sábado, 15 de novembro de 2025

Entre Vidas e Lucro: o Princípio do Mal Menor na Ética Ambiental e o reconhecimento do Rio Arapiuns como sujeito de direito

 por  Leandro Augusto Agostinetti, Bacharel, Edvando Ramon Matos Vergasta e Trindade Charpare 



A Campanha em defesa do Rio Arapiuns foi uma mobilização popular que ocorreu no município de Santarém, no Pará, e dinamizou um projeto de lei para que o Rio Arapiuns seja reconhecido como um “ente vivo” e sujeito de direitos. A campanha, chamada “Arapiuns – rio de direitos”, é liderada pela juventude do Assentamento Agroextrativista, os Guardiões do Bem Viver e organizações locais, abrangendo cerca de 150 comunidades. Há um texto de lei que define direitos específicos para o rio, como a manutenção do seu fluxo natural e da quantidade de água necessária para a saúde do ecossistema. Seria criado um “comitê Guardião do Rio”, um espaço para que pessoas defendam a proteção do rio nos fóruns de discussão sobre a bacia hidrográfica. Se aprovado, o Rio Arapiuns será o primeiro do estado do Pará a ter essa garantia por lei. A campanha pelo Rio Arapiuns demonstra que o reconhecimento de rios como sujeitos de direito não é apenas uma teoria, mas uma reivindicação em curso na sociedade brasileira, impulsionada por comunidades que dependem diretamente do rio para sua sobrevivência física, cultural e econômica. Ao citar as ameaças de poluição e a importância econômica do rio para o turismo sustentável, a notícia apresenta um dilema real. Diante da pressão por desenvolvimento, reconhecer o rio como sujeito de direito é uma aplicação do princípio do mal menor: uma intervenção jurídica para evitar um dano ambiental maior e irreversível. No entanto essa campanha gerou conflitos, pois há pressões por um modelo de desenvolvimento econômico (mineração, madeireiras) que gere emprego e renda, mas à custa da destruição do ecossistema. Em contrapartida há a necessidade da sobrevivência cultural e física de comunidades tradicionais ligadas ao Arapiuns, além da integridade mesma do rio, como valor intrínseco do rio como sujeito. Essa tensão coloca em jogo valores éticos profundos, como justiça, autonomia e o próprio direito à vida. Assim os direitos do rio como sujeito implicam diretamente nos direitos humanos. Logo, defender o sujeito Arapiuns é defender todos os sujeitos humanos que estão direta e indiretamente ligados ao Rio. Diante da aparente inevitabilidade de algum impacto (econômico ou ecológico), o reconhecimento dos direitos do rio se configura como a aplicação do princípio do mal menor. A opção considerada “menos pior” ou “menos danosa” é a que impõe limites à atividade econômica para evitar um mal maior: o colapso irreversível do ecossistema fluvial, que traria prejuízos incalculáveis para a biodiversidade, o clima regional e o modo de vida de milhares de pessoas. Essa perspectiva coloca a saúde do rio e da coletividade como um valor superior aos lucros de setores específicos. 
A personalidade jurídica do rio não é apenas uma ferramenta de gestão ambiental; é um reconhecimento de que temos uma obrigação moral para com a natureza, vista não como uma coisa, mas como um sujeito em uma relação de interdependência. Esse pensamento prioriza o equilíbrio nas relações ecológicas e humanas sobre a acumulação material, assim as milhares de vidas que se relacionam com o Rio Arapiuns são mais importantes que o lucro gerado pela sua exploração predatório. Como uma “coisa” pode ser explorada e destruída, mas um “sujeito” não, pois está juridicamente amparado, o processo de reconhecer seu status de pessoa jurídica ampara as demais pessoas que dele dependem ou com ele se relacionam.    A concepção de rios como sujeitos de direitos, abordada no texto do blog Bioética no Dia a Dia, representa uma ruptura com a visão antropocêntrica tradicional do direito e da ética. Ao atribuir personalidade jurídica a ecossistemas fluviais, como ocorreu com os rios Whanganui, em Nova Zelândia, e Atrato, na Colômbia, não se busca meramente uma proteção dos recursos hídricos, mas um reconhecimento de seu valor intrínseco. Esta inovação jurídica traz profundas implicações éticas, que podem ser analisadas à luz do Princípio do Mal Menor, um conceito clássico da bioética que encontra nova ressonância neste contexto. A implicação ética central dessa mudança de status é a obrigação moral de respeitar a existência, a integridade e a funcionalidade do rio como um ente vivo e não como um mero objeto de exploração. Isso significa que qualquer intervenção humana em seu curso, para mineração, agricultura, geração de energia ou urbanização, deve ser submetida a um crivo ético rigoroso. É aqui que o Princípio do Mal Menor se torna uma ferramenta crítica crucial. 
Diante da inevitabilidade de certos impactos decorrentes da necessidade humana de desenvolvimento, a ética exige que se escolha a alternativa que cause o menor dano possível ao ecossistema fluvial, considerando-o como sujeito afetado e não como recurso a ser consumido. Tradicionalmente, o Princípio do Mal Menor é invocado em dilemas onde nenhuma opção é plenamente boa, mas uma é menos danosa que as outras. Na ética médica, por exemplo, pode guiar a escolha de um tratamento com severos efeitos colaterais para evitar um mal maior: a morte. Transpondo essa lógica para a ética ambiental, o “mal” a ser evitado não é mais apenas um prejuízo humano, mas um dano à própria entidade rio e, por extensão, a todas as formas de vida que dele dependem. A pergunta deixa de ser apenas “qual opção é menos prejudicial para nossa economia?” e passa a ser “qual opção causa o menor prejuízo à saúde do rio e, consequentemente, ao seu povo?”. Contudo, a aplicação desse princípio não é isenta de tensões. A noção de “mal menor” pode ser facilmente cooptada por uma lógica antropocêntrica que, sob o pretexto de minimizar danos, ainda legitima agressões ao ecossistema. Quem define o que é o “mal menor?”. Com base em quais valores? Uma usina hidrelétrica é um “mal menor” comparada a uma termelétrica a carvão? Para uma ética que verdadeiramente reconhece o rio como sujeito, a resposta deve emergir de um processo decisório que inclua vozes não-humanas, representadas por guardiões ou comitês de custódia, e que priorize a restauração e a manutenção dos processos ecológicos essenciais. Em conclusão, a personalidade jurídica dos rios força uma evolução ética. Ela exige que o Princípio do Mal Menor seja aplicado não como uma desculpa para a exploração mitigada, mas como um imperativo para uma convivência verdadeiramente respeitosa. A escolha pelo “mal menor” deve ser o último recurso em um processo que priorizou e esgotou todas as alternativas de não-dano. O verdadeiro desafio ético, portanto, não é apenas escolher entre impactos, mas transformar nossa relação com a natureza de uma de dominação para uma de coexistência, onde o rio, como sujeito de direitos, tenha sua voz e sua integridade garantidas.
O princípio do mal menor (PMM) é um fundamento ético que justifica a escolha de um mal para evitar outro mal maior. Em um dilema onde nenhuma opção é ideal, é moralmente válido escolher a alternativa que produz o maior bem possível ou a menor quantidade de mal. Para aplicar o princípio é indispensável que o agente esteja obrigado a agir e a tomar uma decisão diante de duas ou mais alternativas, sendo que nenhuma delas é ideal, após terem sido descartadas outras possíveis ações por uma análise criteriosa. A reflexão sobre o PMM tem raízes na ética clássica grega, sendo formulado por Aristóteles na frase latina “De duobus malis, minor est semper eligendum” (De dois males, o menor deve ser sempre elegido). Uma crítica ou ressalva fundamental a ele é que só é aplicável a dilemas estritamente binários, onde não há uma terceira opção viável. É necessário, antes de tudo, buscar ativamente essa “terceira via” que possa oferecer uma solução melhor, evitando assim a conformidade com qualquer tipo de mal.
    O paciente moral central e inovador na análise é o Rio Arapiuns e seu ecossistema. Ao ser reconhecido como “ente vivo” e sujeito de direitos, o rio deixa de ser um objeto de exploração e passa a ser um sujeito cuja integridade, existência e fluxo natural são portadores de valor intrínseco e, portanto, devem ser considerados moralmente. As ações de poluição e degradação o afetam diretamente. Os pacientes morais primários são as comunidades tradicionais e ribeirinhas. Sua saúde, cultura, sustento e modo de vida (“Bem Viver”) estão intrinsecamente ligados à saúde do rio. Eles são os primeiros e mais diretamente impactados pela sua degradação. Além disso os outros seres vivos que dependem do rio também são pacientes morais, pois sua sobrevivência é ameaçada pela ação danosa. Os agentes morais institucionais primários são o Poder Público (Legislativo e Executivo municipal e estadual). Eles detêm o poder e a responsabilidade de criar e fazer cumprir as leis. A Câmara de Vereadores de Santarém, ao votar o projeto de lei, e o prefeito, ao sancioná-lo, estão exercendo sua função de agente moral para proteger o rio e as comunidades. Já o coletivo Guardiões do Bem Viver e o Movimento Tapajós Vivo: Eles atuam em uma dupla função. São: Pacientes Morais (como visto acima) e Agentes Morais, pois assumem para si a responsabilidade de lutar pela proteção do rio, propor legislação, mobilizar a sociedade e, futuramente, atuar como seus “guardiões”. Eles estão agindo moralmente em defesa de um bem maior. Os Operadores do Direito (Ministério Público, Judiciário) são agentes morais com o poder de garantir que os direitos do rio, uma vez reconhecidos, sejam efetivados e violações sejam punidas. Também existem os Agentes Morais que Causam a Ameaça (e podem ser vulneráveis), como Garimpeiros, Madeireiros Ilegais e Grileiros. Eles tomam decisões ativas que violam a integridade do paciente moral (o rio) e, por consequência, dos outros pacientes morais (as comunidades).
  
 
No caso do Rio Arapiuns, podemos identificar ambas as situações: há a Vulnerabilidade Já Instalada nas comunidades e no rio: A degradação ambiental já está ocorrendo. A poluição por mercúrio do garimpo, a redução de peixes e a contaminação da água já causam impactos concretos na saúde e no sustento das populações. A vulnerabilidade delas não é uma possibilidade futura; é uma realidade presente. Eles já estão sofrendo os efeitos do dano. Infelizmente, o ecossistema fluvial já está sob estresse e dano mensurável. Sua vulnerabilidade também já está instalada. Aqui está um ponto da análise: os próprios agentes causadores do dano (garimpeiros etc.) podem estar em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica. Eles podem ser vulneráveis às decisões dos outros agentes morais (o Estado). Se a lei for aprovada e rigorosamente aplicada, eles perderão sua fonte de renda (ilegal). Esta vulnerabilidade, no entanto, não os exime de sua responsabilidade moral como agentes. Ela, na verdade, complexifica a solução ética. A aplicação do princípio do mal menor não significa simplesmente prender todos os garimpeiros, mas sim buscar uma solução que, ao proteger o rio (evitando o mal maior da destruição total), também considere e mitigue a vulnerabilidade desses agentes, por exemplo, através de políticas de transição para economias sustentáveis e geração de renda legal.Há rios urbanos que necessitam do mesmo reconhecimento almejado ao Arapiuns, como o Rio Belém de Curitiba: um rio totalmente urbano, canalizado e esquecido, vítima do esgoto e da impermeabilização. Ambos compartilham a mesma vulnerabilidade: a perda de sua integridade ecológica. Enquanto no Arapiuns o desafio é impedir o avanço da degradação, no Belém é reverter um dano já consolidado. Em ambos, reconhecer o rio como sujeito de direitos expressa o princípio do mal menor: limitar práticas econômicas imediatistas para evitar o colapso de um ecossistema — seja ele amazônico ou urbano.Também o Rio Tietê é digno da mesma reflexão, um rio que nasce cristalino, mas se torna um curso de esgoto ao atravessar a metrópole. Assim como o Arapiuns, ele também reflete a tensão entre desenvolvimento econômico e dignidade ecológica. Enquanto o primeiro luta contra a mineração e a exploração madeireira, o segundo sofre com a industrialização e a negligência social. Ambos são pacientes morais no sentido bioético: sofrem ações humanas e expressam, por seu estado, o grau de nossa responsabilidade moral coletiva.
  Nós como futuros bioeticistas compreendemos que os valores ameaçados pela exploração do Arapiuns é a da própria existência do rio enquanto ser e de todos os seres vivos que dependem dele, inclusive das comunidades locais. Já o valor ameaçado pelo reconhecimento do Arapiuns como sujeito de direito é econômico, sustentado pela exploração predatória. Mas a exploração econômica de uma área é sempre temporária, pois as atividades predatórias destroem e finalizam o ciclo, abandonando apenas a destruição e levando consigo a riqueza extraída. Assim, impedir que esse ciclo se concretize, reconhecendo o Arapiuns como sujeito de direitos impediria o maior mal, que é a destruição do rio, do seu ecossistema e de todas as pessoas humanas que dele dependem, em detrimento de uma geração de valor financeiro temporal. O Arapiuns, seu ecossistema e as comunidades locais (todos relativamente perenes) possuem mais valor que a “riqueza” financeira gerada com seu rastro permanente de destruição. Assim, reconhecer o Arapiuns e outros rios como sujeitos de direito é um passo importante para o futuro da natureza e da humanidade. Também compreendemos que esta visão nos permite enxergar o Princípio do Mal Menor não como uma simples calculadora de danos, mas como um imperativo de cuidado. A personalidade jurídica do rio é o “mal menor” ético apenas quando confrontada com a ameaça do 'mal maior' absoluto: a sua completa instrumentalização e destruição. Assim o ideal alcançável seria o reconhecimento de todos os rios urbanos e dos principais rios da nação como sujeitos de direito.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do PPGB tendo como base as obras:

“Arapiuns, río de derechos”: Artigo da revista Ecología Política (2023).
Instrução “Dignitas Personae” (Congregação para a Doutrina da Fé, 2008), In: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20081208_dignitas-personae_it.html
Revista internacional de bioética, deontología y ética médica, ISSN-e 2594-2166, ISSN 0188-5022, Vol. 24, Nº. 2, 2013, págs. 241-249, In: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4376850
https://ocristianismoemfoco.blogspot.com/2015/07/a-etica-crista-e-o-mal-menor.html
https://www.veritatis.com.br/principio-do-mal-menor/
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4376850
https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/1337/rio-arapiuns-no-municipio-de-santarem-pode-se-tornar-sujeito-com-direitos
https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2025/07/comunidades-do-rio-arapiuns-preservam-cultura-e-espiritualidade-tradicionais.shtml
Artigo do Padre Dário Borsi, O Reconhecimento do Rio Arapiuns: Uma Abordagem Legal da Natureza como Sujeito de Direitos, In: https://www.ecodebate.com.br/2024/06/17/o-reconhecimento-do-rio-arapiuns-uma-abordagem-legal-da-natureza-como-sujeito-de-direitos/
VIVIAN BITTENCOURT e LUCIANO FÉLIX FLORIT. Artigo: Os rios como sujeitos de direito: uma nova jurisprudência para modelos de desenvolvimento não predatórios, In: https://periodicos.pucpr.br/direitoeconomico/article/view/31094/27161

 

 

 

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Blue Universities: uma estratégia de fortalecimento da democracia hídrica em tempos de crise climática.




Por  Marta Luciane Fischer

No dia 13 de novembro de 2025 a Blue University esteve presente nas discussões ocorridas na COP 2025 no metaverso do espaço da Maloca. A Reunião foi coordenada pela Profa. Marta Fischer (PPGB da PUCPR) que representou a Blue Community juntamente com Prof. Elias Wolff (PPGT/PUCPR) e contaram com a fala do prof. Gilberto Coelho da UFLA 1ª Blue University do Brasil; Elaine Kurscheidt, Coordenadora de Operações na PUCPR; Thierry Lummertz doutorando do PPGB representando o Clube da Água da PUCPR. (Vídeo da reunião (pela minha visão); Vídeo da reunião oficial (clique aqui) )



A água, elemento fundador da vida, acompanha a humanidade desde seus primeiros gestos de sobrevivência. No entanto, a mesma espécie que dela depende a transformou em um bem de disputa, submetido a interesses econômicos e à lógica da escassez. Em tempos de crises climáticas e de desigualdade crescente, refletir sobre quem tem acesso à água — e sob quais condições — tornou-se um dos debates éticos e políticos mais urgentes do século XXI. É neste contexto que surge o movimento Comunidades Azuis (Blue Communities), uma resposta coletiva à privatização e mercantilização de um bem que deveria ser comum a todos os seres. Criadas em 2009 pelo Conselho dos Canadenses e pelo Sindicato Canadense de Funcionários Públicos (CUPE), as Comunidades Azuis nascem de um gesto de resistência: garantir o direito humano à água e ao saneamento e promover sua gestão pública e democrática. A primeira cidade a adotar o compromisso foi Burnaby, no Canadá, em 2011. Pouco depois, o movimento atravessou fronteiras com o apoio da ativista Maude Barlow, levando a capital suíça Berna, juntamente com a Universidade de Berna e a Igreja Evangélica Reformada de São João, a se tornarem as primeiras Comunidades Azuis fora do Canadá. A partir daí, uma rede internacional se formou, envolvendo cidades como Montreal, Paris, Berlim, Bruxelas, Los Angeles, Cádiz e St. Gallen, além de universidades, escolas, sindicatos, ONGs e comunidades religiosas. Todas compartilham um princípio comum: a água é um bem público, não uma mercadoria. A proposta é simples, mas profundamente transformadora: reconhecer a água como direito humano universal, garantir sua gestão pública e comunitária e eliminar o uso de garrafas plásticas, promovendo alternativas sustentáveis em espaços coletivos (Blue Communities, 2024). Esse tripé ético fundamenta um novo paradigma de governança hídrica, em oposição à lógica privatista que trata a água como produto de mercado. Mas o movimento não se limita ao ativismo. Ele se ancora em dados científicos alarmantes. Segundo a UNESCO (2023), 26% da população mundial ainda não tem acesso à água potável e 46% carece de saneamento seguro, o que representa bilhões de pessoas. E o cenário tende a se agravar: até 2050, o número de habitantes urbanos afetados pela escassez hídrica poderá dobrar, alcançando entre 1,7 e 2,4 bilhões de pessoas. Relatórios do IPCC indicam que metade da população mundial já vive sob escassez severa de água em parte do ano, resultado direto das alterações climáticas, da poluição e do uso insustentável dos recursos hídricos. Esses dados expõem o paradoxo contemporâneo: enquanto a água é condição básica para a vida, seu acesso tem sido restringido e desigualmente distribuído. Como destacam Fischer e Rosaneli (2022), os avanços tecnocientíficos que garantiram prosperidade também comprometeram a sustentabilidade do planeta, degradando fontes hídricas e contaminando ecossistemas. Potter (1996) já alertava que a humanidade caminha para uma era de conflitos pela água — uma previsão que hoje se materializa em disputas geopolíticas, privatizações e crises ambientais. É nesse cenário que as Instituições de Ensino Superior (IES) emergem como agentes fundamentais de transformação. 

O movimento das Blue Universities nasce exatamente da percepção de que o conhecimento acadêmico pode ser um instrumento de resistência e de reconstrução. No Brasil, duas universidades se destacam nesse contexto: a Universidade Federal de Lavras (UFLA) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). A UFLA, em Minas Gerais, foi a segunda universidade do mundo e a primeira da América Latina a receber o selo Blue University, em 2016. O reconhecimento é fruto de um conjunto de ações de gestão hídrica integrada, que incluem uma Estação de Tratamento de Água com capacidade para 1,6 milhão de litros por dia, o reuso de efluentes tratados e a revegetação de nascentes, com o plantio de 90 mil mudas de 49 espécies. A universidade reduziu em 90% o consumo de água nos laboratórios com tecnologias de osmose reversa e economiza anualmente cerca de R$ 6 milhões, reinvestidos em ensino e pesquisa. Mais do que uma certificação, trata-se de um modelo de integração entre sustentabilidade ambiental e produção de conhecimento. Já a PUCPR, reconhecida como Blue University em 2023, reforça o protagonismo acadêmico na agenda hídrica (Fischer; Wolff; Silva, 2025 ]). A instituição concentra esforços na educação ambiental, na pesquisa aplicada e na conscientização comunitária, traduzindo os princípios das Comunidades Azuis para o cotidiano acadêmico e urbano. Ambas as experiências revelam que a universidade pode e deve ser um laboratório de governança pública da água, em que a teoria se converte em prática e a pesquisa em compromisso social. A articulação entre essas experiências brasileiras dá origem a um modelo que ganha destaque na pauta internacional. A proposta da “Maloca Azul”, que será apresentada na COP30, visa a promover um espaço de convergência entre universidades, comunidades locais e povos tradicionais, com três objetivos centrais: (1) fomentar o intercâmbio de saberes e soluções para o acesso à água; (2) visibilizar práticas comunitárias de gestão hídrica e proteção de mananciais; e (3) formular recomendações políticas e técnicas dirigidas à Conferência das Partes, priorizando contextos de maior vulnerabilidade. Trata-se de uma contribuição concreta do Brasil à agenda climática global — e de um chamado à responsabilidade compartilhada. Por trás dessa rede azul que se expande está uma ética da interdependência. Reconhecer a água como direito humano é reconhecer que a vida — humana e não humana — é relacional, atravessada por fluxos que ultrapassam fronteiras. 
A ONU (2010) estabeleceu esse marco ao declarar o acesso à água um direito humano essencial, universal e inalienável, reafirmado no ODS 6 (ONU, 2015 [9]), que propõe “garantir disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos até 2030”. Ainda assim, a distância entre o compromisso normativo e a efetivação prática segue sendo abissal. As Blue Communities propõem uma virada cultural: deslocar o debate da escassez para o da justiça das águas. A crise não é apenas natural ou tecnológica — é política, ética e civilizatória. Não se trata de “falta de água”, mas de falta de equidade, de solidariedade e de governança. Em vez de gerir a água como mercadoria, é preciso tratá-la como bem comum global, cuja proteção exige participação social, transparência institucional e responsabilidade coletiva. A experiência brasileira demonstra que a transformação é possível quando há compromisso. A UFLA e a PUCPR mostram que a sustentabilidade hídrica pode ser motor de inovação, pesquisa e economia circular, e que o conhecimento científico pode caminhar de mãos dadas com a cidadania e a espiritualidade ecológica. Diante da crise hídrica global, as Comunidades Azuis nos lembram que o futuro da água é o futuro da vida — e que a defesa desse bem comum começa, inevitavelmente, por um ato de consciência.


A Dimensão Ética da Gestão Participativa no Acesso à Água Potável: Da “Fome de Água” à Formação de Novos Paradigmas em Governança Hídrica


A água, essência da vida e símbolo da interdependência entre os seres, tornou-se também o espelho das desigualdades que estruturam o mundo contemporâneo. O conceito de “fome de água”, elaborado por Fischer e Rosaneli (2022), amplia a compreensão da crise hídrica global ao revelar que a escassez de água potável não se resume a uma carência física, mas representa uma crise ética, social e civilizatória. A “fome de água” expõe as múltiplas vulnerabilidades que emergem da exclusão hídrica: ambientais, biológicas, sociais e políticas. E é sob essa lente que se torna possível compreender o papel transformador das instituições de ensino superior e o potencial das Blue Universities na formação de profissionais comprometidos com novos paradigmas de justiça e corresponsabilidade. A definição de “fome de água” como a privação simultânea de acesso material, simbólico e político a um bem essencial à vida. Assim como a fome alimentar denuncia desigualdades estruturais, a fome de água revela o fracasso coletivo de um modelo de desenvolvimento que converte um direito humano em mercadoria. Três dimensões interdependentes configuram esse fenômeno. A dimensão ambiental evidencia a degradação dos mananciais, a contaminação dos solos e a exploração insustentável dos aquíferos. Trata-se do colapso de ecossistemas que sustentam o ciclo da água e garantem sua renovação natural. Essa dimensão denuncia a falência de um paradigma produtivista que enxerga a água como insumo e não como bem comum. A dimensão biológica revela o impacto direto da falta de água potável sobre a saúde humana. Doenças infecciosas, desnutrição e precariedade sanitária são sintomas corporais da injustiça hídrica. O corpo humano, como espaço de inscrição da desigualdade, torna-se o primeiro território de vulnerabilidade. Por fim, a dimensão bioética articula e dá sentido às demais. Ela reconhece que a fome de água não decorre de um acidente ecológico, mas de decisões humanas — escolhas políticas, econômicas e culturais que violam o princípio da equidade. A bioética ambiental, nesse contexto, emerge como uma ética da proteção, da precaução e da perseverança, comprometida com o bem-estar de todos os seres e das gerações futuras.

A gestão participativa da água representa a resposta ética e política à fome de água. Em oposição ao modelo tecnocrático e centralizado, ela se fundamenta na corresponsabilidade e na deliberação pública. Fischer e Rosaneli (2022) defendem que o direito humano à água exige não apenas garantias normativas, mas processos participativos reais, que assegurem o envolvimento de comunidades, universidades, movimentos sociais e governos locais na tomada de decisões. A ética da gestão participativa, inspirada na bioética de intervenção e proteção, sustenta que o Estado tem o dever de proteger os vulneráveis e intervir para corrigir desigualdades estruturais. Isso implica enfrentar a vulnerabilidade programática — a incapacidade das políticas públicas de sustentar ações de longo prazo — e promover arranjos institucionais que garantam a continuidade das políticas de água e saneamento, independentemente de ciclos eleitorais. Mas a ampliação desse horizonte aponta a necessidade de uma ética intergeracional, baseada no princípio da responsabilidade. Cuidar da água hoje é um dever moral com o futuro. A perseverança ética, nesse contexto, não se limita à manutenção dos recursos, mas à construção de uma cultura do cuidado — uma pedagogia de engajamento e solidariedade capaz de reorientar nossa relação com a natureza. É nesse ponto que a reflexão sobre a fome de água se conecta diretamente ao movimento das Blue Communities e, mais especificamente, das Blue Universities. Se a fome de água é expressão de uma crise ética e civilizatória, a educação superior torna-se um espaço privilegiado para a reconstrução de valores e práticas de governança hídrica.
O projeto Blue Communities, iniciado no Canadá em 2009, e sua extensão para o meio acadêmico com as Blue Universities, propõem que as instituições de ensino assumam um compromisso ético e público com o direito humano à água, adotando três princípios centrais: Reconhecer a água como direito humano e bem comum; Garantir sua gestão pública, participativa e transparente; e Reduzir o uso de plásticos e promover hábitos sustentáveis. No Brasil, universidades como a UFLA e a PUCPR incorporaram esse modelo, traduzindo os princípios do movimento em ações de pesquisa, extensão e gestão sustentável. Essas experiências concretizam, em nível institucional inserindo-se em nível conceitual: uma transição ética de paradigmas, da gestão tecnocrática para uma governança democrática da água. A Blue University representa, assim, um espaço de convergência entre ciência, ética e cidadania. Sua missão não é apenas reduzir o consumo ou melhorar a infraestrutura, mas formar profissionais capazes de pensar a água sob uma nova cosmovisão — que reconhece a interdependência entre sistemas ecológicos, sociais e espirituais. Essa formação transcende o domínio técnico e integra valores de solidariedade, justiça ambiental e responsabilidade intergeracional. A ética da gestão participativa requer profissionais que unam competência técnica e sensibilidade ética. As Blue Universities atuam como laboratórios vivos dessa nova pedagogia, nos quais o ensino, a pesquisa e a extensão são orientados pela ideia de ecocidadania — um conceito que implica consciência ecológica, engajamento comunitário e capacidade de diálogo intercultural. Nesse sentido, enfrentar a fome de água não é apenas uma questão de tecnologia ou legislação, mas de transformação de valores. A formação universitária deve promover não só o conhecimento científico sobre o ciclo da água e as políticas de saneamento, mas também a compreensão crítica dos contextos sociais que produzem desigualdade e exclusão.

A dimensão ética da educação, portanto, é inseparável da dimensão política. Profissionais formados sob essa perspectiva — engenheiros, gestores ambientais, biólogos, filósofos, teólgos, economistas, juristas e educadores — tornam-se mediadores entre saberes e comunidades, capazes de articular ciência e cidadania em prol da justiça hídrica caraacterinzando um espaço de acolhimento e partilha proprio da Bioética Ambiental. O paradigma Blue University encarna essa mudança, propondo que cada instituição de ensino seja também um agente de transformação social, comprometido com práticas de sustentabilidade e equidade. A superação da fome de água exige uma mudança de cosmovisão. A evocação de uma ética do cuidado que reconhece o valor intrínseco da água e sua dimensão simbólica, espiritual e cultural. A água é mais que recurso — é elo entre formas de vida, memória coletiva e esperança. Ao adotar essa perspectiva ampliada, as Blue Universities aproximam a racionalidade científica da sensibilidade ecológica e da sabedoria dos povos tradicionais, integrando saberes locais e acadêmicos em projetos de gestão participativa. Essa cosmovisão compartilhada é essencial para romper com a lógica antropocêntrica e mercantil. A água não pertence ao ser humano; é o ser humano que pertence ao ciclo da água. Tal consciência transforma a ética da gestão participativa em ética da convivência — uma prática que busca harmonia entre o cuidado ambiental, o desenvolvimento social e a espiritualidade da Terra. O conceito de “fome de água”, ao revelar as dimensões ambiental, biológica e bioética da crise hídrica, desafia-nos a repensar as bases de nossa convivência com o planeta. A gestão participativa, orientada pela bioética da proteção, oferece um caminho para restaurar o equilíbrio entre tecnologia, justiça e solidariedade. Mas é na educação superior — e particularmente nas Blue Universities — que esse caminho ganha força institucional e horizonte de futuro.

Formar profissionais comprometidos com novos paradigmas de governança hídrica significa cultivar uma consciência ecológica integral, capaz de unir conhecimento científico, sensibilidade ética e compromisso social. Significa, também, reconhecer que a água é mais que um direito: é o vínculo que nos lembra que toda vida é interdependente. Assim, da fome de água à cultura da justiça das águas, o percurso ético e educativo das Blue Universities representa a semente de uma nova civilização hídrica — uma civilização fundada não na posse, mas no cuidado; não na exploração, mas na cooperação; e não na indiferença, mas na responsabilidade compartilhada pela vida em todas as suas formas. Finalizo, registrando aqui que me sinto honrada por fazer parte de um momento histórico que é a participação das Blue Communites em uma conferência internacional, cediada em um país reconhecido pela suas florestas e águas, mas que está vulnerável a outras pressões que colocam em risco o futuro da vida em nosso planeta.



Esse ensaio corresponde a fala da Dra. MArta Fischer na plenária COP30 Maloca, sendo baseada nas obras:

Fischer, M. L., & Rosaneli, M. C. (2022). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Potter, I. (1996). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Fischer, M. L., et al. (2021). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Organização das Nações Unidas (ONU). (1966). Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Organização das Nações Unidas (ONU). (1992). Declaração Universal dos Direitos da Água.
Organização das Nações Unidas (ONU). (2010). Resolução 64/292. O direito humano à água e ao saneamento.
Organização das Nações Unidas (ONU). (2000). Objetivos do Milênio.
Organização das Nações Unidas (ONU). (2015). Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Blue Communities. (2024). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.
Fischer, M. L., Wolff, E., & Silva, L. C. da. (2025). Somos uma Blue University, e agora? Caminhos de Diálogo, 13(22), 158-180. (Base do conteúdo original)
UFLA. (2016). UFLA é Azul: 2ª universidade do mundo com o certificado Blue University em reconhecimento pela gestão das águas. Arquivo de Notícias. Disponível em: https://ufla.br/arquivo-de-noticias/9500-ufla-e-azul-2a-universidade-do-mundo-com-o-certificado-blue-university-em-reconhecimento-pela-gestao-das-aguas.
Cini, J., Rosaneli, M. C., & Fischer, M. L. (2019). Referência completa a ser incluída conforme o artigo original.


Mídia 

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segunda-feira, 10 de novembro de 2025

A Bioética Ambiental como ferramenta para política em resposta à mudança do clima

 ....  uma tentativa de acolherem nossa voz na COP30


Clique aqui e assista a reunião que ocorreu no metaverso


Mudanças climáticas: uma pauta da Bioética ambiental

por Marta Luciane Fischer 


A história da humanidade é inseparável da nossa capacidade de intervir no meio ambiente. Desde o desmatamento para a agricultura, há 10 mil anos, até a construção de megabarragens como a de Três Gargantas na China ou Belo Monte no Brasil, a tecnologia sempre foi a ferramenta primária para reconfigurar ecossistemas em busca de sobrevivência e desenvolvimento. No entanto, o século XXI nos confronta com uma proposta de intervenção sem precedentes: a geoengenharia climática, uma tentativa deliberada e em escala planetária de manipular os sistemas climáticos como resposta ao aquecimento global. Este debate, crucial para a bioética ambiental, não se limita à viabilidade técnica, mas à legitimidade moral de tratar o sintoma em vez da doença. O cerne da discussão reside na diferença entre a abordagem etiológica (interromper as causas do dano, como a redução radical de emissões de gases de efeito estufa) e a abordagem sintomática (manipular as consequências, como o resfriamento artificial do planeta). Historicamente, intervenções sintomáticas em larga escala já resultaram em desastres ambientais, como o desvio dos rios Amu Darya e Syr Darya para irrigação, que levou à quase total desertificação do Mar de Aral. Em todos esses casos, a tecnologia buscou mitigar um problema (escassez de água, pragas) sem jamais abordar a causa fundamental (crescimento populacional, demanda insustentável). A geoengenharia climática se divide em duas categorias: a Remoção de Dióxido de Carbono (CDR), que engloba tecnologias que removem o CO₂ da atmosfera (ex: Reflorestamento, Captura Direta do Ar - DAC), e a Modificação da Radiação Solar (SRM), que visa refletir a luz solar de volta ao espaço para resfriar o planeta (ex: Injeção de Aerossóis Estratosféricos - SAI). O foco dos conflitos éticos recai principalmente sobre a SRM, que é a epítome da abordagem sintomática: trata o calor, mas ignora a fonte do problema – as emissões de combustíveis fósseis.
A principal crítica ética à geoengenharia é o Risco Moral (Moral Hazard). A existência de uma "bala de prata" tecnológica, um plano B para o clima, pode desincentivar a mudança comportamental e estrutural necessária para a descarbonização da economia (Hulme, 2014). Além disso, a SRM, ao mascarar o aquecimento, não resolve outros efeitos do excesso de CO₂, como a acidificação dos oceanos, minando o ODS 14 (Vida na Água). A implementação da SRM levanta sérias questões de justiça climática. Quem decide quando, onde e como intervir? Os efeitos não seriam uniformes. Um país poderia se beneficiar de um clima mais ameno, enquanto outro sofreria com secas ou alterações nos padrões de monções, afetando a segurança alimentar (ODS 2 - Fome Zero). A tecnologia é relativamente barata, o que abre a porta para ações unilaterais por um único país ou ator privado, gerando tensões geopolíticas e o risco de "guerras climáticas" não intencionais (Ocean Foundation, 2023). Um dos dilemas mais cruciais é o Dilema da Interrupção (Termination Shock). A SRM exige manutenção contínua. Se, após anos de resfriamento artificial, a injeção de aerossóis for abruptamente interrompida (por falha técnica, conflito ou decisão política), o planeta experimentaria um rápido e catastrófico aumento de temperatura. Isso impõe um fardo ético perpétuo às gerações futuras, que seriam obrigadas a manter a intervenção (Lawrence, 2018). A bioética ambiental nos convoca a um princípio de ética da responsabilidade (Jonas, 1979), que exige que consideremos os impactos de nossas ações tecnológicas na integridade da biosfera e nas gerações futuras.
No contexto brasileiro, embora não haja projetos de SRM estratosférica, a tecnologia de semeadura de nuvens (chuva artificial) é utilizada em regiões como o Nordeste para combater a seca (Alcantara, 2022). Esta é uma forma de Modificação do Clima em escala regional, mas que também se insere na lógica da intervenção sintomática. A técnica consiste na injeção de agentes nucleadores (como água potável ou cloreto de sódio) em nuvens para estimular a precipitação. Empresas contratadas e órgãos estatais, como a SANEPAR (2021), divulgam resultados expressivos, como a indução de bilhões de litros de chuva. No entanto, a eficácia científica da semeadura de nuvens é um tema de intensa controvérsia na comunidade acadêmica (Gomes, Silva Reis, 2021). Meteorologistas questionam a capacidade de isolar o efeito da intervenção do ciclo natural de chuvas, exigindo evidências estatísticas robustas e estudos controlados (DW, 2020; Jornal da USP, 2021). A controvérsia científica se traduz em dilemas bioéticos, como a Alocação de Recursos, onde o investimento em uma tecnologia de eficácia questionável pode desviar recursos públicos de soluções comprovadamente eficazes e sustentáveis, e a Justiça Hídrica, pois a manipulação regional do clima pode gerar o "efeito sombra de chuva" (rain shadow effect), tornando a tecnologia um instrumento de injustiça distributiva e potencial conflito.
A geoengenharia climática não é uma solução, mas um sintoma da falha ética global em interromper a dependência de combustíveis fósseis. A prioridade ética inegociável é a mitigação radical e imediata das emissões. A intervenção sintomática é, em última análise, uma fuga da responsabilidade etiológica. A geoengenharia, se considerada, deve ser vista apenas como uma medida temporária e estritamente regulamentada, jamais como substituto para a mudança estrutural. O verdadeiro senso crítico e a coerência exigem que a sociedade desloque o debate da viabilidade técnica para a legitimidade moral de manipular o planeta.


Bioética e as Conferências das Partes (COPs)

A participação da bioética nas Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima tem se transformado significativamente, migrando de uma presença implícita para uma influência cada vez mais explícita nos discursos e documentos oficiais. Embora a bioética não constitua um bloco formal de negociação, seus pressupostos fundamentais — justiça social, equidade, direitos humanos, responsabilidade intergeracional e saúde como direito — têm se manifestado nas dimensões políticas, técnicas e normativas das negociações climáticas. O senso comum frequentemente restringe a bioética ao contexto clínico, mas há um crescente corpo de literatura e iniciativas que demonstram seu papel essencial na bioética ambiental, social e global. Organismos internacionais e ONGs mobilizam a bioética para afirmar direitos humanos relacionados à saúde frente às mudanças climáticas, reforçar obrigações éticas de mitigação e adaptação, e sustentar políticas públicas que priorizem populações vulneráveis. A UNESCO, por exemplo, elaborou uma *Declaration of Ethical Principles in relation to Climate Change*, e organizações médicas internacionais, como a World Medical Association, associam saúde, impactos climáticos e equidade. Relatórios como os da série Lancet Countdown incluem métricas de saúde pública e desigualdades como essenciais para avaliar o progresso climático e sanitário. Essas iniciativas institucionalizam a bioética fora dos espaços clínicos, aproximando-a das negociações climáticas formais. No Brasil, a preparação para a COP30 incluiu o anúncio do “Global Ethical Stocktake”, destinado a complementar avaliações técnicas com reflexões éticas e de justiça, além de mecanismos de participação social como a plataforma “Brasil Participativo”. Essas ações representam um reconhecimento formal de que princípios bioéticos são indispensáveis para legitimar políticas climáticas. Contudo, persistem tensões práticas, como as assimetrias de poder entre países do Norte e do Sul, barreiras técnicas para a participação de delegados de recursos limitados, a influência de interesses econômicos e privados, e a limitação de decisões vinculantes com base em princípios éticos. Esses fatores, em muitos casos, reduzem a transformação de discursos éticos em compromissos concretos ou financeiramente sustentados. 
A perspectiva da Saúde Única (One Health) — que integra a saúde humana, animal e ambiental — tornou-se um eixo essencial no repertório bioético aplicado às mudanças climáticas. Documentos científicos e iniciativas brasileiras apontam para a necessidade de políticas intersetoriais, nas quais a bioética oferece normas de justiça na alocação de recursos, na priorização de populações vulneráveis e no reconhecimento de direitos dos ecossistemas e das populações que dependem diretamente deles. Em termos de ações concretas, destacam-se a inclusão de métricas de saúde e desigualdade em planos climáticos nacionais (NDCs) para quantificar co-benefícios de mitigação (como redução de poluição e doenças respiratórias), planos de adaptação com foco em saúde (programas de resiliência sanitária, prevenção de doenças climáticas) e a transição sustentável do setor saúde, com esforços para neutralização de carbono e práticas hospitalares menos poluentes, sempre com atenção ética à justiça distributiva. A educação em bioética climática também ganha espaço, com iniciativas formais e informais em universidades e instituições de saúde, incorporando módulos sobre ética ambiental, justiça global e saúde pública, e programas de formação *One Health* que promovem competências transdisciplinares. Diante desses antecedentes, para a COP30, são esperadas concretizações práticas da bioética, como uma forte atuação no Global Ethical Stocktake, garantindo que seus instrumentos incorporem indicadores de saúde, equidade e vulnerabilidade socioambiental, e a inserção de representantes de grupos historicamente marginalizados no processo de formulação de políticas. 
É crucial também a inclusão explícita de educação em bioética climática nos programas paralelos da COP30 e o apoio à formulação de NDCs e planos nacionais de adaptação que sejam sensíveis à saúde e à equidade. A bioética tem construído uma presença crescente nas COPs por meio de suas contribuições teóricas e normativas aos discursos de justiça social e responsabilidade intergeracional. Para que essa influência se fortaleça, será imperativo que haja articulação organizada (acadêmica, institucional, da sociedade civil), clareza normativa nos princípios e vigilância constante contra as assimetrias de poder que tendem a minimizar os valores éticos em prol de interesses técnicos ou econômicos. A articulação entre bioética e COP, embora ainda escassa na literatura científica, revela três grandes temas de abordagem nos artigos existentes: a Bioética Ambiental, a Ecoética e os Princípios Éticos como tema central (36,4% dos artigos), a Governança Climática e de Biodiversidade com foco nas COPs (54,5%), e a temática de Direitos, Justiça e Políticas Públicas, onde bioética e COPs aparecem de forma complementar (36,4%).

Na COP30 a Bioética Ambiental foi levada a plenária pela Sociedade Brasileira de Bioética representada pela presidenta Marisa Palácios e reunindo nomes como José Roque Jungles - pioneiro da Bioética Ambiental no Brasil; Marta Luciane Fischer - Líder do Grupo de Pesquisa em Bioética Ambiental PPGB; Jennifer Cristina Biscarra Bellio membro da Labea da UFPR representando Carla Molento, referência em bem-estar-animal; Fábio Oliveira - quem vem fomentando o debate sobre responsabilidades ambientais; Rita Leal Paixão - referência em ética animal e formadora de um legado frutífero de ideias, pensamentos e ações. A sala de reuniões virtual ocorreu no espaço maloca disponibilizado pela COP30 para ampliar debates para além das fronteiras física e promover uma difusão de conhecimento em amplitude global. Indubitavelmente um esforço coletivo em um espaço de partilha e construção para transformação. A Bioética Ambiental, marca assim, em um momento histórico sua presença nas Conferências das Partes com a perspectiva de fortalecimento de grupos de trabalhos, pesquisas científicas, popularização da ciência e extensão.





O presente ensaio foi elaborado para marcar esse momento histórico de presença e acolhimento da Bioética Ambiental em conferências internacionais e se baseou nas obras:


ABSHAEV, M. T. et al. Assessment of Cloud Resources and Potential for Rain Enhancement in Minas Gerais State in Brazil. Atmosphere , v. 14, n. 8, 1227, 2023.

ALCANTARA, R. W. S. Um olhar da Bioética sobre as Políticas de Mitigação Climática . 2021. 215 f. Dissertação (Mestrado em Bioética) - Universidade de Brasília, Brasília, 2021. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/43326/1/2021_RicardoWagnerdeSouzaAlcant%C3%A2ra.pdf. Acesso em: 21 out. 2024.

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CARDOSO, J. S. Ensaios sobre políticas climáticas e o uso da terra no Brasil . 2018. 141 f. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2018. Disponível em: http://repositorio.ufgd.edu.br. Acesso em: 21 out. 2024.

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DW. A controversa técnica de semear chuvas que falhou em SP . 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/a-controversa-t%C3%A9cnica-de-semear-chuvas-que-falhou-em-s%C3%A3o-paulo/a-52539593. Acesso em: 21 out. 2024.

FEARNSIDE, P. M. Hidrelétricas na Amazônia: a resposta da ciência à falta de planejamento. Ciência e Cultura , v. 67, n. 3, p. 36-41, 2015.

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