Série Ensaios:
Bioética Ambiental
Por
Higor Esturião
Biomédico
e Mestrando do PPGB
Em
novembro de 2010, a Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA)
veiculou que cerca de 100 milhões de animais morrem no mundo anualmente para
fins de experimentação científica. A dúvida que se instala é: não deveríamos
debater mais seriamente sobre a questão, para além dos simplismos?
Podemos afirmar categoricamente que
os sentimentos de insatisfação social em relação à prática de experimentação
animal vêm crescendo nas últimas décadas (TRÉZ, 2015). Grupos
de ativistas organizados contrários à pesquisa com animais
- os quais se articulam para produção e distribuição de material didático e
educativo, material audiovisual, sites e afins – se multiplicam, ao passo que a
sociedade civil como um todo, ou seja, a grande parcela
da população que não se encontra no meio ativista, também vem contestando os
paradigmas que sustentam a atividade científica que usa o animal como um modelo
preditivo. Ademais, áreas como a filosofia, antropologia
e etologia, contribuem com críticas direcionadas ao tradicionalismo especista
– que aloca os animais não-humanos em espaços inferiores –, permitindo um
debate mais aprofundado e elaborando a ideia de que animais são sujeitos
morais/de direito e que seus interesses devem ser levados em conta. Internacionalmente,
no âmbito jurídico, são aprovadas novas leis que versam sobre a experimentação
animal. Aqui, porém, vale uma ressalva: É certo que estas leis não diminuem
necessariamente o sofrimento das assim chamadas ‘’cobaias’’ - já que não
impedem o uso dos animais nos procedimentos, isto é, não retiram o seu status de propriedade, mas sim,
regulamentam e legitimam práticas vivissectórias -, mas é também certo que elas
refletem uma noção generalista: atualmente os centros de pesquisa não podem
realizar qualquer experimento, aos moldes do cientista cartesiano do século
XVII e, por isto, alguma norma ou diretriz (por mais não fiscalizada que seja)
deve existir.
Contudo, apesar dos esparsos avanços
– que se inserem sobretudo no campo das ideias e menos no impedimento da dor
real experienciada pelos seres vivos sencientes dos laboratórios -, o número de
animais utilizados na pesquisa aumentou nas últimas décadas. No ano de 2017, o Departamento
de Agricultura dos Estados Unidos publicou um
relatório onde apresenta um aumento de 7% no número de animais usados em
experimentos naquele país. Mais especificamente no Brasil, somente na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o número de animais usados
cresceu de cerca de 15.000 para mais de 50.000, no período entre 1993 e 1999 (TRÉZ,
2000). Ainda sobre números, Fagundes
e Taha (2004) apontam que cerca de 85% dos artigos da Medline e 70% dos artigos
da Lilacs se referem a ratos e a camundongos, enquanto que Ionannidis (2012)
revela que, na pesquisa biomédica (aqui são incluídas as pesquisas clínicas e
as que utilizam outros métodos que não envolvem animais), 25% dos artigos fazem
referência ao termo ‘’animal’’ em seus resumos. Estima-se que cerca de 115
milhões de animais são mortos anualmente, numa escala planetária (número bem
próximo do veiculado pela ANDA, com o qual iniciamos este texto); segundo Taylor
(2008), porém, esses números são subestimados, visto que muitos países não
coletam e divulgam os dados e estatísticas envolvendo a experimentação.
No
Brasil, ainda não existem números precisos num nível nacional, mas Vera Baumans
(2004) aponta que aproximadamente 60% dos animais usados em atividades
científicas são roedores, seguidos de hamsters, porquinhos da índia e coelhos,
e cerca de 11% de outras espécies incluindo anfíbios, aves, cães, primatas e
outros. No mundo, ainda de acordo com a mesma autora, 80% são roedores. Ainda
mundialmente, as áreas onde estes animais são mais utilizados são no
desenvolvimento de novas drogas (23%), produção de vacinas (21%), pesquisa
contra o câncer (12%) e estudos toxicológicos (9%), com apenas 1% para fins de
ensino. Com essa quantidade tão absurda quanto abstrata de animais usados
anualmente, pode-se pensar que a quantidade de benefícios proporcionados aos
seres humanos é proporcional. Contudo, a realidade aponta justamente o
contrário: boa parte dos fármacos produzidos que possuem efeitos positivos
em sua fase pré-clínica (isto é, quando testados em animais), são rejeitados
quando chegam em fases posteriores onde o teste é realizado em seres humanos
(fase clínica). Cerca de 90% dos medicamentos promissores são descartados
quando chegam na fase clínica, e em torno de metade das drogas é retirada das
prateleiras cerca de 5 anos após sua implementação no mercado por apresentarem
efeitos colaterais não esperados (TRÉZ, 2015). E os gastos
envolvidos nesse aparato científico? Algo em
torno de U$ 14 bilhões, segundo Hartung
(2009). Outra consideração: a questionabilidade da experimentação animal
não deve ser tratada unicamente em termos utilitários para os seres humanos, ou
seja, se as pesquisas revertem em ganhos no âmbito da saúde (isto considerando
apenas os experimentos voltados para saúde e negligenciando explicitamente os
usos dos animais para a produção de cosméticos) ou não é uma questão
secundária. A primazia aqui é no âmbito da ética: se possuímos ou não o direito
de infligir dor e sofrimento a milhares de animais, ainda que contra seus
interesses.
Frente a estes espantosos números,
poderíamos nos perguntar: a experimentação animal constitui um desperdício? Não
só de recursos financeiros e de tempo - pois os testes precisam
obrigatoriamente passar pelos animais antes dos humanos -, mas também de vidas
e de possíveis novos modos não-especistas de fazer ciência. E como poderíamos estar
supostamente avançando no que tange os direitos
animais enquanto, ao mesmo tempo, os matamos cada vez mais para fins
científicos? Uma esquizofrenia
moral, como certeiramente apontou Francione
(2015). Além desse grande impasse ético que é o uso de seres vivos sencientes
contra seus próprios interesses em favor dos nossos, Thales Tréz aponta que a
experimentação animal também constitui um problema de ordem científica, visto
os inúmeros problemas advindos de uma prática que aceita o animal como um
modelo preditivo eficaz (TRÉZ, 2015). Este breve texto, porém, não possui a
finalidade de refletir sobre os conceitos de predição de modelos, mas sim,
levantar o debate sobre os diferentes desdobramentos do desperdício na pesquisa
com animais e sua relação com o princípio da virtude de Aristóteles.
Aristóteles
se preocupou muito com a política e ética e, em torno destes temas, elaborou um
conceito fundamental: a virtude.
Para o filósofo, a virtude é uma prática para o agir corretamente, com
‘’prudência’’ e ‘’sensatez’’. Além disto, a virtude não é uma essência ou um
dado da natureza, mas sim, algo criado e exercitado através do hábito; não
nasce com o indivíduo, mas é desenvolvido por ele e pela sociedade em que
habita (ARISTÓTELES, 1985). A virtude aristotélica se divide em intelectual e
ética (ou moral), sendo a primeira definida como virtude produzida pela
educação, com vistas a busca do ‘’conhecimento verdadeiro’’ e a segunda,
caracterizada pelo hábito que nos torna capaz de praticar atos justos (BERTI,
1998). Nesse sentido, a virtude tem estreita relação com a educação e com o
hábito ou costume. É aqui o ponto onde o princípio construído por Aristóteles
esbarra com os desperdícios gerados como subprodutos na vivissecção de animais:
afinal, como conciliar ‘’virtuosidade’’ e ‘’sensatez’’ com a prática que que
subjuga e explora os animais para fins completamente alheios as suas próprias
vidas e com os gastos em experimentos que não são – de longe – necessários para
a saúde humana? A virtude aristotélica é deixada de lado quando, por exemplo,
as universidades e os comitês de ética no uso de animais, as CEUAs
– que são suspostamente responsáveis e que, pelo menos nas aparências
burocráticas, deveriam proteger os interesses dos animais – não estimulam o
debate sobre os direitos animais entre os pesquisadores e os alunos, já que o
princípio de Aristóteles contém um forte componente educacional. Ora, como
formar profissionais preocupados com os interesses dos animais se não existe um
encorajamento à discussão por parte dos orientadores, das CEUAs e da própria
universidade? Como formar alunos eticamente embasados se não existem bons
modelos? Ademais, é questionável afirmar como ‘’virtuosa’’ a prática de matar
milhões de animais todos os anos – independentemente de quão nobre o fim possa
ser. Seja para o desenvolvimento de um novo cosmético não essencial para a
saúde humana – mas sim para a manutenção do mercado e para circulação de
capital -, seja para suspostamente desenvolver uma droga eficaz contra o câncer
– e devemos sempre nos perguntar o quão válido é o modelo animal para a
fabricação de novos medicamentos -, matar um ser vivo senciente contra sua
própria vontade, para assim satisfazer nossas necessidades é, no mínimo,
discutível.
Isso sem contar com os
questionamentos que deslegitimam a própria experimentação animal, no sentido abolicionista,
indo ao contrário dos movimentos que afirmam a situação que está dada, isto é,
que realizam críticas as práticas vivisseccionistas, mas com o pressuposto que
as mesmas irão continuar. A virtuosidade de Aristóteles, neste caso, fomenta
fissuras no status-quo-especista que legitima e enseja o (ab)uso de animais
para os mais diversos fins - fins estes sempre cobertos com envoltórios da
‘’necessidade’’ – ou se limita a engrenar os mesmos discursos de que é essencial
para a atividade científica o uso de ‘’cobaias’’? A sensatez e a prudência
aristotélicas apontam para novas possibilidades do fazer científico, ou acabam
resvalando para as mesmas práticas que enjaulam os animais com toques de
humanitarismo? As dúvidas soam como uma quase-aporia, mas, para além do beco
sem saída, é necessário questionar profundamente os modos de operação da
ciência, carregados de antropocentrismo, para abrir linhas de fuga que apontem
novas atividades e novos fazeres que sejam realmente éticos, e por que não
virtuosos? Se realmente quisermos injetar uma dose de virtuosidade na ciência
(uma virtuosidade anti-especista), é imprescindível uma superação – ou ao
menos, mais modestamente, pequenos vislumbres da superação - dos atuais
paradigmas, os quais sempre categorizam o animal como um objeto útil para
obtenção de resultados e carreiras. Pois virtuosidade é incompatível com a
atividade que mata milhões de animais anualmente; mesmo que esta morte –
errônea e eufemisticamente denominada de ‘’eutanásia’’ – seja ‘’humanitária’’.
Como é humanitário, e virtuoso, enjaular, infligir dor e matar um ser que sofre
contra sua vontade? Eu, como biomédico e futuro bioeticista acredito ser mais provável que a virtuosidade anti-especista
esteja localizada, na verdade, num terreno próximo a ideia radical (e mais
sensata) de que os seres, antes de serem cobaias, são animais.
O presente
ensaio foi elaborado para disciplina de bioética ambiental do Programa de
Pós-Graduação em Bioética (PPGB), tendo como base as obras:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Mário da Gama
Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
BAUMANS, V. Use of animals in experimental research: an ethical dilemma?
Gene Therapy (11), 2004.BERTI, E. As Razões de Aristóteles. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1998.
FAGUNDES, D. J.; TAHA, M. O modelo animal de doença: critérios de escolha e espécies de animais de uso corrente. Acta Cirúrgica Brasileira 19 (1) 2004.
FRANCIONE, G. Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro? Campinas: Editora Unicamp, 2015.
HARTUNG, T. Toxicology for the twenty-first century. Nature 460, 2009.
OANNIDIS, J. P. A. Materializing research promise: opportunities, priorities and conflicts in translational medicine. Journal of Translational Medicine 2(1), 2004.
TAYLOR, K.; GORDON, N.; LANGLEY, G.; HIGGINS, W. Estimates for Worldwide Laboratory Animal Use in 2005. ATLA 36, 2008.
TRÉZ, T. Experimentação animal: um obstáculo ao avanço científico. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2015.
TRÉZ, T. O uso de animais vertebrados como recurso didático na Universidade Federal de Santa Catarina: panoramas, alternativas e a educação Ética. Monografia de Graduação em Ciências Biológicas – USFC, 2000.
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