segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O lugar onde o mundo sonha em nós



por Marta Luciane Fischer



Os sonhos sempre me intrigaram. Viver e lembrar dessa outra dimensão foi, durante muito tempo, um desafio para mim, embora houvesse algo profundamente intuitivo que insistia em dizer que ali existia uma mensagem a ser decifrada. Alguns sonhos eram assustadores, outros reveladores, outros acolhedores. Há um, em especial, que atravessou o tempo sem perder nitidez: eu tinha cerca de quatro anos e caminhava por uma vila, subindo uma rua de paralelepípedos, de mãos dadas com Jesus. A imagem permanece viva, não como lembrança difusa, mas como experiência plena, quase corporal. Por um período da vida, passei a retratar meus sonhos em desenhos e a refletir sobre eles; reverberavam por dias, semanas, às vezes meses. Mais recentemente, comecei a registrá-los em áudio e depois a passá-los para a escrita, como se fosse necessário atravessar conscientemente uma barreira entre o que chamo de consciente e inconsciente para que essa comunicação pudesse, de algum modo, me situar no mundo. Esse movimento despertou uma curiosidade mais ampla sobre o que são os sonhos, de onde vêm e por que, em certos contextos, parecem tão centrais, enquanto em outros se tornam quase irrelevantes. Do ponto de vista biológico, hoje sabemos que sonhar é uma função regular do cérebro humano, fortemente associada ao sono REM, embora também ocorra em outras fases do sono. Estudos clássicos e contemporâneos em neurociência demonstram que a produção de sonhos é automática e recorrente: quando indivíduos são privados de sono REM, ocorre posteriormente um rebote onírico, indicando que o cérebro preserva ativamente essa função mesmo sob condições adversas. Não há evidência de que populações modernas sonhem menos em termos neurofisiológicos; o que mudou foi a relação com o sonho e, sobretudo, a capacidade de lembrá-lo e elaborá-lo simbolicamente.
A distinção entre sonhar e lembrar do sonho é central. Sonhar é um processo contínuo; lembrar é um evento contingente, dependente da ativação coordenada de sistemas de memória episódica, linguagem e atenção, especialmente envolvendo o hipocampo e regiões do córtex pré-frontal. Durante o sono REM, essas áreas apresentam atividade reduzida, o que explica por que sonhos vívidos tendem a se dissipar rapidamente ao despertar. A recordação está fortemente associada a microdespertares espontâneos durante ou logo após o REM, algo cada vez mais raro em rotinas marcadas por alarmes, privação de sono, hiperconectividade digital, uso de álcool e psicofármacos. Assim, a sensação moderna de “não sonhar” decorre, em grande parte, da degradação da arquitetura do sono, amplamente documentada por estudos epidemiológicos e pela Organização Mundial da Saúde. Há, contudo, um componente cultural decisivo. Em sociedades modernas, os sonhos foram progressivamente privatizados, medicalizados ou descartados como irrelevantes. Fora de contextos terapêuticos específicos, raramente são compartilhados ou interpretados coletivamente. Mesmo a psicanálise, ao recolocar o sonho no centro da vida psíquica, restringiu sua leitura ao espaço clínico, desvinculando-o de uma função social mais ampla. Pesquisas em psicologia cultural mostram que, embora as pessoas continuem sonhando, tendem a classificar seus sonhos como “estranhos”, “sem sentido” ou “apenas coisa da mente”, refletindo um regime cultural que desautoriza o sonho como forma legítima de conhecimento. Onde o sonho não importa socialmente, ele não é lembrado; onde importa, ele é narrado, escutado e elaborado, como demonstram estudos transculturais com populações indígenas e tradicionais.
Esse deslocamento cultural também transformou o conteúdo e o sentido do que se chama “sonho”. Atualmente quando perguntamos a alguém qual é o seu sonho, geralmente é uma expectativa individualista, geralmente de difícil realização e envolvendo saciamento de necessidades materiais. É a mercantilização do sonho. Nas cosmologias antigas — egípcias, africanas, asiáticas e ameríndias — o sonho não era estruturado em torno do desejo individual ou de aspirações futuras. Sonhava-se com relações, advertências, alianças, doenças, guerras, territórios e responsabilidades. No Egito Antigo, por exemplo, os sonhos eram considerados mensagens objetivas enviadas pelos deuses e interpretadas por especialistas; manuais de oniromancia, como o Papiro Chester Beatty III, integravam sonho, medicina, política e religião em um mesmo sistema de conhecimento (Assmann, Death and Salvation in Ancient Egypt). Em muitas sociedades africanas, o sonho era espaço de encontro com ancestrais e divindades, orientando rituais, diagnósticos e decisões coletivas, sem a separação moderna entre subjetivo e objetivo (Mbiti, African Religions and Philosophy,). Nas tradições asiáticas, o sonho também ocupou lugar central. Na China clássica, textos como o Zhougong Jie Meng articulam o sonho à harmonia cosmológica do qi, enquanto o taoismo questiona radicalmente a fronteira entre vigília e sonho, como no célebre relato de Zhuangzi que sonha ser uma borboleta. Na Índia, os sonhos aparecem nos Vedas e nos Upanishads como um dos estados fundamentais da consciência, essenciais para compreender a natureza do eu e a ilusão do mundo fenomênico, mais ligados ao conhecimento e à libertação do que à previsão do futuro.
Entre povos ameríndios, essa concepção relacional do sonho atinge talvez sua expressão mais radical. Em muitas cosmologias indígenas das Américas, o sonho é uma experiência ontologicamente real, na qual a alma se desloca e entra em relação com espíritos, animais-pessoa, ancestrais e entidades territoriais. Entre os Achuar, sonhar é literalmente ver e escutar outros seres em um plano contínuo ao da vigília, orientando decisões práticas como caça, cura e guerra. Eduardo Viveiros de Castro descreve o sonho como trânsito perspectivista, no qual o sonhador pode assumir o ponto de vista de outros seres, o que exige cuidados rituais e validação coletiva (A inconstância da alma selvagem). Entre povos norte-americanos, como os Ojibwa, os sonhos-visão estruturavam pactos éticos duradouros entre humanos e espíritos guardiões, moldando a própria pessoa ao longo da vida (Hallowell, Ojibwa Ontology). De forma transversal, os sonhos ancestrais indígenas articulavam três dimensões fundamentais: epistemológica, ao produzirem conhecimento legítimo sobre o mundo; ontológica, ao revelarem a continuidade entre os planos visível e invisível; e ética, ao orientarem condutas, alianças e cuidados com o território. Diferentemente das leituras psicanalíticas modernas, que tendem a reduzir o sonho à expressão simbólica do inconsciente individual, as cosmologias indígenas compreendem o sonho como evento relacional, situado e politicamente relevante, inserido em redes de reciprocidade entre humanos, ancestrais e não humanos.
Essa concepção permanece viva em muitas comunidades contemporâneas e tem sido reconhecida, inclusive, como um desafio epistemológico às ciências modernas, ao propor outras formas de produção de conhecimento e de relação com o real, como discutido por autores ligados à antropologia da ontologia e à etnopsicologia indígena (Kopenawa & Albert, A queda do céu). O contraste com a modernidade é profundo. A partir do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução Científica, experiências não replicáveis como os sonhos tornaram-se epistemologicamente suspeitas. O sonho foi progressivamente confinado ao domínio da mente, da imaginação ou da patologia, primeiro pela filosofia moderna, depois pela psicologia e pelas neurociências. Não se trata de negar o valor dessas abordagens, mas de reconhecer que elas produziram um empobrecimento da autoridade pública do sonho, transformando-o em experiência privada, sem relevância ética ou coletiva. Como mostram autores como Walter Benjamin e Bruno Latour, esse processo revela menos um avanço natural da razão e mais a imposição histórica de um regime específico de conhecimento, que separa sujeito e mundo, fato e valor, humano e não humano (O narrador e Jamais fomos modernos,). Talvez retomar a escuta dos sonhos, como experiência biológica, cultural e ética, seja também um gesto bioético cotidiano. Não no sentido de romantizá-los ou absolutizá-los, mas de reconhecer que eles expressam modos de relação com o mundo que a modernidade tentou silenciar. Sonhar continua sendo universal; lembrar, narrar e atribuir sentido ao sonho é uma escolha histórica e cultural. E essa escolha diz muito sobre como concebemos a nós mesmos, o conhecimento e as formas legítimas de habitar o mundo.

 


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