Série Ensaios:
Bioética Ambiental
Por
Higor Esturião
Biomédico
e Mestrando do PPGB
Em
novembro de 2010, a Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA)
veiculou que cerca de 100 milhões de animais morrem no mundo anualmente para
fins de experimentação científica. A dúvida que se instala é: não deveríamos
debater mais seriamente sobre a questão, para além dos simplismos?

Contudo, apesar dos esparsos avanços
– que se inserem sobretudo no campo das ideias e menos no impedimento da dor
real experienciada pelos seres vivos sencientes dos laboratórios -, o número de
animais utilizados na pesquisa aumentou nas últimas décadas. No ano de 2017, o Departamento
de Agricultura dos Estados Unidos publicou um
relatório onde apresenta um aumento de 7% no número de animais usados em
experimentos naquele país. Mais especificamente no Brasil, somente na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o número de animais usados
cresceu de cerca de 15.000 para mais de 50.000, no período entre 1993 e 1999 (TRÉZ,
2000). Ainda sobre números, Fagundes
e Taha (2004) apontam que cerca de 85% dos artigos da Medline e 70% dos artigos
da Lilacs se referem a ratos e a camundongos, enquanto que Ionannidis (2012)
revela que, na pesquisa biomédica (aqui são incluídas as pesquisas clínicas e
as que utilizam outros métodos que não envolvem animais), 25% dos artigos fazem
referência ao termo ‘’animal’’ em seus resumos. Estima-se que cerca de 115
milhões de animais são mortos anualmente, numa escala planetária (número bem
próximo do veiculado pela ANDA, com o qual iniciamos este texto); segundo Taylor
(2008), porém, esses números são subestimados, visto que muitos países não
coletam e divulgam os dados e estatísticas envolvendo a experimentação.
Frente a estes espantosos números,
poderíamos nos perguntar: a experimentação animal constitui um desperdício? Não
só de recursos financeiros e de tempo - pois os testes precisam
obrigatoriamente passar pelos animais antes dos humanos -, mas também de vidas
e de possíveis novos modos não-especistas de fazer ciência. E como poderíamos estar
supostamente avançando no que tange os direitos
animais enquanto, ao mesmo tempo, os matamos cada vez mais para fins
científicos? Uma esquizofrenia
moral, como certeiramente apontou Francione
(2015). Além desse grande impasse ético que é o uso de seres vivos sencientes
contra seus próprios interesses em favor dos nossos, Thales Tréz aponta que a
experimentação animal também constitui um problema de ordem científica, visto
os inúmeros problemas advindos de uma prática que aceita o animal como um
modelo preditivo eficaz (TRÉZ, 2015). Este breve texto, porém, não possui a
finalidade de refletir sobre os conceitos de predição de modelos, mas sim,
levantar o debate sobre os diferentes desdobramentos do desperdício na pesquisa
com animais e sua relação com o princípio da virtude de Aristóteles.
Isso sem contar com os
questionamentos que deslegitimam a própria experimentação animal, no sentido abolicionista,
indo ao contrário dos movimentos que afirmam a situação que está dada, isto é,
que realizam críticas as práticas vivisseccionistas, mas com o pressuposto que
as mesmas irão continuar. A virtuosidade de Aristóteles, neste caso, fomenta
fissuras no status-quo-especista que legitima e enseja o (ab)uso de animais
para os mais diversos fins - fins estes sempre cobertos com envoltórios da
‘’necessidade’’ – ou se limita a engrenar os mesmos discursos de que é essencial
para a atividade científica o uso de ‘’cobaias’’? A sensatez e a prudência
aristotélicas apontam para novas possibilidades do fazer científico, ou acabam
resvalando para as mesmas práticas que enjaulam os animais com toques de
humanitarismo? As dúvidas soam como uma quase-aporia, mas, para além do beco
sem saída, é necessário questionar profundamente os modos de operação da
ciência, carregados de antropocentrismo, para abrir linhas de fuga que apontem
novas atividades e novos fazeres que sejam realmente éticos, e por que não
virtuosos? Se realmente quisermos injetar uma dose de virtuosidade na ciência
(uma virtuosidade anti-especista), é imprescindível uma superação – ou ao
menos, mais modestamente, pequenos vislumbres da superação - dos atuais
paradigmas, os quais sempre categorizam o animal como um objeto útil para
obtenção de resultados e carreiras. Pois virtuosidade é incompatível com a
atividade que mata milhões de animais anualmente; mesmo que esta morte –
errônea e eufemisticamente denominada de ‘’eutanásia’’ – seja ‘’humanitária’’.
Como é humanitário, e virtuoso, enjaular, infligir dor e matar um ser que sofre
contra sua vontade? Eu, como biomédico e futuro bioeticista acredito ser mais provável que a virtuosidade anti-especista
esteja localizada, na verdade, num terreno próximo a ideia radical (e mais
sensata) de que os seres, antes de serem cobaias, são animais.
O presente
ensaio foi elaborado para disciplina de bioética ambiental do Programa de
Pós-Graduação em Bioética (PPGB), tendo como base as obras:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Mário da Gama
Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
BAUMANS, V. Use of animals in experimental research: an ethical dilemma?
Gene Therapy (11), 2004.BERTI, E. As Razões de Aristóteles. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1998.
FAGUNDES, D. J.; TAHA, M. O modelo animal de doença: critérios de escolha e espécies de animais de uso corrente. Acta Cirúrgica Brasileira 19 (1) 2004.
FRANCIONE, G. Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro? Campinas: Editora Unicamp, 2015.
HARTUNG, T. Toxicology for the twenty-first century. Nature 460, 2009.
OANNIDIS, J. P. A. Materializing research promise: opportunities, priorities and conflicts in translational medicine. Journal of Translational Medicine 2(1), 2004.
TAYLOR, K.; GORDON, N.; LANGLEY, G.; HIGGINS, W. Estimates for Worldwide Laboratory Animal Use in 2005. ATLA 36, 2008.
TRÉZ, T. Experimentação animal: um obstáculo ao avanço científico. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2015.
TRÉZ, T. O uso de animais vertebrados como recurso didático na Universidade Federal de Santa Catarina: panoramas, alternativas e a educação Ética. Monografia de Graduação em Ciências Biológicas – USFC, 2000.
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