Alexander Fuscolin Soares
Enfermeiro. Mestrando em Bioética
Vanessa Sajnaj Ferreira
Psicóloga. Mestranda em Bioética
Apesar de sempre termos vivido próximo das águas, desde as civilizações mais antigas, pouco aprendemos sobre a fala dos rios, como nos diz o filósofo e líder indígena Ailton Krenak. Perplexo com a capacidade dos seres humanos de considerarem alguns rios sagrados enquanto depredam outros, ele nos alerta sobre o desrespeito em relação às águas e destaca a necessidade de uma mudança de rumo. O rio Belém, que atravessa diversos bairros de Curitiba, incluindo parques como o São Lourenço e o Passeio Público, é um dos que sofreu devastação. Atingido pela urbanização, ao longo dos anos teve suas margens ocupadas, suas águas contaminadas e foi perdendo sua vegetação nativa. Quem reside no município ou transita por ele provavelmente já observou partes mais poluídas e outras mais limpas. Em uma pesquisa realizada pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Paraná, foi identificada a presença de diversos poluentes no rio Belém. Foi constatado também que a qualidade de suas águas se manteve poluída ao longo dos anos, de 2010 a 2017, sendo um dos rios mais poluídos de Curitiba. Algumas consequências da poluição são a degradação do solo, enchentes e inundações, que ocorrem com frequência em alguns bairros e comunidades, como na Vila Torres.
Não raro escutamos expressões como “Cidade Verde” ou “Cidade Ecológica”, em referência a espaços urbanos projetados e construídos levando em consideração a preservação de recursos ambientais e econômicos, visando à qualidade de vida dos habitantes. Curitiba, inclusive, é considerada uma cidade verde, tendo sido denominada a Capital Ecológica. Alguns exemplos de projetos voltados à sustentabilidade são a criação de reservas particulares do patrimônio natural, a distribuição de mudas de árvores para plantio e a coleta seletiva – se você mora no município, certamente lembra da Família Folhas e do jingle “lixo que não é lixo, não vai para o lixo, se-pa-re”, tão conhecido pelos curitibanos e curitibanas. Apesar disso, os problemas associados ao rio Belém, que envolvem o desrespeito às suas águas e respectivas consequências, persistem ao longo dos anos, a despeito das ações que foram realizadas e melhorias que possam ter ocorrido. As pessoas mais atingidas por essas consequências são as que se encontram em maior condição de vulnerabilidade social, residem em locais com infraestrutura precária e têm dificuldade de acesso a serviços e a outros espaços. Diante desse cenário, é válido nos perguntarmos de que forma nós, incluindo as gerações atuais e passadas, nos relacionamos com o Belém. Parafraseando Krenak, o que esse rio está nos comunicando? Como proporcionar a biofilia, uma conexão harmônica e compassiva com o meio ambiente, em uma cidade urbanizada como Curitiba e transformar nossa relação com o rio Belém?
O teólogo brasileiro Leonardo Boff nos explica que há uma relação de interdependência e complementariedade entre seres humanos e outras formas de vida, como as plantas e animais. Dentre esses, só o humano possui uma dimensão ética, devendo, assim, ser o cuidador e guardião de seu habitat. Esse cuidado consiste em uma relação amorosa, não agressiva e nasce do envolvimento e preocupação com o destino das outras vidas, para além da minha própria. Os rios, embora não sejam sencientes e não contenham células e outras estruturas presentes em diversos organismos, são entidades vivas: nascem, se desenvolvem, acompanham e atravessam gerações. Sendo vivos, podem morrer. Mortos, produzirão impactos nas demais formas de vida: na vegetação, nos peixes e nas pessoas. Na Declaração Universal dos Direitos dos Rios, estão estipulados seis direitos principais: fluir, desempenhar funções essenciais dentro de seu ecossistema, estar livre de poluição, alimentar-se e ser alimentado por aquíferos sustentáveis, ter biodiversidade nativa, poder regenerar-se e ser restaurado. Esses direitos servem para a proteção dos rios ou, em outras palavras, para a manutenção de suas vidas. Quais desses direitos estão sendo assegurados ao Belém e quais estão sendo violados? Estamos nós, de modo ativo ou passivo, contribuindo para a morte desse rio, coibindo-lhe a possibilidade de existir?
Boff nos diz que o cuidado pode ser entendido de duas formas: como adjetivo e como substantivo. O cuidado como adjetivo é algo associado a alguma ação, sem, porém, implicar em uma mudança na maneira de relacionar-se com o ambiente. Um exemplo seria a produção de carros com menos poluentes, de modo circunstancial. O cuidado como substantivo, por sua vez, diz respeito justamente a uma conexão, uma transformação, em que o cuidar se torna um imperativo. Nessa última forma, a natureza é considerada um organismo vivo, dotada de valor. Assim, é preciso considerar que os rios têm um valor inerente, o qual independe de circunstâncias externas, como sua utilidade ou inutilidade aos interesses dos seres humanos. O filósofo Tom Regan afirmou que há os sujeitos-de-sua-vida, que compõem a comunidade moral, e os sujeitos-de-uma-vida, que podem sofrer danos, estando em condição de vulnerabilidade. Os primeiros têm deveres morais de beneficência e não maleficência em relação aos últimos. Diante disso, é necessário pensarmos em quais deveres nós, agentes morais, temos em relação aos rios, que estão suscetíveis às nossas ações. Quais os caminhos possíveis para que transformemos nossa relação com o rio Belém, passando do cuidado como adjetivo para o cuidado como substantivo? Reconhecer o valor inerente a ele parece ser o primeiro passo. Esse reconhecimento não se dá de forma abrupta, tampouco isoladamente. É necessário que haja proximidade, envolvimento – como recomendou Boff.
O rio Belém é conhecido pelos problemas que acarreta: enchentes e inundações, mau cheiro devido às ligações de esgoto clandestinas e impacto na paisagem urbana em razão da poluição. Seria possível expandirmos nosso olhar sobre os atributos desse rio? Em documentário exibido pelo programa televisivo Plug, da Rede Paranaense de Comunicação, um morador da Vila Torres, comunidade na qual se encontra um trecho bastante poluído do Belém, comentou que nadava nesse rio, décadas atrás, quando o mesmo ainda era limpo. Foi encontrado também um cardume de bagres em uma parte canalizada. O Belém, assim, comporta vida, memórias e histórias. Os rios são importantes elementos da cultura e da economia, além de cumprirem funções dentro do ecossistema, para a fauna e para a flora. Como afirma Krenak, sabiamente, há pessoas que pensam que se vive apenas em terra firme e desconhecem a completude que se pode encontrar nas águas.
Ora, sabemos que modificar nossas relações interpessoais, em nosso dia a dia, não é tarefa fácil. E por que seria diferente com outras formas de vida, com o meio ambiente, com os rios? A existência de adversidades, porém, não significa que não devemos nos esforçar para fazê-lo. Talvez um dos maiores desafios seja a manutenção de comportamentos em prol da vida dos rios a longo prazo. E, para isso, há que se olhar para a comunidade que vive ao redor deles, uma vez que esta influencia e é influenciada pelo ambiente. Qual é a relação dos moradores dessas comunidades com o rio Belém? Quais suas percepções acerca do local em que residem? Que impactos sofrem e ocasionam? A transmissão de informações visando à sensibilização e à conscientização também é uma medida necessária. Há que se escutar a voz dos rios, conforme recomendou Krenak, estar sensível aos problemas ambientais que ocorrem, bem como às respectivas causas e agravantes envolvidos. É importante, porém, que essa sensibilidade não se traduza em uma percepção passiva, mas se converta em atitudes de mobilização.
Nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que é possível a construção de uma nova forma de relação com o rio Belém, biofílica e pautada no cuidado como substantivo. Para isso, é fundamental a participação de diversos atores sociais: comunidades locais, governos e instituições, Organizações Não Governamentais e cientistas, em suas diferentes vertentes de atuação. Decerto que pessoas em maior condição de vulnerabilidade que dispõem de poucos recursos podem ter condições restritas de intervir no ambiente em que vivem, especialmente em circunstâncias em que estejam sofrendo prejuízos decorrentes de problemas como as enchentes e inundações. Todavia, é importante que haja o envolvimento do máximo de pessoas possível, em suas diferentes possibilidades. E, sem dúvida, estudantes e profissionais da Bioética devem participar, dialogando e deliberando, propondo e empreendendo ações em prol de uma relação ética com o rio Belém. Lançando mão das palavras de Geraldo Vandré, declamadas em sua canção Pra não dizer que não falei das flores, inspiração para o título do presente texto: Vem, vamos embora, que esperar não é saber!
O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR tendo como base as obras:
BOFF, Leonardo. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
FELIPE, Sônia T. Valor Inerente e Vulnerabilidade. Critérios éticos não especistas na perspectiva de Tom Regan. Ethic@. Florianópolis, v. 5, n. 3, p. 125-146, Jul. 2006.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
A imagem que acompanha o presente texto foi gerada pela ferramenta de Inteligência Artificial Gemini.
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