Por Marta Luciane Fischer
É preciso ter sonhos para viver? É preciso ter um propósito? A vida só vale a pena se for vivida? Se eu sou o rio e o rio sou eu, o que sinto ao entrar no rio é o mesmo que ele sente ao eu entrar nele? Há algum tempo, tenho pensado muito sobre esse entrelaçamento entre o que é ser e o que a água é. Se é possível encontrar uma relação entre o que sou e o que é a água. É impressionante como uma molécula tão simples representa a vida em multidimensões, e como observar a água atentamente pode, de alguma forma, nos ajudar a entender a nós mesmos e o sentido da vida. Num primeiro momento, pensei que Eu era o Rio, a água carregada de história, dores e amores, que passava por mim ativando processos bioquímicos que animavam meu corpo. Era Eu. Mas depois entendi que Eu não era a água em si, mas o Substrato que acolhia essa água enquanto ela passava por mim. Sim, eu sou a água, mas enquanto ela está acolhida pelo meu substrato, que é infinitamente menor que ela, mas cujos contornos, dureza, texturas e turbidez possibilitam que essa água se movimente mais rápido ou mais devagar, que seja mais cristalina ou escura, que comporte mais ou menos vida, que se demore mais ou menos por aqui. Tal como a água, o Substrato também é mutável, mas tem raízes, tem história, tem acúmulos e erosões que dão sentido ao rio. Então, ser rio não é apenas ser, há uma ação no moldar desse substrato que acolhe a água, há decisões sobre o que, como e onde acumular os detritos que vêm de um fluxo ancestral e experiencial. Há decisão em ser pedra, areia ou argila e impactar na expressão da água que por aqui passa. Mas essa água também impacta o substrato, pois, de onde vem, traz suas experiências. Ser rio é ser substrato raso e também profundo. O rio passa por cima, entra abaixo e acima do substrato. O rio passa liquefeito, congelado ou gasoso. O rio passa doce ou salgado. Às vezes, o rio pode ser represado e suas águas não seguem em uma única direção, mas se multiplicam em formas de expansão. Eu, ser que respira, também sou o rio que respira, contrai e expande as águas nas margens, mudando o contorno desse substrato e deixando-o, algumas vezes, irreconhecível. Há momentos em que estamos tão aptos a receber a água de outros rios que nos transformamos em um Mar, que também pode se moldar conforme substratos maiores, coletivos, que são rochas que aguentam a expressão turbulenta das águas ou areia que, no fluxo de agregar e desagregar, comporta o ritmo das águas. Posso ser rio, lago ou mar; superficial, subterrâneo ou voador. E tudo é tão simples em uma complexidade capaz de revelar, nas faces das águas, todas as faces da subjetividade humana. E tão perfeitamente composto, tal qual a sinfonia gerada no universo com os movimentos cósmicos. Na busca da nossa integridade e de um sentido para tudo o que sentimos, nos afastamos da resposta que está em e ao nosso redor. Seria eu um ser diferente se, apenas respirando, fosse aquele que procura um sentido para sua respiração? Será isso consequência dos trajetos dos nossos próprios substratos, que precisam colapsar para se reintegrar? Nosso início foi uma gotinha no oceano que abrigou poeiras de estrelas, permitindo que seus entrelaçamentos formassem tantas formas de vida que nem conseguimos contar. A memória desse momento é replicada milhões, bilhões, trilhões de vezes em um corpo que, assim como a gota de água, abriga inteligência e gera coletividade em meio à individualidade. Essa compreensão de que sou o substrato que respira e é Rio, não é uma excentricidade nem exclusividade. Trilhões antes de mim encontraram o sentido do seu Rio, até de uma forma mais genuína, pura e autêntica. Hoje, integro esse conjunto de seres que não querem apenas ser moléculas agregadas e movimentadas no fluxo entorpecente, mas que aceitam, sem vitimização, sentir o que o Rio sente quando é estagnado, quando é ferido pelas feridas de outros rios, quando é contaminado por sentimentos que não são seus, quando é explorado como um serviçal dedicado sem reconhecimento, quando é silenciado, ofuscado, injuriado e injustiçado por reagir à altura do dano que lhe é imposto. Hoje, me sinto mais humana porque me sinto mais rio, me sinto dolorida, mas menos solitária. E entendo que o sentido da vida é, sim, o sentido do Rio, mas que o Substrato que sou dá sentido a esse sentir.
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