quarta-feira, 29 de abril de 2020

Remédio ou tradição: O uso de animais para tratamento médico e os riscos de Pandemias.



Série Ensaios: Ética no Uso Animal

Por Tereza de Fátima Furmann
Pós-graduanda em Conservação da Natureza

A sucuriju (Eunectes murinus) conhecida na maior parte do brasil por sucuri, foi o animal com uso medicinal mais citado pelas populações ribeirinhas do Rio Negro, conforme a pesquisa Animais medicinais: conhecimento e uso entre as populações ribeirinhas do rio Negro, Amazonas,Brasil . A gordura do animal é o tecido corporal mais utilizado no tratamento de cura de diversas enfermidades como distensão muscular e rompimento de estruturas ósseas, considerada um poderoso cicatrizante de golpes, feridas e operações e ainda pode ser empregada como antibiótico em processos inflamatórios e respiratórios como pneumonia, gripes e outros, também há registros de usos em tratamentos de doenças cutâneas como a leishmaniose e problemas circulatórios como reumatismo, derrames e inchaços. É comum as populações ribeirinhas guardarem partes do corpo dos animais usados em tratamentos como uma espécie de “farmácia caseira” no caso da serpente sucuriju, é a sua gordura a parte corporal que frequentemente é guardada em casa. Segundo o artigo as populações rurais fazem uso com maior frequência de animais em tratamentos de saúde, isso porque apresentam menos recursos que as populações das áreas urbanas que, além da disponibilidade de recursos também contam com a distribuição gratuita de diversos medicamentes pelos postos de saúde. O uso da gordura de serpentes com aplicações terapêuticas é muito antigo e conhecido no mundo todo, inclusive é conhecida e até vendida popularmente como “banha de cobra”, trata-se de um conhecimento tradicional passado de geração a geração e que surgiu numa época em que os medicamentos que conhecemos hoje não existiam. 

Atualmente o mundo vivencia uma pandemia causada pelo coronavírus (COVID 19) com mais de 100 mil mortos em todo o mundo. Com indícios que a transmissão para humanos teria ocorrido em um mercado de animais vivos na cidade de Wuhan, na China. Pesquisas estão sendo feitas para identificar os animais que podem ter sido os hospedeiros do coronavírus, os estudos apontam como o principal suspeito da transmissão o pangolim, um mamífero de médio porte, no entanto morcegos teriam sido o reservatório do vírus. O pangolim é uma espécie muito utilizada na medicina tradicional chinesa e também nas demais regiões da Ásia e África. A ciência também busca respostas rápidas para saber se o vírus foi transmitido de forma direta e indireta e se houve mutações na transmissão entre espécies diferentes.
Neste caso quem toma a decisão moral são os seres humanos, o animal precisa ser abatido para que seja utilizado o tecido adiposo, (gordura do animal) e não há como extraí-lo e manter o animal vivo. Além do animal, as pessoas que capturam e manipulam esses animais também estão em risco, pois há uma questão sanitária, que pode afetar diretamente a saúde quem está manipulando esses animais. Importante ressaltar que em parte este comportamento do uso de animais no tratamento de doenças é um comportamento incorporado num contexto biológico e cultural. A questão ética aqui tratada, pode ser referida como a forma de captura e abate destes animais, não são animais domésticos que podem ser criados em casa, precisam ser capturados, mortos e manipulados e geralmente não há muitos relatos de como ocorrem estes procedimentos. Além do impacto ambiental que pode causar.
 
A justificativa para o uso desse tipo de medicamento é milenar, é considerado como conhecimento tradicional, passado de geração a geração, muito difundido em uma época que não havia o conhecimento científico da atualidade e principalmente por pessoas e comunidades não possuem acesso a todo os tipos de tratamentos de saúde disponíveis. Um argumento bastante presente no uso desse tipo de tratamento é o recurso da fé pelo que é natural, ou seja, as pessoas creem numa cura milagrosa, mais rápida, eficaz e com um custo menor do que os medicamentos farmacêuticos, inclusive essas pessoas afirmam que os medicamentos de farmácias são produzidos com uso de plantas e animais, então acreditam que usando as partes dos animais, estão se apropriando de um recurso natural, em que a própria natureza oferece a cura de seus males.
Eu como profissional da área acredito, que o maior problema em relação e este tipo de recurso não esteja de fato nas comunidades tradicionais que fazem uso destes animais, como indígenas, ribeirinhos, caiçaras entre outros, e sim na produção e comercialização destes produtos em feiras livres espalhadas pelo Brasil, e pelo mundo, são produtos clandestinos, que não tem nenhuma fiscalização sanitária e de legislação e que por serem “fabricadas” e vendidas livremente podem sofrer falsificações e colocar em risco a saúde das pessoas que confiam neste tipo de medicamento, seja por uma questão cultural ou por não terem acesso a outros tipos de medicamentos. Outro fator importante é a questão ambiental, esses animais não são comuns, não há grandes quantidades desses animais em nossa fauna, a captura e morte pode ocasionar o desequilíbrio ambiental de várias espécies relacionadas na cadeia alimentar. Penso que este tipo de questão somente pode ser resolvido com educação básica e saúde pública de qualidade. É muito complexo analisar questões ligadas ao fator cultural, mas também fica claro que esse tipo de tratamento não é consumido apenas por populações tradicionais, isso é comum em áreas rurais e em grandes centros urbanos, o acesso a informação de qualidade é um caminho necessário para a mudança desse cenário. A pandemia causada pelo coronavírus disparou um alerta sobre o uso indiscriminado de animais, em especial os silvestres, e o quão perigoso pode ser reunir e manipular animais de diferentes países, habitas e nichos ecológicos.