Direito intergeracional como manifestação da identidade humanitária, aportes da Bioética Budista.



Por Valéria El Horr,
psicóloga e mestranda em Bioética


Em tempos de crise ambiental aguda, de recursos naturais escasseados e de crescente individualismo, é necessário entender nossa relação com as práticas construídas a partir da noção do direito intergeracional e o princípio da solidariedade.

Por direito intergeracional se entende o ramo do direito que pretende ações compartilhadas e compromissadas que visem a preservação do patrimônio material e imaterial em respeito às gerações futuras. No  Direito Ambiental, configura-se como o princípio da solidariedade intergeracional  que pretende também, para além do conceito de preservação, ampliar a perspectiva de humanidade através da passagem do tempo.

A bioética budista surgiu nos países da Ásia e tem como base filosófica as diferentes vertentes budistas que se desenvolveram inicialmente na Àsia por meio de duas principais denominações, o budismo Hinayana e o budismo Mahayana, que tem desenvolvido importantes discussões e ações éticas nos campos da saúde desde o âmbito individual ao planetário.

Para compreender como a bioética budista pode , por meio de suas reflexões promover ações  onde o dever de preservar a vida e o ambiente é imperativo, o conceito de homem integrado com seu ambiente é um conceito central. Sobre este ponto o filósofo Daisaku Ikeda, comenta:

"Na medida em que a vida estende sua influência à circunvizinhança, o meio ambiente automaticamente muda de acordo com a condição da vida. Então, o meio ambiente que é um reflexo da vida interior dos seus habitantes - sempre adquire as características dos que nele existem." (2010).

A concepção cosmológica do budismo, postula o princípio de origem dependente entendendo, portanto, que a vida em todas as suas manifestações possuem a mesma essência digna do mais alto respeito, ou seja, a existência de todas essas formas é interdependente. o homem e o ambiente são unos e indissociáveis e não pode existir um sem o outro.

Em japonês esho funi, o princípio da inseparabilidade do homem e seu ambiente, revela que ambos se manifestam como um fenômeno único, dessa forma a consciência de repercussões mútuas de causas e efeitos transformam o binômio “homem E natureza”  em uma fórmula unificadora “dois, mas não dois”.

O planeta está agonizando, segundo a concepção da medicina Ayurveda, base da medicina oriental e da concepção budista de saúde, a doença surge como um pedido de socorro, diante de um desequilíbrio entre os quatro elementos, terra, fogo, água e ar, elementos constituintes do homem e do Universo.

Sob essa perspectiva podemos entender que a atual pandemia desempenha esse papel sinalizador da doença que temos provocado no Planeta e em nós mesmos, e que é preciso acordar para o fato de nossa existência interdependente, e contrariando dualismos que nos levaram à instrumentalização da natureza, fica claro que não é possível garantir nossa sobrevivência sem a sobrevivência planetária.

Outro princípio central da bioética budista reside na Lei da causalidade, quer dizer,  todas as intervenções que ocorrem por meio dos pensamentos , palavras e ações geram causas e efeitos, ou seja, qualquer ação emitida pelo homem retornará a ele e afetará sua circunstância em alguma medida, a seu tempo. Dessa forma a responsabilização por tudo o que nos cerca é o princípio mais rigoroso no que se refere à ética budista. Não se tratam de ditames comportamentais restritivos, mas de uma autêntica responsabilização pela vida que envolve, mais do que si mesmo.

O reconhecimento dessa responsabilidade natural, pretende deixar claro que as ações individuais não estão alicerçadas na perspectiva do que o Budismo chama de pequeno eu, ou seja, no eu construído a partir da identidade social e impermanente do que somos neste momento da vida, mas sobre a concepção do grande EU, aquele que nos alerta para nosso pertencimento à espécie humana e mais ainda que nos apresenta como uma manifestação do Cosmos.

Dessa forma tudo o que fazemos ao outro, é a nós mesmo que fazemos, é uma lógica que se vê a olhos nus, o ambiente somos nós e também as próximas gerações são um desdobramento de nossa existência presente. Por meio do princípio da eternidade da vida e do ciclo infindável do nascimento, envelhecimento doença e morte, o Budismo elucida que a vida é eterna, estamos, portanto, implicados de forma absoluta com as gerações futuras, já que renasceremos infinitamente, no momento oportuno sofreremos algum impacto resultante de nossas ações de preservação ou não, de nossa vida neste momento.
O princípio do direito intergeracional e a concepção budista da vida, seguem de mãos dadas, e esta última lança-nos a uma perspectiva transcendente, que provoca uma consciência de pertencimento planetário, tão necessária na atual época de degradação violenta da vida em todas as suas manifestações.
Referências Bibliográficas
CARNEIRO, D. M. “ Ayurvedha: saúde e longevidade na tradição milenar da Ìndia.” Ed. Pensamento 2007.
ENDO  P. K. Os fundamentos do budismo Nichiren para a nova era do Kossen Rufu mundial, vol 1 e 2 São Paulo Ed Brasil Seikyo 2016.
IKEDA, D. Vida um enigma, uma jóia preciosa.  São Paulo Ed. Brasil Seikyo 2010
MACHADO, Jeanne S. A solidariedade Social e a Sustentabilidade na Responsabilidade Ambiental Globalizada. Ed Processo Rio de Janeiro 2019.