sábado, 21 de março de 2020

MEDICINA GUIADA PELA COMPAIXÃO


Dr. Teri Roberto  Gueiros
Médico ortopedista mestre em Bioética 

A formação do profissional em saúde tende a priorizar uma capacitação aos aspectos técnicos e científicos. Busca se privilegiar muito mais a doença do que a pessoa doente, a cura do que o cuidado. Acaba por se construir a ideia de que é preciso estar atento apenas às sanções e penalidades previstas no código profissional. Um temor advindo de uma provável coerção adstrita à deontologia existente nesses códigos, acaba gerando a ideia de que apenas existe uma única abordagem ética a ser conhecida e “temida”: a deontologia definida pelo Código de Ética Médica (CEM) e pelos Códigos Penais. Se aos profissionais da medicina “interessa diagnosticar e curar” (CANGUILHEM, 2011), não se estranha que sejam refratários no mais das vezes a questionar ou pensar na validade ou não da ética adstrita aos códigos. Defendemos que possuir virtudes é um requisito a todos os seres humanos que compõem e estão diretamente vinculados à relação médico-paciente. Estas virtudes, quando autenticamente exercidas, ou treinadas, conduzirão os médicos de forma autônoma no agir moral mesmo que heteronomamente conduzidos por códigos de ética; não agirão por puro receio de sanções ou punições. Lança-se como hipótese que de uma espontânea confluência entre a deontologia conduzida de modo virtuoso, abrem-se portas para que um outro motor moral, a compaixão, possa apoiar a ética biomédica. De todos os artigos elencados no último código de ética médica (CEM) (BRASIL, 2018), em 117, seus enunciados iniciam com a expressão “é vedado ao médico”. A expressão escolhida como orientadora de conduta, “é vedado”, remete a uma normatização moral negativa, onde vedar se aproxima de “não permitir”. Destarte o detalhe semântico, o respeito ao “não permitido” do CEM (BRASIL, 2019), dar-se-á, apenas, movido por dois motores possíveis: (1)- um agir que se dê “não” como uma consequência direta das crenças e normas adstritas ao sujeito ativo, no caso o médico, mas sim um agir coordenado por regras, lei ou normas externas; um agir não sustentado por convicções, mas por medo de coerção; não por autonomia, mas por heteronomia. (2)- um agir que se faça frente a uma consequência direta das crenças e normas adstritas ao sujeito ativo, o médico; um agir coordenado por um critério em que se pode estabelecer que o correto a ser feito é perguntar como faria uma pessoa com caráter virtuoso em determinada circunstância. Um agir ético por autonomia, ou, apoiado nas virtudes do indivíduo (DALL’AGNOL, 2014). Conclui-se que o CEM é passível de uma reflexão filosófica e assim servir como fundamentação bioética inicial do agir médico. O livro Princípios de ética biomédica, Tom L. Beauchamp e James F. Childress, de 1979, é utilizado largamente como fonte para fundamentar a ética médica na condução das relações morais entre profissionais da saúde e pacientes. Os autores afirmam que os princípios que devem dirigir a Bioética são autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça. Entre esses princípios não há nenhum caráter hierárquico. Porém, colocam como fundamental, a autonomia, que é entendida como a capacidade do indivíduo e das suas instituições de deliberar, escolher livremente e agir (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 138-139). O livro é uma análise filosófico, e remete a um agir pelas leis após uma forte avaliação racional do sujeito ativo. Porém, não é este enfoque filosófico que motiva a ideia de numa Ética Jurídica. Para o jurista, o dever não cumprido não implica numa sanção moral filosófica, mas numa coerção penal. A consequência do ato, qual seja, o agir corretamente (no caso dentro dos conformes da lei), não depende de nenhum valor ou escolha do indivíduo. Dar-se-á por uma normatização ética que está acima da opinião individual. A penalidade imposta pela lei não impede o indivíduo de a descumprir quando assim o desejar. Contanto que esse encare a possibilidade de coerção atrelada ao descumprimento. Um agir na perspectiva bioética poderia ser fundado numa ética das virtudes (EV) como uma opção factível para que haja uma correta condução de uma ética deontológica a partir dos códigos de. A diferenciação entre as pessoas, justificada por diferentes contextos, não impediria que a virtuosidade moral fosse ensinada pelo hábito e para todos (SÓCRATES, 1987; DURANT, 1996; DALL’AGNOL, 2014). As virtudes, que para os gregos embasavam tanto a capacidade de agir moral como outros dos inúmeros pontos da vida humana (agir intelectual, p. ex.), estavam presentes em graus variáveis em todos os indivíduos (DURANT, 1996; DALL’AGNOL, 2014). Pellegrino e Thomasma citam sobre um indivíduo virtuoso que “esta pessoa agirá bem mesmo que não tenha ninguém para aplaudir, simplesmente porque agir de outra maneira é uma violação do que é ser um bom ser humano” (2018). Desse modo, do médico(a) virtuoso(a) se espera que professe o bem intrínseco à sua prática, pois a virtude está vinculada à disposição de fazer o bem, “fim último da medicina” (PELLEGRINO; THOMASMA, 2018). Se aos profissionais da medicina “interessa diagnosticar e curar” (CANGUILHEM, 2011), não se estranha que sejam refratários no mais das vezes a questionar ou pensar na validade ou não da ética adstrita aos códigos. Estes profissionais, de modo geral, mantêm um enorme distanciamento de outros temas importantes da natureza humana, mas que são importantes na condução de pontos como a ética. Com a união do binômio deontologia e virtudes atuando de maneira conjunta, é possível alcançar o objetivo maior da medicina, qual seja, o bem cuidar do paciente, fazer o que é melhor para ele. Essa prática, pensa-se, permitirá o florescimento de uma ética da compaixão que norteará a relação entre o médico e o paciente. Schopenhauer alegando que a compaixão se apresenta de imediato quando frente ao sofrimento do outro, e não considera errado colocar-se no lugar do sofredor, “na verdade, tendo compaixão, sofremos com ele, portanto nele; sentimos a dor dele como sua mesma, e não temos a imaginação que seja nossa” (SCHOPENHAUER, 2001). Beauchamp e Childress apontam a compaixão como sendo necessária à assistência na saúde e ao que a esta promove, pois a entendem como “a habilidade de compreender o que precisa ser feito pelo paciente”, que leva a um “agir de modo sensível” (2002). Relatório Francis, que no ano de 2013 apontou a importância da Compaixão, identificando a sua falta nos serviços de saúde Ingleses como uma das principais causas de falhas nestes. E dos achados que sustentaram a confecção deste relatório, surgiram três recomendações atinentes ao treinamento do profissional da saúde:1) treinar todos os profissionais de saúde em compaixão; 2) considerar e avaliar a compaixão como uma competência fundamental dos profissionais de saúde; 3) adotar e implementar normas e cuidados compassivos nos cuidados de saúde (FRANCIS, 2013). Embora o médico não possa sentir a dor e o sofrimento nas mesmas condições daquele que está doente e vulnerável, a presença da compaixão em sua prática fará com que ele se coloque ao lado daquele que está precisando de sua ajuda. Infere-se assim que um agir profissional não será mais ético e humanizado apenas por conta das normas deontológicas, e sim, que podem ser estimulados e educados outros aspectos normativos próprios do ser humano para que se possa esperar uma educação para a ética. Essa educação para a ética está em sintonia com o universo da bioética, que tem entre um dos seus maiores princípios a beneficência, o maior princípio norteador de uma EV. Resta, portanto, o desafio de agregar o arcabouço da bioética ao CEM para que este possa colaborar na construção de um agir ético de excelência na prática médica.