Refugiados e a Pandemia



Série Ensaios: Bioética Ambiental
Por Lucas Guimarães Pieri
Especialista em Direito Civil e Mestrando em Bioética

Não é de hoje que o alto fluxo de imigrantes refugiados preocupa a comunidade internacional. Somente no Brasil, mais 11 (onze) mil pessoas são reconhecidas como refugiados. Alguns desses vivem em campos e abrigos temporários para refugiados nas regiões de fronteira. Tantos outros, que já se interiorizaram acabam encontrando situações desfavoráveis, barreira linguística, e preconceito, que termina por relegá-los a viver em comunidades pobres com não muito mais estrutura do que encontravam nos campos e abrigos temporários. Sucede que, a situação já preocupante, torna-se ainda mais grave, podendo atingir patamares catastróficos diante da atual crise sanitária causado pela pandemia de coronavírus. É certo que a pandemia está mudando nossas vidas, e a forma como a sociedade se enxerga de uma maneira sem precedentes, porém, infelizmente, mesmo tendo se tornado o foco das atenções mundiais, as guerras, catástrofes climáticas e perseguições políticas, não cessaram em virtude da Covid-19. Assim, independentemente da pandemia, os fluxos e deslocamentos de refugiados continuam a ocorrer, e em alguns casos se intensificaram. A imensa maioria dos imigrantes refugiados terminam em campos e abrigos temporários, onde há escassez de água potável, estrutura sanitária básica, sem serviços de higiene, expostos ao calor, frio, umidade, estresse e fadigas extremos. Para piorar ainda mais a situação, em razão das medidas de controle e prevenção ao contágio, diversos países vem adotando medidas de fechamento de fronteiras e restrição de circulação. Nesses casos, os refugiados que deixaram sua terra de origem, buscando melhores condições acabam por não ter aonde chegar, sendo obrigados a ficarem pelo caminho, ou retornar para sua origem em condições ainda piores. A título de exemplo, a Itália, que já há décadas enfrenta desafios em relação ao acolhimento de refugiados, e que se intensificaram a partir da grave crise humanitária de 2015, em razão da COVID-19 entendeu que seus portos não estão seguros, e poderiam ser porta de entrada para o alastramento do vírus. Assim, decretaram-se medidas extremamente restritivas, e em especial proibiu-se o atracamento de barcos de Resgate de Refugiados e ajuda humanitária. De fato, a situação é grave. Talvez, os refugiados sejam, no momento, a população de maior vulnerabilidade diante de toda essa crise. Nesse sentido, é necessário que os governos tenham em mente que, medidas de controle e prevenção ao contágio restritivas devem ser tomadas, mas que essas não revogam ou suspendem os direitos de imigrantes e refugiados. Sobre isso, aliás, tanto a legislação pátria, quanto tratados internacionais e regulamentações de organismos supranacionais garante a plena igualdade aos imigrantes refugiados e aos nacionais, vedam a deportação em massa, e estabelecem proteções específicas aos refugiados, justamente por reconhecer sua extrema vulnerabilidade. A Bioética como ciência multidisciplinar, afeita a discutir os mais variados aspectos da vida humana, também pode apresentar soluções e fundamentar a existência de garantias na busca por preservar a dignidade dos indivíduos mais vulneráveis, os refugiados, em tempos de tão profunda crise. A Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (DUBDH – Unesco – 2005) da Unesco, tida como paradigma para todos os temas relacionados a bioética, e tem como um de seus objetivos estabelecer bases e princípios para procedimentos que orientem os Estados na formulação de políticas públicas, legislação, e demais instrumentos em matéria de bioética, estabelece que “ Os Estados devem respeitar e promover a solidariedade entre si e também com e entre os indivíduos, as famílias, os grupos e comunidades, em especial com aqueles a quem a doença ou a deficiência, ou outros factores pessoais, sociais ou ambientais tornam vulneráveis, e aos de recursos mais limitados.” (UNESCO, 2005). Ou seja, espera-se que os Estados estabeleçam relação de suporte mútuo, especialmente no amparo às populações mais vulneráveis e que detenham recursos mais limitados.
Portanto, é imperioso que a DUBDH seja tomada por base pelos Estados para a elaboração de medidas de combate e prevenção ao contágio ao coronavírus, para que empreguem especial atenção aos refugiados. Ademais, a DUBDH estabelece como princípios a dignidade da pessoa humana e as liberdades fundamentais. Logo medidas sanitárias que estabeleçam mitigações severas a direitos dos mais vulneráveis, colocando-os em risco ainda maior, não devem prosperar. Como já dito, medidas de restrição e prevenção devem ser tomadas, porém não devem servir para suspender direitos dos mais necessitados. Afinal, a própria DUBDH dedica dois dispositivos especificamente para estabelecer com lapidários de seus fundamentos a igualdade, justiça, equidade, a não discriminação e a não estigmatização. Em similar sentido, e adimplindo com os argumentos da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, a Rede de Bioética da América Latina e do Caribe - UNESCO, divulgou, em março deste ano, uma declaração através da qual afirmou-se Os Estados devem ser obrigados a cumprir o direito à saúde: "não tomar medidas apropriadas para dar pleno efeito ao direito universal de usufruir do mais alto nível possível de saúde" e a falta de uma política nacional de segurança, implicam em uma violação de direitos fundamentais. Pandemias como o COVID-19 demonstram, assim, o grau de permanência em cada país e em cada comunidade.” Como se ainda não fosse o suficiente, frisou ainda que é dever dos Estados em tempos de pandemia “ter orçamentos em saúde e educação que não sejam limitados ou condicionados por situações políticas ou econômicas, pois em casos de risco, a saúde pública deve garantir que toda a população possa contar com o necessário para garantir o acesso aos cuidados de saúde que certifiquem o bem-estar individual e coletivo.”
Assim, verifica-se que, é responsabilidade dos Estados nacionais, através da mútua cooperação, garantir à coletividade acesso aos
cuidados de saúde sem qualquer discriminação, bem como a Rede de Bioética da América Latina e do Caribe – UNESCO classifica com grave violação de direitos fundamentais a omissão quanto ao estabelecimento de políticas públicas que abranjam os mais vulneráveis.
Por fim, em recente entrevista ao canal Euro News (in italiano) o Comissário do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), Fillippo Grandi, disse que a Organização das Nações Unidas pede aos governos dos Estados que incluam os refugiados nas medidas de respostas e combate à pandemia. Explica ainda que muito embora Organizações Não-Governamentais parceiras da ACNUR estejam levando água potável e produtos básicos de higiene para os campos de refugiados, deve haver maior empenho dos Estados nesse sentido. Grandi afirma ainda que, muito embora haja a falsa impressão de que a maioria dos refugiados vivem em campos e abrigos temporários, os dados mostram que mais de 60% (sessenta por cento) dos refugiados vivem em comunidades pobres espalhadas pelo mundo e em situação de vulnerabilidade. Por tal razão, essas populações devem ser levadas em consideração na elaboração de políticas públicas de saúde e economia. O Comissário, assim como a interpretação que se faz da DUBDH, estabelecem que o fortalecimento da estrutura sanitária dos países mais pobres e a crise da COVID-19 em relação aos refugiados não pode ser encarada como um problema isolado e de responsabilidade exclusiva desses países, uma vez que partindo de um conceito de coabitação global, os locais mais vulneráveis podem servir como ponto de retomada da pandemia.
Ante todo o exposto, acredito que a utilização dos conceitos e princípios da Bioética como elementos de lastro na elaboração de políticas públicas e mecanismos que busquem evitar a expansão da pandemia seja medida que se impõe. A aplicação dos princípios que fundamentam a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos em paralelo aos Direitos Civis, positivados pelas legislações nacionais e garantidos por Tratados Internacionais de Direitos Humanos servem para afirmar e dar eficácia às medidas que acolham em seu bojo os mais vulneráveis, mantendo preservados os direitos fundamentais dos imigrantes refugiados.




O presente Ensaio foi elaborado para disciplina de Teoria e Prática da Integração com a comunidade se baseando nas obras: