sábado, 3 de março de 2018

Repensar a alimentação: é urgente preocupar-se com a atual dieta exagerada em carnes?


Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Ricardo de Amorim Cini

Tecnólogo em Gastronomia e Mestrando do PPGB PUCPR
Reportagem veiculada pelo site UOL no ano de 2017 indica que a “pecuária é responsável por 65% do desmatamento da Amazônia”, com denúncias relacionadas ao avanço sobre as áreas legalmente protegidas, sendo considerada “a atividade que mais contribui para o desmatamento da floresta”.


A pecuária é uma das maiores responsáveis pela emissão de gases que afetam a camada de ozônio e aceleram o efeito estufa, além da grande quantidade de água utilizada no processo de produção (cerca de 15 mil litros de água para se ter 1 kg de carne), ou ainda, o custo (principalmente ambiental) de se alimentar os animais, visto que é necessária uma agricultura direcionada somente a eles. A concorrência desta atividade está relacionada diretamente ao aumento do desmatamento mundial, já que a superfície ocupada pelas pastagens só tende a crescer com o aumento da produção.
O consumo de alimentos sempre foi fator determinante para a sobrevivência do homem no planeta. Quando antes se via a alimentação muito marcada pela cultura, pelas disposições geográficas, climáticas e consumo de alimentos produzidos localmente. Assistimos hoje a substituição de valores culturais pela padronização da dieta alimentar, muito focada no consumo de açúcares refinados, carnes (e derivados de animais), óleos e gorduras (TILMAN & CLARCK, 2014). Estas mudanças são subsidiadas pelas grandes corporações de alimentação, na busca por alternativas para aumentar seu ganho, desconsiderando todo o efeito ambiental que perpassa a produção de alimentos. Além dos já sabido problemas de saúde ocasionados por esta mudança de dieta (diabetes, hipertensão, aumento de colesterol) destacam-se as preocupações com os efeitos climáticos e ambientais (TILMAN & CLARCK, 2014), tendo grande influência nisso a produção de animais para consumo.
            A produção de carne bovina, suína e de frango tem projeções de crescimento constante no Brasil, conforme dados do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2017). É no mínimo controverso incentivar o aumento da produção de carnes enquanto as preocupações ambientais são cada vez mais latentes. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, ligada diretamente a ONU – Organização das Nações Unidas) já tem um debate importante sobre o problema do aumento da produção e consumo de carne, inclusive com indicações de insustentabilidade ambiental caso isso ocorra.       
Movimentos contra esta agenda, como os veganos e vegetarianos, são presentes, urgentes e importantes para contestar este cego sistema de produção. Muitas as ramificações, mas com propostas éticas muito semelhantes. Seja pela busca de uma dieta considerada mais positiva para a saúde, ou por uma postura ética preocupada com o bem-estar dos animais e o meio ambiente, os vegetarianos são conhecidos por um regime restrito em consumo de carne e se difere do veganismo, pois este último grupo, além da restrição de alimentos de origem animal (como ovos, leites e gorduras animais), tem a postura de não consumir nenhum produto e serviço que gere qualquer sofrimento ao animal (Sociedade Vegetariana Brasileira).
Pode-se talvez tentar justificar o aumento da produção de animais para consumo com o crescimento populacional. Entretanto, como a carne ainda é um produto de luxo na mesa dos consumidores, e visto que a parcela da sociedade que mais cresce é aquela com menos “poder” de compra, questiona-se: toda essa carne produzida é para satisfazer a quem? Talvez seja para baratear o custo fixo de produção e conseguir chegar a um maior número de famílias. Ou será que entramos num ciclo em que sempre haverá sobra de produção, que se não tiver o descarte como destino será industrializada mais uma vez e chegar como ultraprocessado barateado, feito com estas sobras e outras obscuridades?

É preciso estar atento também às manobras da indústria de alimentos que tende a incorporar estes produtos em seus catálogos a fim de aumentar sua parcela de consumidores, visando somente o lucro. É certo que existirem mais produtos veganos e/ou vegetarianos, além de receitas tradicionalmente carnívoras e que agora são feitas com substitutos de origem vegetal, são incentivos promissores para que as preocupações dos movimentos se espalhem e alcancem uma maior visibilidade. Porém, é preciso distinguir e nunca confundir a (suposta) responsabilidade verdadeiramente ética das corporações com interesses puramente comerciais. São muitos os casos de marcas que têm buscado utilizar esta bandeira como estratégia comercial, ou que buscam pesquisadores reconhecidos da área ou organizações de defesa de animais para difundirem seus produtos, além dos conflitos de interesses da indústria privada no campo de alimentação (BURLANDY et al., 2016), sem qualquer responsabilidade ética.

A responsabilidade ambiental e a preocupação com o bem-estar dos animais é um ponto convergente entre os adeptos a este regime e a bioética. Peter Singer, um dos bioeticistas mais famosos que discute este tema, é vegetariano e condena a morte de animais para o consumo humano. Para ele, é impossível justificar o sofrimento que o animal passa durante toda sua criação e seu destino para consumo pessoal, além de defender que isto é uma violação do direito dos animais. A discussão em torno das questões ambientais ressaltam a hipócrita produção de gado, o qual é criado em ambiente fechado e alimenta-se de uma vasta parte da produção mundial de cereais, com ganhos energéticos insuficientes para justificar tal ato. Considera-se também a preservação de terra, energia e água (como já explicada acima), que são brutalmente utilizadas neste processo de produção. Por fim, para o autor, estes argumentos justificam uma base ética para ter uma dieta vegetariana, ou, ao mínimo e com mais urgência, para reduzir o consumo de carne.

            A urgência parte do princípio que a humanidade e o planeta Terra apresentam sinais de preocupações em todas as partes, e é iminente repensar o rumo para o qual estamos caminhando. Leonardo Boff indica que as respostas não se encontram prontas, mas é preciso buscá-las, caminhando de forma coletiva. Somos em parte todos Terra, e, por termos esquecido esta ligação que temos com ela, nos tornamos antropocêntricos, justificando as ações para tomá-la e utilizá-la como bem entendemos, de forma hedonista (BOFF, 1999)

Aí podemos começar a trilhar um caminho para a Bioética Ambiental no questionamento da crescente hegemonia e padronização da dieta mundial. Além disso, no próprio diálogo de todos que possam estar envolvidos nesta conflituosa relação, visando atingir um equilíbrio consensual e, principalmente, promovendo um relacionamento harmônico entre natureza, sociedade atual, além das gerações futuras. Ter esta mudança de atitude individual não é fácil, demanda tempo, questionamento, além de ser difícil (e talvez impossível) encontrar resposta única a este problema (FISCHER, CORDEIRO & LIBRELATO, 2016).

Por fim, acredito que devemos e podemos começar a repensar nossa alimentação. Tentar retomar (pelo menos um pouco) o cuidado e a relação com o alimento que acabamos perdendo com o tempo. Cada pedaço de carne que chega em nossas casas tem uma história. Houve um cereal plantado para satisfazer o boi, que nasceu pequeno e foi ocupando cada vez mais espaço no mundo. Assim como nós, se alimentou e utilizou muita água para crescer, foi responsável por muito desperdício e poluição. Sofreu muitas vezes confinado em espaços pequenos, tratado somente como um produto e restituído de vida em liberdade, até ser abatido de maneira difícil de se orgulhar. No supermercado, ocupou uma prateleira, energia, embalagem (geralmente descartável), com todos os agravos ambientais ligados a isso. Enfim, não é tão simples o caminho percorrido pelo alimento, e ter noção disso já eleva muito o seu status moral e a responsabilidade ética contida em cada um. É imperativo reduzir o consumo de carne para que possamos pensar conjuntamente em um melhor estilo de vida individual, social e ambiental, com vistas a proteger todas as formas de vida das gerações atuais e, também, futuras.


O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental, tendo como base nas obras:

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do humano - compaixão pela Terra. Petrópolis - Rj: Editora Vozes, 4ª Edição, 1999. 199 p.
BRASIL. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio, Brasil 2016/17 a 2026/27. Projeções de Longo Prazo, Brasília, Agosto de 2017.  Disponível em http://www.agricultura.gov.br/assuntos/politica-agricola/todas-publicacoes-de-politica-agricola/projecoes-do-agronegocio/projecoes-do-agronegocio-2017-a-2027-versao-preliminar-25-07-17.pdf

BURLANDY, Luciene et al. Políticas de promoção da saúde e potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, pg.1809-1818, 2016.

FISCHER, Marta Luciane. CORDEIRO, Andressa Luiza. & LIBRELATO, Rafael Falvo. A abstinência voluntária do consumo de carne pode ser compreendida como um princípio ético?. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, V. 52, N. 1, p. 122-131, jan/abr, 2016.
TILMAN, David. CLARCK, Michael. Global diets link environmental sustainability and human health. Nature v. 515, pages 518–522, Nov., 2014.

Nenhum comentário:

Postar um comentário