazer cumprir as leis. A Câmara de Vereadores de Santarém, ao votar o projeto de lei, e o prefeito, ao sancioná-lo, estão exercendo sua função de agente moral para proteger o rio e as comunidades. Já o coletivo Guardiões do Bem Viver e o Movimento Tapajós Vivo: Eles atuam em uma dupla função. São: Pacientes Morais (como visto acima) e Agentes Morais, pois assumem para si a responsabilidade de lutar pela proteção do rio, propor legislação, mobilizar a sociedade e, futuramente, atuar como seus “guardiões”. Eles estão agindo moralmente em defesa de um bem maior. Os Operadores do Direito (Ministério Público, Judiciário) são agentes morais com o poder de garantir que os direitos do rio, uma vez reconhecidos, sejam efetivados e violações sejam punidas. Também existem os Agentes Morais que Causam a Ameaça (e podem ser vulneráveis), como Garimpeiros, Madeireiros Ilegais e Grileiros. Eles tomam decisões ativas que violam a integridade do paciente moral (o rio) e, por consequência, dos outros pacientes morais (as comunidades).
  
 
No caso do Rio Arapiuns, podemos identificar ambas as situações: há a Vulnerabilidade Já Instalada nas comunidades e no rio: A degradação ambiental já está ocorrendo. A poluição por mercúrio do garimpo, a redução de peixes e a contaminação da água já causam impactos concretos na saúde e no sustento das populações. A vulnerabilidade delas não é uma possibilidade futura; é uma realidade presente. Eles já estão sofrendo os efeitos do dano. Infelizmente, o ecossistema fluvial já está sob estresse e dano mensurável. Sua vulnerabilidade também já está instalada. Aqui está um ponto da análise: os próprios agentes causadores do dano (garimpeiros etc.) podem estar em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica. Eles podem ser vulneráveis às decisões dos outros agentes morais (o Estado). Se a lei for aprovada e rigorosamente aplicada, eles perderão sua fonte de renda (ilegal). Esta vulnerabilidade, no entanto, não os exime de sua responsabilidade moral como agentes. Ela, na verdade, complexifica a solução ética. A aplicação do princípio do mal menor não significa simplesmente prender todos os garimpeiros, mas sim buscar uma solução que, ao proteger o rio (evitando o mal maior da destruição total), também considere e mitigue a vulnerabilidade desses agentes, por exemplo, através de políticas de transição para economias sustentáveis e geração de renda legal.Há rios urbanos que necessitam do mesmo reconhecimento almejado ao Arapiuns, como o Rio Belém de Curitiba: um rio totalmente urbano, canalizado e esquecido, vítima do esgoto e da impermeabilização. Ambos compartilham a mesma vulnerabilidade: a perda de sua integridade ecológica. Enquanto no Arapiuns o desafio é impedir o avanço da degradação, no Belém é reverter um dano já consolidado. Em ambos, reconhecer o rio como sujeito de direitos expressa o princípio do mal menor: limitar práticas econômicas imediatistas para evitar o colapso de um ecossistema — seja ele amazônico ou urbano.Também o Rio Tietê é digno da mesma reflexão, um rio que nasce cristalino, mas se torna um curso de esgoto ao atravessar a metrópole. Assim como o Arapiuns, ele também reflete a tensão entre desenvolvimento econômico e dignidade ecológica. Enquanto o primeiro luta contra a mineração e a exploração madeireira, o segundo sofre com a industrialização e a negligência social. Ambos são pacientes morais no sentido bioético: sofrem ações humanas e expressam, por seu estado, o grau de nossa responsabilidade moral coletiva.
  Nós como futuros bioeticistas compreendemos que os valores ameaçados pela exploração do Arapiuns é a da própria existência do rio enquanto ser e de todos os seres vivos que dependem dele, inclusive das comunidades locais. Já o valor ameaçado pelo reconhecimento do Arapiuns como sujeito de direito é econômico, sustentado pela exploração predatória. Mas a exploração econômica de uma área é sempre temporária, pois as atividades predatórias destroem e finalizam o ciclo, abandonando apenas a destruição e levando consigo a riqueza extraída. Assim, impedir que esse ciclo se concretize, reconhecendo o Arapiuns como sujeito de direitos impediria o maior mal, que é a destruição do rio, do seu ecossistema e de todas as pessoas humanas que dele dependem, em detrimento de uma geração de valor financeiro temporal. O Arapiuns, seu ecossistema e as comunidades locais (todos relativamente perenes) possuem mais valor que a “riqueza” financeira gerada com seu rastro permanente de destruição. Assim, reconhecer o Arapiuns e outros rios como sujeitos de direito é um passo importante para o futuro da natureza e da humanidade. Também compreendemos que esta visão nos permite enxergar o Princípio do Mal Menor não como uma simples calculadora de danos, mas como um imperativo de cuidado. A personalidade jurídica do rio é o “mal menor” ético apenas quando confrontada com a ameaça do 'mal maior' absoluto: a sua completa instrumentalização e destruição. Assim o ideal alcançável seria o reconhecimento de todos os rios urbanos e dos principais rios da nação como sujeitos de direito.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do PPGB tendo como base as obras:

“Arapiuns, río de derechos”: Artigo da revista Ecología Política (2023).
Instrução “Dignitas Personae” (Congregação para a Doutrina da Fé, 2008), In: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20081208_dignitas-personae_it.html
Revista internacional de bioética, deontología y ética médica, ISSN-e 2594-2166, ISSN 0188-5022, Vol. 24, Nº. 2, 2013, págs. 241-249, In: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4376850
https://ocristianismoemfoco.blogspot.com/2015/07/a-etica-crista-e-o-mal-menor.html
https://www.veritatis.com.br/principio-do-mal-menor/
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4376850
https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/1337/rio-arapiuns-no-municipio-de-santarem-pode-se-tornar-sujeito-com-direitos
https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2025/07/comunidades-do-rio-arapiuns-preservam-cultura-e-espiritualidade-tradicionais.shtml
Artigo do Padre Dário Borsi, O Reconhecimento do Rio Arapiuns: Uma Abordagem Legal da Natureza como Sujeito de Direitos, In: https://www.ecodebate.com.br/2024/06/17/o-reconhecimento-do-rio-arapiuns-uma-abordagem-legal-da-natureza-como-sujeito-de-direitos/
VIVIAN BITTENCOURT e LUCIANO FÉLIX FLORIT. Artigo: Os rios como sujeitos de direito: uma nova jurisprudência para modelos de desenvolvimento não predatórios, In: https://periodicos.pucpr.br/direitoeconomico/article/view/31094/27161