Série
Ensaios: Bioética Ambiental
Por
Ricardo de Amorim Cini
Tecnólogo
em Gastronomia e Mestrando do PPGB PUCPR
Reportagem veiculada pelo site UOL no ano de 2017 indica que a “pecuária é responsável por 65% do desmatamento da Amazônia”, com denúncias relacionadas ao avanço sobre as áreas legalmente protegidas, sendo considerada “a atividade que mais contribui para o desmatamento da floresta”.
A pecuária é uma das maiores
responsáveis pela emissão de gases que afetam a camada de ozônio e
aceleram o efeito estufa, além da grande quantidade de água utilizada no
processo de produção (cerca de 15 mil litros
de água para se ter 1 kg de carne), ou ainda, o custo (principalmente ambiental) de se
alimentar os animais, visto que é necessária uma agricultura direcionada
somente a eles. A concorrência desta atividade está relacionada diretamente ao aumento
do desmatamento mundial, já que a superfície ocupada pelas
pastagens só tende a crescer com o aumento da produção.
O consumo de alimentos sempre foi
fator determinante para a sobrevivência do homem no planeta. Quando antes se
via a alimentação muito marcada pela cultura, pelas disposições geográficas,
climáticas e consumo de alimentos produzidos localmente. Assistimos hoje a
substituição de valores culturais pela padronização da dieta alimentar, muito focada no consumo de
açúcares refinados, carnes (e derivados de animais), óleos e gorduras (TILMAN & CLARCK, 2014). Estas mudanças são subsidiadas pelas grandes corporações
de alimentação, na busca por alternativas para aumentar seu ganho,
desconsiderando todo o efeito ambiental que perpassa a produção de
alimentos. Além dos já sabido problemas de saúde ocasionados por esta mudança de dieta (diabetes, hipertensão, aumento de colesterol) destacam-se as preocupações com os
efeitos climáticos e
ambientais (TILMAN
& CLARCK, 2014), tendo grande influência nisso a produção de animais para
consumo. A produção de carne bovina, suína e de frango tem projeções de crescimento constante no Brasil, conforme dados do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2017). É no mínimo controverso incentivar o aumento da produção de carnes enquanto as preocupações ambientais são cada vez mais latentes. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, ligada diretamente a ONU – Organização das Nações Unidas) já tem um debate importante sobre o problema do aumento da produção e consumo de carne, inclusive com indicações de insustentabilidade ambiental caso isso ocorra.
Movimentos contra esta agenda, como os veganos e vegetarianos, são presentes, urgentes e importantes para contestar este cego sistema de produção. Muitas as ramificações, mas com propostas éticas muito semelhantes. Seja pela busca de uma dieta considerada mais positiva para a saúde, ou por uma postura ética preocupada com o bem-estar dos animais e o meio ambiente, os vegetarianos são conhecidos por um regime restrito em consumo de carne e se difere do veganismo, pois este último grupo, além da restrição de alimentos de origem animal (como ovos, leites e gorduras animais), tem a postura de não consumir nenhum produto e serviço que gere qualquer sofrimento ao animal (Sociedade Vegetariana Brasileira).
Pode-se talvez tentar justificar o aumento da produção de animais para consumo com o crescimento populacional. Entretanto, como a carne ainda é um produto de luxo na mesa dos consumidores, e visto que a parcela da sociedade que mais cresce é aquela com menos “poder” de compra, questiona-se: toda essa carne produzida é para satisfazer a quem? Talvez seja para baratear o custo fixo de produção e conseguir chegar a um maior número de famílias. Ou será que entramos num ciclo em que sempre haverá sobra de produção, que se não tiver o descarte como destino será industrializada mais uma vez e chegar como ultraprocessado barateado, feito com estas sobras e outras obscuridades?
É preciso estar atento também às
manobras da indústria de alimentos que tende a incorporar estes produtos em
seus catálogos a fim de aumentar sua parcela de consumidores, visando somente o
lucro. É certo que existirem mais produtos veganos e/ou vegetarianos, além de
receitas tradicionalmente carnívoras e que agora são feitas com substitutos de
origem vegetal, são incentivos promissores para que as preocupações dos
movimentos se espalhem e alcancem uma maior visibilidade. Porém, é preciso
distinguir e nunca confundir a (suposta) responsabilidade verdadeiramente ética
das corporações com interesses puramente comerciais. São muitos os casos de marcas que têm buscado utilizar
esta bandeira como estratégia comercial, ou que buscam pesquisadores
reconhecidos da área ou organizações de defesa de animais para difundirem seus
produtos, além dos conflitos de interesses da indústria privada no campo de
alimentação (BURLANDY et al., 2016), sem qualquer responsabilidade ética.
A responsabilidade ambiental e a
preocupação com o bem-estar dos animais é um ponto convergente entre os adeptos
a este regime e a bioética. Peter Singer, um dos bioeticistas mais famosos
que discute este tema, é vegetariano e condena a morte de animais para o
consumo humano. Para ele, é impossível justificar o sofrimento que o animal
passa durante toda sua criação e seu destino para consumo pessoal, além de
defender que isto é uma violação do direito dos animais. A discussão em torno
das questões ambientais ressaltam a hipócrita produção de
gado, o qual é criado em ambiente fechado e alimenta-se de uma vasta parte da
produção mundial de cereais, com ganhos energéticos insuficientes para
justificar tal ato. Considera-se também a preservação de terra, energia e água
(como já explicada acima), que são brutalmente utilizadas neste processo de
produção. Por fim, para o autor, estes argumentos justificam uma base ética
para ter uma dieta vegetariana, ou, ao mínimo e com mais urgência, para reduzir
o consumo de carne.
A urgência parte do princípio que a humanidade
e o planeta Terra apresentam sinais de preocupações em todas as partes, e é
iminente repensar o rumo para o qual estamos caminhando. Leonardo Boff indica que as respostas não se
encontram prontas, mas é preciso buscá-las, caminhando de forma coletiva. Somos
em parte todos Terra, e, por termos esquecido esta ligação que temos com ela,
nos tornamos antropocêntricos, justificando as ações para tomá-la e utilizá-la
como bem entendemos, de forma hedonista (BOFF, 1999)
Aí
podemos começar a trilhar um caminho para a Bioética Ambiental no questionamento da crescente
hegemonia e padronização da dieta mundial. Além disso, no próprio diálogo de
todos que possam estar envolvidos nesta conflituosa relação, visando atingir um
equilíbrio consensual e, principalmente, promovendo um relacionamento harmônico
entre natureza, sociedade atual, além das gerações futuras. Ter esta mudança de
atitude individual não é fácil, demanda tempo, questionamento, além de ser
difícil (e talvez impossível) encontrar resposta única a este problema
(FISCHER, CORDEIRO & LIBRELATO, 2016).
Por
fim, acredito que devemos e podemos começar a repensar nossa alimentação.
Tentar retomar (pelo menos um pouco) o cuidado e a relação com o alimento que
acabamos perdendo com o tempo. Cada pedaço de carne que chega em nossas casas
tem uma história. Houve um cereal plantado para satisfazer o boi, que nasceu
pequeno e foi ocupando cada vez mais espaço no mundo. Assim como nós, se
alimentou e utilizou muita água para crescer, foi responsável por muito
desperdício e poluição. Sofreu muitas vezes confinado em espaços pequenos,
tratado somente como um produto e restituído de vida em liberdade, até ser
abatido de maneira difícil de se orgulhar. No supermercado, ocupou uma
prateleira, energia, embalagem (geralmente descartável), com todos os agravos
ambientais ligados a isso. Enfim, não é tão simples o caminho percorrido pelo
alimento, e ter noção disso já eleva muito o seu status moral e a
responsabilidade ética contida em cada um. É imperativo reduzir o consumo de
carne para que possamos pensar conjuntamente em um melhor estilo de vida
individual, social e ambiental, com vistas a proteger todas as formas de vida
das gerações atuais e, também, futuras.
O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética
Ambiental, tendo como base nas obras:
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do humano - compaixão
pela Terra. Petrópolis - Rj: Editora Vozes, 4ª Edição, 1999. 199 p.
BRASIL. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Projeções do Agronegócio, Brasil 2016/17 a 2026/27. Projeções de Longo Prazo,
Brasília, Agosto de 2017. Disponível em
http://www.agricultura.gov.br/assuntos/politica-agricola/todas-publicacoes-de-politica-agricola/projecoes-do-agronegocio/projecoes-do-agronegocio-2017-a-2027-versao-preliminar-25-07-17.pdf
BURLANDY, Luciene et al. Políticas de promoção da saúde e
potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, pg.1809-1818, 2016.
FISCHER, Marta Luciane. CORDEIRO, Andressa Luiza. &
LIBRELATO, Rafael Falvo. A abstinência voluntária do consumo de carne pode ser
compreendida como um princípio ético?. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo,
V. 52, N. 1, p. 122-131, jan/abr, 2016.
TILMAN, David. CLARCK, Michael.
Global diets link environmental sustainability and human health. Nature v. 515,
pages 518–522, Nov., 2014.
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