Série Ensaios: Bioética Ambiental
Por Caroline de Barros Rodrigues
A fim de compreender melhor sobre os morcegos e um pouco mais sobre sua possível relação com a transmissão do COVID-19, entrevistamos o biólogo mestre e doutor em ecologia e conservação e especialista em morcegos Itiberê Piaia Bernardi. Acompanhe a entrevista abaixo:
Qual a importância dos morcegos para o ecossistema?
- “A maior parte dos morcegos do mundo tem hábito alimentar insetívoro, então atuam intensamente no controle de populações de insetos. Algumas grandes colônias de morcegos consomem algumas toneladas de insetos por noite, consomem muitos insetos mesmo, inclusive várias mariposas que são de lagartas de pragas de lavoura. Alguns estados dos Estados Unidos que adotaram programas para conservação de morcegos insetívoros economizam por ano na casa de alguns bilhões de dólares usando menos defensores químicos, economizando com veneno. Sem contar que nós temos os morcegos frugívoros, que se alimentam de frutos e aí dispersam essas sementes longe da planta mãe, então atuam como plantadores de floresta, são regeneradores de área degradada. Temos os morcegos polinizadores (nectarívoros), só para a Amazônia brasileira por exemplo são conhecidas mais de 300 espécies de plantas que só são polinizadas por morcegos, dependem de morcegos nos seus ciclos reprodutivos. O caso mais emblemático de morcegos polinizadores seria no México, que é um morcego que está envolvido em um ciclo econômico muito importante no México que é a tequila. O agave, do qual é produzido a tequila só é polinizado por uma espécie de morcego beija flor, então se desaparecer esse morcego quebra um ciclo econômico gigantesco em volta da tequila.”
- “Os morcegos na América do Sul chegam a compor 50% da riqueza e da abundância de espécies de mamíferos nas comunidades, então são um componente muito grande em termos de biomassa e de serviços ecossistêmicos.”
Qual o impacto causado pela morte ou a redução da população de morcegos?
- “A perda da diversidade por si só já é um grande problema, perder espécies, uma espécie extinta não tem como ser trazida de volta, seu papel ecológico não tem como ser reposto, e a perda de dispersores de sementes, polinizadores e controladores de insetos pode trazer prejuízos econômicos incalculáveis. Na década de 70 um programa de controle da raiva de herbívoros e de controle de morcegos hematófagos muito mal conduzido no Caribe levou a uma crise econômica absurda porque acabaram com os polinizadores das espécies frutíferas produzidas pelo Caribe, então eles entraram em uma crise econômica muito grande porque perderam os polinizadores das plantas que produziam os frutos que mantem a economia do Caribe.”
Seriam os morcegos realmente os culpados pela transmissão do vírus?
- “Não, até o momento nenhum estudo comprovou que o novo coronavírus pertença a uma cepa oriunda de morcegos. Essa associação foi feita pelo seguinte: morcegos são naturalmente reservatórios de muitos vírus, só de alfa e beta coronavírus são mais ou menos 2700 conhecidos em morcegos. Os morcegos têm uma resistência absurda aos coronavírus. Eles também são reservatórios de outros tipos de vírus dos quais eles não são imunes, por exemplo o vírus rábico. Eles portam ainda vírus de hantavirose e uma serie de outro vírus, mas a prevalência desses vírus, tanto do alfa e beta coronavírus como desses outros vírus em morcegos é tão grande quanto em qualquer outro mamífero, então atribuir a culpa do coronavírus aos morcegos é um tanto quanto leviana visto que a análise do genoma do novo coronavírus com a análise do genoma de coronavírus de morcegos do gênero Hipposideros lá da China revelou uma similaridade de 96% (similaridade genômica). Nós temos mais de 98% da nossa genética compartilhada com chimpanzés, e quando você olha para um humano e para um chimpanzé você não diz que eles são iguais, então dizer que 96% de similaridade seja uma prova de que sim, o novo coronavírus veio dos morcegos é uma especulação. Suspeita-se que pode ter havido esse spillover, esse salto na barreira das espécies, mas as análises genéticas mostram que se foi de um morcego que saiu o coronavírus, isso deve ter acontecido entre 40 e 70 anos atrás e foi passando por diversas espécies até chegar ao coronavírus que causa o COVID-19.”
Mesmo se fossem, os morcegos do Peru e outras regiões carregariam o mesmo vírus?
- “Não. Os morcegos do Peru e os morcegos de vários outros lugares carregam vários tipos de coronavírus, mas não foi identificado esse coronavírus que causa o COVID em nenhuma espécie silvestre até agora. Não tem, o que há é especulação sobre o assunto, dado o fato de serem reservatórios naturais de muitos tipos de coronavírus.”
Fomos informados que o Ibama recentemente interrompeu as pesquisas com morcegos no Brasil. Isso é verdade? Caso seja, você poderia falar um pouco sobre o impacto causado por esta decisão?
- “Não, o Ibama não proibiu as atividades. Novas licenças solicitadas, novas autorizações de pesquisa vêm com uma observação de que o pesquisador só realizará a atividade de campo quando passar a pandemia, mas isso relacionado as normas de distanciamento social e de isolamento, e não necessariamente do trabalho com os morcegos. Então não há uma proibição para se trabalhar com morcegos, há uma recomendação de que o pesquisador respeite os órgãos de saúde no que diz respeito a quarentena, isolamento, não sair de casa e tal. A Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros lançou um protocolo de biossegurança e boas práticas durante a pandemia, instituindo então um protocolo de atividades, dizendo como deve ser feita a higienização dos equipamentos, o tipo de mascara com respiradores de nível P3 para agentes biológicos, a substituição de luvas e aventais, quais devem ser os procedimentos... mas são recomendações, não há nenhum dispositivo legal em relação a isso.”
- “A possível confusão gerada em relação ao Ibama ter proibido ou não é que o ICMBio, que é o órgão do governo responsável pelas unidades de conservação federais e alguns órgãos estaduais responsáveis por unidades de conservação como aqui no Paraná o Instituto Água e Terra, o ex IAP, fecharam as unidades de conservação por tempo indeterminado enquanto durar a pandemia. Então os projetos, TCC, dissertações de mestrado e teses de doutorado que são realizadas nessas áreas tiveram que ser interrompidas, mas essa foi a interrupção, não foi a interrupção em relação ao trabalho com morcegos, foi o fechamento das unidades de conservação.”
Comentários adicionais do entrevistado:
- “Para complementar, não é só no Peru que iniciou uma morte indiscriminada de morcegos. Nós temos fortes evidências de que muitas colônias mesmo dentro de Curitiba passaram a ser desalojadas de maneira inadequada. Existem métodos para desalojar morcegos de residências. Morcegos são protegidos por lei, são fauna silvestre. Empresas de dedetização, desratização e tal não podem, são proibidas de fazer remoção de morcegos. A gente acompanha os dados da secretaria de saúde, que recebe morcegos doentes que acabam adentrando residências ou são encontrados em comportamento atípico. Um morcego encontrado durante o dia pendurado em um muro não é um comportamento típico então já se suspeita que esteja doente. É super comum surgirem morcegos doentes, morcegos que são positivos para o vírus rábico ou para doenças até que a gente nem conhece ainda, mas esse ano especialmente aumentou muito o numero de morcegos recebidos na saúde, morcegos saudáveis, que entraram nas residências ou que foram desalojados de seus abrigos de maneira incorreta, então acabaram se perdendo e foram parar dentro de residências. Isso é uma forte evidencia de que não só no Peru mas provavelmente no mundo todo os morcegos estão sendo mortos de uma maneira indiscriminada, e isso é um prejuízo muito grande porque, veja bem, são quase 3000 tipos de coronavírus que os morcegos carregam, e eles não são afetados por esses coronavírus, então estudar as capacidades, as condições de imunidade desses morcegos pode nos dar grandes pistas no rumo de uma vacina ou de uma medicação. Ao contrário de se exterminar os morcegos deveria se dar mais atenção, e usá-los como modelo de alguém que possui muitos tipos de coronavírus e não é afetado. Isso pode ajudar a compreender a nossa biologia e as nossas reações biológicas em relação ao coronavírus.”
Entrevista realizada via WhatsApp no dia 12/08.
Uso de imagem e publicação da entrevista autorizados pelo entrevistado.
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