As queimadas e as feridas na Terra

Por Alex Aparecido Da Silva, Ariél Philippi Machado, Filipe Azoia, Acir Franco,  


No dia 25 de julho de 2023, a página da CNN Brasil veiculou uma notícia a respeito da ocorrência de queimadas em território brasileiro, apontando que embora o número total de focos tenha apresentado uma discreta diminuição em relação ao ano de 2022, a região da Amazônia sofreu um grande aumento no número de casos.
Sendo o Brasil um país extremamente abundante em áreas florestais, dentre elas, o bioma amazônico, a principal floresta tropical do mundo, as queimadas representam a mais séria ameaça ambiental enfrentada em nosso território, somando aproximadamente 71 milhões de hectares de vegetação já perdidonas últimas três décadas1. Depois da Amazônia, outro bioma brasileiro que padece com as queimadas é o Cerrado. De acordo com o WWF-Brasil, aumentou em mais de 20% os focos de queimada neste bioma, que ainda carece de um plano estratégico de contenção.
Diante destes fatos, para além da grave perda de biodiversidade decorrente dessas queimadas, questiona-se a dignidade humana na medida em que essa prática viola o princípio de fidelidade à vida, que rompemos ao favorecer tantos focos de incêndio que destroem a vida presente nas florestas. Da ação deliberada de queimar territórios, entra em cena outro tema, qual seja, o evidente desregramento das estações do ano, como consequência das mudanças climáticas.
As queimadas, atreladas ao corte de florestas, aumentam a concentração de gases do efeito estufa que, ao ser intensificado, superaquece a Terra, mudando seu clima e caracterizando o que conhecemos como Aquecimento Global. Embora a técnica de queimada controlada, ação extremamente antiga utilizada desde que o homem deixou de ser essencialmente coletor e passou a cultivar seu alimento, sua prática indiscriminada causa um grande problema de cunho ambienta2.
O problema ambiental decorrente de queimadas e de corte de florestas envolve, sistematicamente, outras áreas da vivência humana, englobando nesta problemática os aspectos sociológicos, antropológicos, filosóficos, psicológicos etc., configurando as queimadas como fenômenos de demanda multi e interdisciplinar, cuja consequência mais ampla, vale reiterar, é a mudança das condições climáticas globais.
As alterações no clima global estão ligadas diretamente ao desmatamento das florestas em prol da transformação do ambiente em sistemas agrícolas bem como pastagens, o que implica em mudanças no ciclo do carbono, que se desprende para a atmosfera na forma de gás carbônico, contribuindo para o aquecimento global3.
As queimadas podem ser classificadas de dois modos. As queimadas naturais, que ocorrem sem a intervenção do homem e em decorrência de fatores climáticos específicos, e em queimadas antropogênicas, causadas por atividade humana seja ela criminosa ou por negligência2. Esta última é a que vem causando maior preocupação aos órgãos ambientais atualmente. Essa preocupação reflete uma tentativa de resguardo do princípio de fidelidade de que a confiança estabelecida não deve ser quebrada e todo malfeito deve ser restituído. Tendo em vista que, caracterizar queimadas como crime, consiste na responsabilização do infrator por um ato de violação aos direitos de outrem.
O princípio de fidelidade é dado quando há interação equilibrada entre a ação humana e bem próprio da natureza e dos animais. As queimadas antropogênicas ferem este princípio, pois descaracterizam os ritmos de confiança nos espaços onde existe a atividade humana para além da moradia e subsistência.
As queimadas e os incêndios florestais representam o maior dano que se impõe aos ecossistemas e a sociedade, cujo crescente aumento de concentração do gás do efeito estufa indica o principal indutor de mudança do clima. Dados levantados pelo MapBiomas demonstraram que o número de queimadas caiu aproximadamente 1% no primeiro semestre de 2023, quando comparado ao mesmo período do ano passado, no entanto quando avaliamos sua ocorrência na floresta amazônica, em específico, estima-se que o número de focos cresceu em cerca de 14%4. A análise desses dados leva ao entendimento de que, nesse contexto, mesmo diante da possível imputabilidade do infrator, o princípio de fidelidade é inexistente, quando poderia ser explorado em políticas públicas de segurança, meio ambiente e educação, por exemplo, aos moldes da Bioética.
Na visão de Goodpaster, Regan e Taylor, a comunidade moral se amplia para abranger todos os seres, sendo os agentes morais e suas ações que afetam o entorno, que chamamos de pacientes morais.
São entendidos como pacientes por não poderem se proteger do impacto negativo das ações dos agentes morais, assumindo uma posição de vulnerabilidade, sujeitos às consequências das ações dos agentes morais em suas vidas5. Dando um exemplo: as queimadas de tipo antropogênicas revelam um agente moral que destrói um espaço de mata para uma finalidade estritamente lucrativa. São pacientes morais todo a biodiversidade presente na região queimada.
Como bioeticistas, nos cabe analisar por um viés multidisciplinar e interdisciplinar as relações instauradas entre a ação humana e as consequências ambientais decorrentes das queimadas, não só no que diz respeito à vegetação, mas também aos animais humanos e não humanos, pautadas em diversos princípios, dentre os quais, reiteramos aqui com ênfase, o princípio da fidelidade.

Em uma interpretação rasa, podemos acreditar que o princípio da fidelidade trata apenas da intenção do homem como ser social em não quebrar ou descumprir sua palavra ou uma promessa proferida ao próximo6; no entanto, se fizermos uma análise mais profunda, podemos verificar que o homem, como parte integrante do ambiente em que vive tem como dever inerente, demonstrar fidelidade não apenas aos demais humanos mas também aos animais não humanos, vegetais, bem como toda a rede ecossistêmica em que se encontra inserido.

De forma mais profunda, diz-se que a verdadeira fidelidade, em outras palavras, a felicidade consigo próprio, está em compreender as leis naturais, visando o respeito aos juramentos inatos aos homens como parte de um todo chamado Terra, de respeitar igualmente todas as formas de vida na finalidade de sustentar o equilíbrio necessário à existência no planeta3.

A agressão ao ambiente, por meio do fogo, motivado pela ganância e benefício próprio, como no caso das queimadas criminosas com objetivo de abrir novas áreas para cultivo e pastagens, seria então uma grave ofensa a tão bela promessa, que fazemos ao adentrar este mundo, não ao próximo, mas a nós mesmos como seres inter-relacionados, visto que não há uma ação realizada por nós que não reflita naqueles ao nosso redor e consequentemente em nós mesmos.

O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental, do Programa de Pós-graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, tendo por base as seguintes referências bibliográficas:



1. AGÊNCIA FAPESP (org.). Desmatamento e queimadas. 2019. Disponível em: http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Noticias&id=1829. Acesso em: 21 set. 2023.

2. TRAJANO, Núbia. Queimadas: o que são? 2020. Disponível em: http://jornaldapuc.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=12052&sid=29. Acesso em: 21 set. 2023.

3. NOBRE, Carlos A.; SAMPAIO, Gilvan; SALAZAR, Luis. Mudanças climáticas e Amazônia. Ciência e Cultura, v. 59, n. 3, p. 22-27, 2007. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252007000300012. Acesso em: 10 out. 2023

4. JORDÃO, Pedro. Queimadas caem 1% no Brasil, mas crescem 14% na Amazônia, diz MapBiomas. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/queimadas-caem-1-no-brasil-mas-crescem-14-na-amazonia-diz-mapbiomas/. Acesso em: 21 set. 2023.

5. FELIPE, Sônia T. Agência e paciência moral: razão e vulnerabilidade na constituição da comunidade moral. ethic@-An international Journal for Moral Philosophy, v. 6, n. 3, p. 69-82, 2007. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/24542/21801. Acesso em: 10 out. 2023

6 . ACADEMIA DE FILOSOFIA (org.). FIDELIDADE. 2021. Disponível em: https://academiadefilosofia.org/2021/06/19/fidelidade/#:~:text=1)Fidelidade%20no%20sentido%20mundano,%2C%20ainda%2C%20seguir%20um%20regulamento. Acesso em: 21 set. 2023.