Série Ensaios: Ética no Uso Animal
Por: Luciane Pereira do Nascimento Medeiros
Veterinária e pós-graduanda em Conservação da Natureza e Educação Ambiental
Em janeiro de 2012, o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro (PP-RJ) pescava a bordo de um bote na Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis, área de conservação ambiental em que a pesca – e qualquer uso direto de recursos naturais, ou seja, consumo ou coleta desses recursos – é proibida. Em meio a alegações de que não estava pescando e mesmo de que não estava no local, e mediante a apresentação de fotos e depoimentos de fiscais do Ibama que comprovavam o crime ambiental, o ex-deputado e atual Presidente da República foi autuado e multado em R$ 10 mil após processo administrativo.
Muito viria a transcorrer nos oito anos seguintes à infração. Em dezembro de 2018, a multa aplicada a Bolsonaro foi anulada, e em março de 2019, meses após a Posse Presidencial, o servidor José Olímpio Augusto Morelli foi exonerado do cargo de Chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental. Morelli, que atuava no Ibama desde 2002 e segue agora como analista ambiental, foi o responsável pela ação de fiscalização que flagrou Bolsonaro em 2012.
Mas as mudanças não se limitaram ao processo administrativo relatado. No ano de 2015, o município de Presidente Epitácio sediou o 1º Campeonato Brasileiro de Pesca Amadora Esportiva, que posteriormente noticiou a participação de mais de 35 mil pessoas. Reconhecida como esporte desde 2018, a pesca recebeu ainda mais um estímulo, dessa vez de um órgão ambiental: o ICMBio, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, autorizou a pesca amadora e esportiva em unidades de conservação ambiental federais em todos os biomas brasileiros, através da Portaria n° 91 de 4 de fevereiro de 2020. Ao atribuir aos próprios pescadores e prestadores de serviço a responsabilidade de atender à legislação vigente e aos demais termos da portaria, que contempla até mesmo a “realização da pesca esportiva em unidades de conservação de proteção integral” – as mais frágeis do ponto de vista de proteção ambiental – essa decisão abre precedentes para a extração de outros recursos naturais e põe em risco a sobrevivência dos peixes nessas e em outras áreas.
De modo similar, o atual posicionamento do governo federal frente à pandemia de COVID-19 evidencia a predileção pelos interesses individuais e políticos em detrimento do coletivo; também aqui as orientações de especialistas parecem ser deixadas em segundo plano. Ademais, com a legalização da pesca em unidades de conservação, teria o governo a capacidade de garantir que os termos estabelecidos sejam cumpridos? Sabe-se da fragilidade da fiscalização de áreas protegidas e da prevalência da pesca ilegal no Brasil, levantando-se aqui outra questão importante: o bem-estar animal. A prática da pesca esportiva envolve o retorno do peixe à agua após a captura, além do uso de petrechos específicos como anzóis sem farpa ou com a farpa amassada e linhas de maior comprimento – para reduzir as lesões e o tempo de luta dos animais, respectivamente. Mas então, mesmo supondo que a lei seja seguida e o esporte praticado conforme suas diretrizes, não seria a pesca esportiva uma prática cruel em sua essência?
Como mencionado, os peixes são devolvidos à água, mas não é incomum que morram após uma ou várias capturas. Isso ocorre por uma série de motivos – o tempo para que os animais sejam medidos e fotografados varia, e mesmo que as mãos do pescador estejam molhadas de forma a evitar a perda do muco protetor (um cuidado frequentemente negligenciado) o peixe não apenas agoniza como também sofre alto nível de estresse. Se segurado pelas brânquias, o peixe é machucado e suas funções fisiológicas podem ser prejudicadas, uma vez que esse é o órgão responsável pela respiração nesses animais; deve-se considerar ainda que, mesmo que específicos para a prática, os anzóis utilizados na pesca esportiva causam dor e podem até mesmo permanecer no animal, caso sua localização seja demasiado profunda. O barotrauma, lesão interna causada por uma mudança abrupta de pressão atmosférica, também pode ocorrer durante a captura.
Tratando-se de seres sencientes dotados de sistema nervoso e receptores de dor, “capazes de aprender rapidamente a associar certos objetos, cheiros e estímulos nocivos com danos potenciais e passar a evitar tais eventos no futuro” (Santa-Cecília, 2014), vale colocar em pauta o quão ético é submeter os peixes ao que pode ser classificado como sofrimento puramente em nome do entretenimento humano.
Dessa forma, como veterinária e futura especialista em Conservação da Natureza e Educação Ambiental, questiono não apenas o futuro incerto da conservação ambiental no país como também a manutenção de práticas não voltadas à alimentação ou essenciais à subsistência, mas potencialmente prejudiciais à fauna e ao meio ambiente. Que essas práticas se popularizem e recebam o apoio de instituições legítimas é, a meu ver, quase tão preocupante quanto a flexibilização de normas relativas às unidades de conservação. Acredito que o prazer da “captura” de animais, indefesos sob todos os aspectos, possa ser substituído por outros esportes que envolvam esforço físico e contato com a natureza – sem a extração direta de seus recursos, sobretudo em áreas protegidas.
O Presente Ensaio foi
elaborado para disciplina de Ética no Uso Animal e Bem-estar-Animal, tendo como
base as obras:
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