terça-feira, 25 de novembro de 2025

Quando o Rio Pede Vez e Voz: Ética, Direito e Vida no Caso Rio Belém

Por Gabrielli Marchiolli e Melissa Erika Ichi

Na cidade de Belém–PA, que se prepara para sediar a COP30, os desafios relacionados à água e ao saneamento são evidentes. No igarapé Piraíba, afluente do rio Maguari, comunidades ribeirinhas precisaram abandonar suas casas devido à poluição industrial e à ausência de tratamento de dejetos, situação que se arrasta há quase duas décadas. Situação semelhante ocorre na Ilha do Combu, onde a falta de saneamento básico e de acesso à água potável ainda compromete a qualidade de vida local. Com a aproximação da conferência e o aumento do turismo, cresce a preocupação de que as ações priorizem a aparência da cidade em detrimento da sustentabilidade e do bem-estar das comunidades.


Essa contradição expõe um paradoxo ético: enquanto líderes globais discutem a sustentabilidade, o rio que corta a cidade símbolo do evento agoniza em silêncio. O caso dos rios e igarapés de Belém revelam um problema de caráter ético, social e ambiental complexo, que ultrapassa os limites da ecologia e nos obriga a repensar a relação entre humanidade e natureza. Ambientalmente, o rio sofre com o despejo de resíduos e esgoto sem tratamento, o desmatamento das margens e a perda de biodiversidade. Socialmente, as comunidades ribeirinhas vivem em condições precárias, sem acesso à água limpa, saneamento ou políticas públicas efetivas. Economicamente, a degradação reduz o potencial turístico e eleva os custos com saúde pública. Na dimensão da saúde, aumentam os casos de doenças causadas pelo contato com águas contaminadas, enquanto no campo espiritual e cultural, o rio, símbolo de vida e ancestralidade, é silenciado pelo abandono. Essa visão dialoga diretamente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, adotada em 2015 na sede das Nações Unidas, que busca promover a erradicação da pobreza, à proteção do meio ambiente e à promoção da prosperidade para todos. Entre esses objetivos, o ODS 6, que propõe assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todos, é particularmente relevante. Contudo, esse objetivo continua longe de ser alcançado em muitas regiões do planeta — e o Brasil é um exemplo expressivo dessa distância entre discurso e realidade. A degradação ambiental dos rios e igarapés de Belém evidencia um cenário complexo, marcado por interesses e valores conflitantes. Entre os agentes morais estão o poder público, responsável por formular e aplicar políticas de saneamento e fiscalização ambiental; as empresas e indústrias locais, cujas atividades contribuem para a poluição; e o setor do turismo e serviços, interessado na infraestrutura e na imagem da cidade. Já entre os pacientes morais encontram-se as comunidades ribeirinhas, que enfrentam diariamente a escassez de água potável e as doenças decorrentes da poluição; os animais e organismos aquáticos, afetados pela degradação dos ecossistemas; o próprio rio, enquanto sujeito ecológico cuja integridade está ameaçada. 
O conflito surge quando os interesses dos agentes morais (como o lucro, o crescimento econômico ou a valorização política) prevalecem sobre os interesses dos pacientes morais. Situação semelhante ocorre no Rio Belém, que nasce e deságua no município de Curitiba–PR, observa-se uma situação crítica, em que o rio apresenta elevados índices de poluição, sendo grande parte do líquido transportado composto por esgotos e resíduos de diversas origens. É necessário identificar os direitos do rio e os interesses de todos os envolvidos, garantindo a proteção dos ecossistemas e a participação ativa da sociedade na sua conservação. Diante disso, torna-se fundamental considerar o igual interesse de todos os envolvidos. Nesse sentido, o princípio da igual consideração de interesses, formulado pelo filósofo utilitarista Peter Singer, postula que, nas deliberações morais, deve-se atribuir o mesmo peso a interesses semelhantes de todos os afetados pelas ações. Isto é, um interesse é um interesse independente de quem o possua. Esse princípio atua como uma balança, pesando os interesses de modo imparcial. Singer ainda retoma os princípios de dor e prazer de Jeremy Bentham, estabelecendo que a capacidade de sofrer ou de sentir prazer é a condição necessária para que um ser possua interesses. Aplicado ao contexto de Belém, apesar de a ótica utilitarista clássica excluir os entes não sencientes, consideramos o rio como sujeito de direito, reconhecendo seu valor intrínseco, independentemente de qualquer benefício que possa trazer para os seres humanos. Nesse sentido, a degradação dos rios e igarapés representa não apenas uma violação dos direitos das comunidades afetadas, mas também um desrespeito aos próprios interesses ecológicos desses corpos hídricos. A reflexão bioética sobre o Rio Belém (e tantos outros rios negligenciados por todo o Brasil) pode ainda ser fundamentada no Princípio da Responsabilidade, proposto pelo filósofo alemão Hans Jonas. Em sua obra de mesmo nome, Jonas defende que, diante do poder humano sobre a natureza, surge uma nova obrigação moral: agir de modo que as consequências de nossas ações sejam compatíveis com a continuidade da vida na Terra. Aplicado ao caso do Rio Belém, esse princípio nos convoca a compreender que o desenvolvimento urbano, sem o devido cuidado ambiental, é eticamente insustentável. O rio não é apenas um recurso natural, mas um ser que sustenta a vida humana e não humana. Assim, a responsabilidade ética implica repensar nossas escolhas e decisões públicas, levando em conta não apenas os interesses imediatos, mas também as futuras gerações. Ao analisar o cenário atual a partir desses princípios, nota-se que é essencial fortalecer a governança ambiental, garantindo que indústrias e empreendimentos urbanos sigam normas de saneamento e tratamento de resíduos, reduzindo a poluição. Devem ser implementadas ações integradas, como controle das fontes de poluição, recuperação da mata ciliar, drenagem sustentável das águas pluviais, conservação das áreas de inundação, gestão de resíduos sólidos, recomposição morfológica e biológica do rio, e a promoção da participação social. Além disso, é necessário investir em saneamento e acesso à água potável, com inclusão de programas de educação ambiental. Ainda, o reconhecimento de direito dos rios oferece mecanismos legais para proteger seu valor intrínseco. Esse reconhecimento jurídico dos rios como sujeitos de direitos surgiu como uma resposta inovadora à crise ambiental contemporânea. O primeiro caso emblemático ocorreu na Nova Zelândia (Rio Whanganui) em 2017, quando a legislação reconheceu o rio como uma entidade viva dotada de personalidade jurídica, representada por humanos guardiões. Esse reconhecimento vai além de um gesto simbólico: trata-se de uma tentativa concreta de reconectar a ética humana à natureza, superando o paradigma antropocêntrico e incorporando uma visão ecocêntrica, na qual o ambiente deixa de ser simples recurso e passa a ser considerado sujeito moral e jurídico. Essa abordagem, portanto, resgata uma relação de reciprocidade e respeito entre sociedade e natureza, reconhecendo que a vida humana depende da saúde dos ecossistemas. 

             Nós como futuras bioeticistas acreditamos que ao combinar essas medidas, a abordagem integra os interesses de todos. Assim, as comunidades ribeirinhas têm acesso à água potável e menor risco à saúde; os rios e ecossistemas aquáticos têm seus valores intrínsecos protegidos; e os setores econômicos podem organizar suas atividades de forma sustentável. A implementação requer diálogo contínuo entre governo, empresas e sociedade, promovendo um equilíbrio entre necessidades econômicas, sociais e ecológicas, de modo que todas as decisões considerem os interesses de todos os seres afetados. O Rio Belém, hoje silenciado pela poluição, pode se tornar um símbolo de renovação ética e ecológica. Dar-lhe voz é reconhecer o valor da água, da terra e da vida em todas as suas formas. É compreender que o futuro da humanidade depende da capacidade de ouvir o rio — e de agir com responsabilidade diante do seu clamor. Afinal, cuidar do rio é cuidar de nós mesmos.
 
Esse ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental, PPGB, tendo como base as obras:

BATTESTIN, Cláudia. GHIGGI, Gomercindo. O princípio responsabilidade de Hans Jonas: um princípio ético para os novos tempos. Thaumázein – Revista Online de Filosofia, v. 3, n. 6, p. 164, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/thaumazein/article/view/164/pdf. Acesso em: 11 nov. 2025.

BITTENCOURT, Vivian; FLORIT, Luciano Félix. Os rios como sujeitos de direito: uma nova jurisprudência para modelos de desenvolvimento não predatórios. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 16, n. 1, e288, 2025. DOI: 10.7213/rev.dir.econ.soc.v16i1.31094. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/direitoeconomico/article/view/31094/27161. Acesso em: 11 nov. 2025.

BOLLMANN, Harry, Alberto.; EDWIGES, Thiago. Avaliação da qualidade das águas do Rio Belém, Curitiba-PR, com o emprego de indicadores quantitativos e perceptivos. Engenharia Sanitaria e Ambiental, v. 13, n. 4, p. 443–452, out. 2008.

BOSSELMANN, Klaus; WILLIAMS, Timothy. The River as a Legal Person: The case of the Whanganui River in New Zealand. Heinrich-Böll-Stiftung, 29 Jan. 2025. Disponível em: <https://www.boell.de/en/2025/01/29/river-legal-person-case-whanganui-river-new-zealand\>. Acesso em: 11 nov. 2025.

OLIVEIRA, Anselmo Carvalho de. O princípio de igual consideração de interesses semelhantes na ética prática de Peter Singer. Barbaroi, Santa Cruz do Sul , n. 34, p. 210-225, jun. 2011.

SCHERWITZ, Débora Perilo. As visões antropocêntrica, biocêntrica e ecocêntrica do direito dos animais no Direito Ambiental. Revista Interfaces: Ensino, Pesquisa e Extensão, v. 14, n. 9, set. 2022. Disponível em: https://www.uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20220915125623.pdf. Acesso em: 11 nov. 2025.

SINGER, Peter, Ética Prática. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

Para ilustrar este ensaio, foi necessária a utilização de imagens geradas por ferramentas de Inteligência Artificial, que permitiram criar representações visuais dos rios mencionados, dos impactos ambientais e dos conceitos discutidos, enriquecendo a compreensão do leitor.

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