Por Marta Luciane Fischer
No dia 24 de novembro de 2025, vivemos uma experiência que pareceu atravessar três tempos simultaneamente — passado, presente e futuro — quando Potter do futuro, viajante vindo de 2080, chegou a Curitiba para nos alertar sobre a urgência de salvar o rio Belém e despertar as pessoas para o engajamento na missão de salvar esse Rio. Sua missão era clara: mobilizar pessoas, despertar consciência e convocar engajamento coletivo. Para isso, iniciamos juntos uma jornada pelas origens, pelos caminhos e pelas feridas do rio. Começamos pelo Parque Municipal Nascentes do Belém, um pequeno e precioso território de aproximadamente 11.178 m², localizado na Rua Rolando Salin Zappa Mansur, no bairro Cachoeira, nas coordenadas 25°21'10"S, 49°15'54"W (curitiba.pr.gov.br / wikimapia.org). Ali encontramos a placa inaugurada em 2001, registrada na imagem enviada, que nos lembrou que aquele é um território destinado à preservação e à educação ambiental. As palavras gravadas no bronze reforçavam um compromisso ancestral: “Que as águas que aqui brotam levem os princípios preservacionistas deste Norte até a sua foz, no Rio Iguaçu.”
Chegamos cedo e encontramos o parque parcialmente em reforma, mas ainda assim imerso em um silêncio raro: silêncio de ruídos humanos, mas cheio de vozes da floresta. O canto de pássaros, o farfalhar de insetos, a luz atravessando as copas. Havia plataformas de madeira elevadas sobre a mata — mirantes que nos permitiam observar o verde sem interferi-lo. Debaixo de um desses mezaninos encontramos a própria nascente: um pequeno lago de água límpida brotando do chão, repleto de girinos, insetos e vida em movimento. O sol surgia exatamente sobre a cabeceira, iluminando o primeiro gesto do rio naquele dia. Dali, a água seguia seu caminho lentamente, infiltrando-se ora sob a terra, ora correndo sobre ela, reunindo filetes vindos de todas as direções até formar um fio contínuo. Movidos por um impulso quase sagrado, seguimos esse filete até o Parque Barreirinha, extenso e silencioso, situado próximo à Avenida Anita Garibaldi, com cerca de 275 mil m² (turismo.curitiba.pr.gov.br).
O guarda-parque nos conduziu até um pequeno córrego que ele chamava de “rio seco” e mostrou uma fonte de água cristalina escondida entre a vegetação. Ali, assim como na nascente, sentimos a necessidade visceral de tocar a água gelada — como se ela nos pedisse presença. Carregávamos ainda a vibração da nascente; Marta havia mergulhado os pés naquele primeiro lago, conectando-se às raízes da água, e seguíamos caminhando com essa força pulsando na pele. Depois seguimos para o Parque São Lourenço, criado em 1972, nas coordenadas 25°23′S, 49°15′W, com um grande lago formado para conter enchentes do Belém (curitiba-parana.net). O contraste foi imediato: o parque estava cheio de pessoas caminhando, correndo, conversando ou apenas contemplando. Os lagos, porém, estavam em processo de drenagem para retirada do lodo acumulado.
O guarda-parque explicou como o rio se encorpa ali, como as águas se expandem, como a ilha central sustenta uma rica comunidade de aves. Era um trecho do Belém onde a vida ainda resistia teimosamente. Ali também encontramos um banheiro público e um bebedouro onde a água potável corria de uma torneira — outro gesto simbólico de convivência entre água urbana e água natural. Em seguida caminhamos até o Parque João Paulo II (Bosque do Papa), com suas centenas de araucárias e casas tradicionais polonesas (pt.wikipedia.org). Aqui o impacto foi profundo: o córrego antes livre agora era canalizado entre paredes de concreto.
Daquelas frestas laterais escorriam filetes suspeitos, indicando possível presença de esgoto. O Belém, que nascera límpido horas antes, seguia agora comprimido, encaixotado, forçado a atravessar a cidade por baixo do asfalto, recebendo descargas de outros rios igualmente adoecidos. Depois de desaparecer sob prédios, ruas e tubulações, emergia brevemente na região da rodoviária antes de seguir em direção à PUC-PR.
Quando chegamos à PUCPR, Potter não conteve mais a urgência. Reuniu estudantes, docentes e visitantes e relatou tudo o que havia visto: a nascente viva, o córrego seco, a contenção de concreto, o confinamento subterrâneo, o esgoto.
Suplicou por engajamento real. Pediu que todos respondessem a um questionário para fortalecer o movimento social que busca convencer parlamentares a reconhecer o rio Belém como cidadão curitibano e sujeito de direitos.
Estávamos acompanhados do graduando em Biologia Rapha Mota, da estudante do ensino médio Nayara Tortado, do graduando em Psicologia Julio Tozo e dos bolsistas PIBIC Jr. Sara e Peter. Juntos, seguimos até a floresta do Belém para uma atividade com os estudantes do 7º ano trazidos pelo professor Alex Silva e pela diretora Rosane Eugênia Paidoz, do Colégio Estadual Olindamir Merlin Claudino. Foi ali que realizamos um grupo focal baseado no roteiro oficial que havíamos preparado. Potter ficou muito triste com o que viu, um rio tão lindo, forte, imponente, quase sem vida, algumas sacuras insistem em viver ali, agora o casal já tem um bebê. Mas o lixo jogado lá em cima, se fixa nas margens que já possuem uma mata ciliar bonita e que pode sim comportar a vida.
Pedimos às crianças que respirassem fundo, ouvissem o rio, descrevessem sensações, imaginassem o Belém como pessoa, identificassem sinais de saúde e adoecimento, pensassem em direitos possíveis para o rio e projetassem futuros de cuidado ou abandono. Assim que chegamos à floresta, fomos tomados por um silêncio que não era vazio: era um silêncio cheio de vida, de água e de um chamado que parecia vir de muito longe — talvez do futuro, talvez da própria terra. Potter nos pediu que respirássemos fundo e que deixássemos o corpo entrar no tempo do bosque. O cheiro úmido da mata, a sombra das árvores, o murmúrio abafado da água correndo entre as pedras… tudo convidava para uma presença mais inteira. Ele disse que tínhamos em nós algo que o futuro precisava, algo que muitas pessoas haviam esquecido: a capacidade de escutar aquilo que quase ninguém mais escuta. Estávamos ali porque o Rio Belém estava pedindo ajuda — e Potter viera de outro tempo justamente para pedir que o ouvíssemos. Depois desse acolhimento, Potter nos orientou a fechar os olhos por um instante. Seu pedido era simples e profundo: “Ouçam o rio.” Nesse momento, o som da água se tornou mais nítido, como se tivesse se aproximado. Cada um de nós escutou de um jeito — alguns com os ouvidos, outros com o corpo, outros pela imaginação. Houve quem sentisse vibração nos pés, quem percebesse um sussurro, quem visse uma imagem. O silêncio coletivo, neste instante, era quase sagrado.
Com essa primeira conexão estabelecida, Potter passou a estimular nossa imaginação e sensibilidade. Ele perguntou: “O que o rio te disse?” As respostas surgiam tímidas no começo, mas logo formaram um coro de percepções: o rio estava cansado, triste em alguns trechos, esperançoso em outros. Para alguns, ele parecia pedir socorro; para outros, parecia pedir companhia. Houve quem dissesse que o rio parecia uma pessoa, e Potter então perguntou: “Se o rio fosse alguém, como ele estaria se sentindo agora?” As respostas variavam — adoecido, solitário, exausto — mas também houve percepções de força, de persistência, de vida resistindo.
Depois disso, Potter nos convidou a olhar para o rio não só como espírito, mas como parte da cidade e da vida. Ele perguntou se o rio estava vivo, morto ou doente. Perguntou quem sofre quando um rio adoece, e o grupo começou a perceber que não era apenas o rio: a floresta, os bichos, as pessoas, a própria cidade — tudo enfraquece quando a água perde sua vitalidade. Alguns jovens apontaram elementos do ambiente que mostravam saúde — o canto das aves, a sombra fresca, a diversidade da vegetação — e também os sinais de adoecimento — lixo acumulado, cheiro estranho em alguns pontos, água presa ou canalizada demais.
Foi então que Potter trouxe o tema central da bioética daquele encontro: os direitos dos rios. Ele contou que no futuro de onde vinha, alguns rios tinham conquistado direitos — eram reconhecidos como sujeitos. A reação foi de surpresa. As perguntas começaram a surgir. E Potter devolveu: “Um rio pode ter direitos?” A partir daí, o debate se tornou intenso. As crianças e adolescentes refletiram sobre quais direitos seriam justos — direito a correr livre, a não receber lixo, a existir sem ser violentado pelo concreto. Algumas falas eram tão lúcidas que estremeciam: “Se o rio está vivo, ele deveria ser tratado como vivo”; “Se a gente precisa dele, então ele precisa da gente também”. Após essa provocação ética, Potter pediu que imaginássemos o Rio Belém daqui a vinte anos. Primeiro, se nada fosse feito: as imagens eram duras — água cinza, cheiro forte, ausência de peixes, tristeza. Depois, Potter pediu que imaginássemos o contrário: como gostaríamos que o rio estivesse daqui a vinte anos? As respostas foram de esperança: água limpa correndo livre, trilhas revitalizadas, bichos voltando, pessoas caminhando com orgulho ao lado do rio.
Era como se estivéssemos abrindo, juntos, um portal de possibilidades. Com todas essas percepções reunidas, Potter nos guiou na construção de um pequeno mapa mental coletivo. Organizamos o que o rio disse, como está hoje, quais direitos deveria ter, o que mudaria se tivesse esses direitos e o que poderíamos fazer agora para protegê-lo. As palavras surgiam espontâneas, pulsavam no ar: cuidado, escuta, respeito, compromisso, futuro, vida. Para finalizar, Potter pediu que cada participante dissesse uma palavra ou mensagem final sobre o que havia aprendido. As falas eram simples e profundas: “esperança”, “responsabilidade”, “tristeza”, “força”, “vontade de ajudar”, “escuta”, “vida”. E então Potter encerrou com sua narrativa — dizendo que levaria nossas ideias para o futuro, pois talvez fossem exatamente elas que salvariam o Rio Belém. Ele agradeceu por termos escutado o rio e por termos escutado uns aos outros. Antes de partir, deixou seu último convite: continuarmos atentos ao que a natureza tenta dizer. Porque ela sempre está falando — oferecendo, pedindo, ensinando — e cabe a nós reaprender a ouvir. Enquanto conversávamos, no fim da tarde, as árvores começaram a derramar chuva de flores amarelas, como se a própria floresta participasse do diálogo. Sentados sobre ruínas antigas, partilhamos juntos aquilo que ouvimos, sentimos e acreditamos. Jovens de 12 e 13 anos ofereceram reflexões tão profundas que nos atravessaram. Era o rio-pessoa se relacionando com pessoas-rios.
Saímos desse encontro transformados e, como última reviravolta, Potter aceitou o desafio proposto pelo pastor e doutorando Kemuel Andrade, com apoio de Thierry Lummertz, de assumir a presidência do Clube da Água da PUCPR, uma liga acadêmica destinada a mobilizar estudantes de diferentes áreas para a construção de uma blue university, uma universidade enraizada no cuidado com a água. Assim, o dia 24 de novembro de 2025 tornou-se um marco inesquecível para nós: uma travessia ética, ecológica e afetiva que uniu ciência, comunidade, imaginação e futuro. Um movimento em que sentimos que 2025 já era um grande ano — e que 2026 prometia um horizonte ainda mais fecundo, guiado pela força de um rio que insiste em continuar vivo.
Repercussão internacional: The River That Called Us By Name - Blue Community
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