As heranças da COVID19 para as futuras gerações


Série Ensaios: Bioética Ambiental

Ensaio sobre os impactos da pandemia COVID19 sobre a poluição e sua relação com o Princípio da Solidariedade.

por Christian Farias Trajano e Alan Figueira
médicos e mestrandos em Bioética



Planeta Terra News, ano 2220.

HERANÇA MALDITA
Dois séculos após a pandemia da COVID19 que assolou o mundo na segunda década do século 21, a sociedade ainda é atormentada pela herança maldita deixada por seus antepassados, despejada nos oceanos e em terra firme.

Será essa a manchete dos jornais no futuro? O título que provocou este ensaio foi publicado no caderno Technology News, do portal FirstPost em 11 de novembro de 2021, e nos lançou a reflexão sobre a relação entre a pandemia e o completo abandono da solidariedade, notadamente quando observamos a irresponsabilidade sobre a destinação dos resíduos sólidos, e os impactos ambientais que serão percebidos pelas próximas gerações.

A pandemia da COVID19 causou aumento agudo no uso de equipamentos de proteção individual como luvas e máscaras descartáveis, aumentando a carga sobre o já problemático sistema de gerenciamento dos resíduos sólidos em todo o mundo. Estima-se que 8,4 milhões de toneladas de lixo plástico adicionais foram geradas em 193 países durante os dois primeiros anos da pandemia, destes, 25.900 toneladas chegaram aos oceanos. Os cientistas responsáveis pelo estudo(1) apontam que em alguns anos, todo este lixo irá parar nas praias e no fundo dos oceanos. O impacto sobre a vida animal é reportado em todo o mundo (Fig.1).
Apesar da antipatia causada pelas imagens, pouco impacto se observou sobre as políticas de gerenciamento do lixo.
O tempo para a decomposição do plástico empregado na fabricação de luvas e máscaras pode chegar a 450 anos. Além do aumento da demanda durante a pandemia, países como os EUA, Canadá, Reino-Unido e Portugal revogaram temporariamente leis que baniam o uso de plásticos descartáveis de uso único. Está formada a tempestade perfeita: consumo indiscriminado patrocinado pelas medidas de contenção a pandemia, produção desentravada e destinação imprudente do lixo.


A sociedade assumiu uma postura de auto-preservação da espécie ou de irresponsabilidade egocêntrica(2) no enfrentamento da pandemia?
Garrafa e Soares(3) consideram a solidariedade a capacidade de apoiar o outro de modo desinteressado, incondicional, sem aguardar a reciprocidade da ação. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos(4) invoca a solidariedade a toda sociedade, com atenção especial para os vulnerados pelas doenças e as condições ambientais, não se limitando a estas situações de vulnerabilidade. Será tácito afirmar que são vulneráveis aqueles que, por ainda não existir, são incapazes de atuar em sua própria defesa ou em defesa do ambiente que garantirá sua existência.

A solidariedade intergeracional deve traduzir os vínculos solidários entre as gerações presentes e com as futuras(5) garantindo equidade de oportunidades entre as gerações passadas, futuras e a geração presente. Devemos garantir que as gerações que nos sucederão possuam a mesma diversidade de opções quanto aos recursos naturais. Que esses recursos possuam qualidade superior ou minimamente semelhante aos que dispomos atualmente, e que sejam acessíveis no futuro como nos são franqueados nos dias atuais(6).

Em outro contexto, Hans Jonas alertou sobre a crise ambiental que assolaria o planeta, fruto de uma exploração inconsequente dos recursos naturais, e nos convocou a agir de forma a não expor ao perigo as condições de sobrevivência do homem, consolidado no Princípio da Responsabilidade(7). Há de se observar uma ética responsável no trato dos problemas da atualidade, sobreviver hoje ao COVID não pode ser somente o adiamento da extinção da vida.

No futuro, em 2220, seremos os responsáveis pela poluição de praias e oceanos, e de forma dolosa, pois já reunimos conhecimento suficiente que nos permita compreender completamente o problema causado pela poluição.

A “manchete” de 2220 em suas considerações finais irá parafrasear Peter Singer: “Nossos antepassados agiram de forma a permitir a morte de diversas espécies e recursos naturais. Se permitir que alguém morra não é intrinsecamente diferente de matar alguém, fica a impressão de que somos frutos de uma geração de assassinos.”


Como futuros bioeticistas acreditamos que a tomada de decisão no enfrentamento desta ou de outras catástrofes que assolem a humanidade deverá partir de uma abordagem biocêntrica. O respeito ao ecossistema que o homem compartilha com as demais espécies, é primordial para que a preservação da espécie humana na atualidade não declare a extinção de outras espécies no presente, bem como não comprometam a vida no futuro.
A decisão colegiada e transdisciplinar é a forma mais transparente para a abordagem do problema. Não existirá uma resposta acertiva, pois muitos conhecimentos acerca desta pandemia ainda nos carecem. Mas sabemos o suficiente para agir de forma solidária aos nossos contemporâneos e às gerações vindouras.



O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental, do Mestrado em Bioética, do PPGB da PUCPR, em fevereiro de 2022, tendo como base as obras:

1. Peng Y, Wu P, Schartup AT, Zhang Y. Plastic waste release caused by COVID-19 and its fate in the global ocean. Proceedings of the National Academy of Sciences [Internet]. 2021 Nov 23;118–47. Available from: https://doi.org/10.1073/pnas.2111530118

2. Tomasini F. Solidarity in the Time of COVID-19? Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics. 2021 Apr 1;30(2):234–47.

3. Garrafa V, Soares SP. O princípio da solidariedade e cooperação na perspectiva bioética. Vol. 7, Revista-Centro Universitário São Camilo. 2013.

4. UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: ONU; Oct 19, 2005 p. 1–13. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf

5. ONU. Declaração de Estocolmo [Internet]. Estocolmo: United Nations; Jun 6, 1972. Available from: https://cetesb.sp.gov.br/posgraduacao/wp-content/uploads/sites/33/2016/09/Declara%C3%A7%C3%A3o-de-Estocolmo-5-16-de-junho-de-1972-Declara%C3%A7%C3%A3o-da-Confer%C3%AAncia-da-ONU-no-Ambiente-Humano.pdf

6. Weiss EB. Climate Change, Intergenerational Equity, and International Law. Vermont Journal of Environmental Law [Internet]. 2008;9:615-Olá 627. Available from: http://scholarship.law.georgetown.edu/facpub/1625http://ssrn.com/abstract=2734420http://scholarship.law.georgetown.edu/facpub

7. Battestin C, Ghiggi G. O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS: UM PRINCÍPIO ÉTICO PARA OS NOVOS TEMPOS. Thaumazein [Internet]. 2010 Oct;6:69–85. Available from: http://sites.unifra.br/thaumazein