segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Negligência fatal. Por que estamos nessa situação?



Por Alexandre Szabô
Biomédico e aluno do Mestrado em Bioética




Há um total 1 bilhão de pessoas (uma em cada seis pessoas no mundo) afetadas pelo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) qualifica como enfermidades tropicais negligenciadas. É um grupo de 17 infecções bacterianas, parasitárias e virais que se instalam em pessoas com escassos recursos financeiros, sanitários e médicos e as afeta a nível físico de maneira severa. Essas infecções são as mais comuns entre as pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia, se estima que as Doenças Negligenciadas (DNs) causem a morte de 1 milhão de pessoas a cada ano e forçam a muitas outras a dedicar enormes quantidades de tempo, dinheiro e energia para manter-se com algo que se pareça com uma vida normal e ativa. As pessoas que sofrem com as DNs infelizmente não recebem a atenção, os recursos, a investigação e os cuidados que necessitam e entram num estado de profunda marginalização, são vulneráveis sociais, os “desempoderados” de acordo com Amartya Sem ou dos “excluídos e condenados da terra” no dizer de Paulo Freire, fazem parte de uma população tão desatendida e negligenciada como a própria enfermidade. As doenças negligenciadas continuam sendo um índice preocupante do descaso para com os cidadãos excluídos do sistema. Essas pessoas estão principalmente no campo, em áreas urbanas de pobreza extrema e em regiões de conflito. Sofrem de todo tipo de carência - água potável, escolaridade, saneamento básico, moradia e acesso a tratamentos de saúde.
Os avanços que a ciências biomédicas  tem alcançado para melhoria da qualidade de vida são notórios, porém enquanto uma pequena parte da população mundial tem direito à qualidade de vida e bem estar , a grande maioria fica privada disso, essas diferenças evidenciam ainda mais o quão desigual e contraditório a sociedade é, pois enquanto alguns se beneficiam dos frutos do desenvolvimento tecnológico na área médica, tem a oportunidade de ampliar suas expectativas de vida e de ter acesso a tratamentos de última geração para suas enfermidades, outras vivem como se estivessem três séculos atrás, quando epidemias por falta de saneamento básico se alastravam e dizimavam populações, essas disparidades e inacessibilidade da maioria da população mundial a uma existência digna revelam absoluta ausência de ética.
Para entendermos porque o sistema global capitalista gera tantas desigualdade, pessoas negligenciadas e doenças negligenciadas, é necessário entender que poderes e privilégios  pertencem a uma elite global, controladora de 99% do capital e que representam somente 1% da população mundial, essa elite detém o capital em diversas formas, mas principalmente nos setores de industrias, exemplo a farmacêutica e têxtil, no setor bancário, e também o setor extrativista , esse poder está sendo usados para distorcer o sistema econômico, aumentando ainda mais a desigualdade social. Devemos questionar a ordem estabelecida pela sociedade, existem ideias dominantes que distorcem o que olhos veem e escondem o que não deve ser visto, mas qual o motivo para se distorcer a realidade? Porque em vez de estabelecer uma economia que promove prosperidade para todos e as gerações futuras, temos uma economia que favorece somente 1% da população mundial?  Max Weber diria que os ricos querem ter direito a riqueza e a felicidade, isso significa que aqueles que tem privilégio e direitos a qualidade de vida, necessitam ser legitimado e aceito por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios, mesmo que para defender a ordem estabelecida seja necessário a expropriação de seus corpos e suas vidas. Em 1970 a classe dominante o 1 % mais rico detinha 50% da riqueza mundial, enquanto que as classes populares 50% mais pobres ficavam com meros 5% do capital mundial. Em 2015 o banco Credit Suisse publicou o relatório Global Wealth Report (Relatório da Riqueza Global) e o 1% mais rico da população mundial acumula mais riqueza atualmente que o resto do mundo junto, 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas, essas 62 pessoas tiveram um aumento de 45% desde de 2010 o que represente um aumento de mais de meio trilhão de dólares, de 542 bilhões de US$ para 1,76 trilhões de US$, do outro lada da balança os 50% mais pobres da população mundial obviamente tiveram uma queda nesse mesmo período de 38% um pouco mais de 1 trilhão de US$, é simples assim, em cinco anos subtraiu 38% dos mais pobres para aumentar a fortuna dos mais ricos. Ao analisar a fatia dos 50% mais pobres e desse grupo separar os 10 % que tem o menor rendimento médio anual chegaremos ao alarmante aumente de menos de US$ 3 em quase 25 anos. Essa crescente desigualdade econômica é ruim para todos nós, afetando de forma direta a coesão e o crescimento, e se torna mais crítico para os 50% mais pobres da população mundial.
É inegável que os beneficiários da economia mundial são os que estão no topo do sistema econômico, a política é manipulada e corrompida para garantir que o dinheiro se mantenha nessa posição, essa garantia se mantém através de articulações políticas, gestores, controle governamental e paraísos fiscais, mantendo toda essa riqueza longe dos excluídos. A tendência de gerar esse abismo entre o 1% mais rico e os 50% mais pobres tem como base alguns fatores como a diminuição da parcela de renda dos trabalhadores, ou seja, os trabalhadores estão ficando com uma parcela cada vez menor dos ganhos resultantes do crescimento econômico, enquanto que as elites globais viram sua fortuna crescer vigorosamente a uma taxa muito maior que o crescimento da economia.
Outro fator importante foi que nas últimas décadas aumentou consideravelmente a rede de paraísos fiscais e as indústrias de evasão fiscal, o que demostra claramente um sistema econômico manipulado para favorecer os donos do capital. Através da visão fundamentalista de especialistas do mercado é possível legitimar de forma espúria a necessidade de baixar ou burlar a tributação de indivíduos e empresas multimilionárias para estimular o crescimento econômico, quando na verdade são os que deveriam pagar mais impostos. A consequência desse sistema desonesto traz sérios problemas e cortes ao serviço público essencial, pois, os impostos não são pagos em decorrência de uma evasão fiscal generalizada. O governo sofre a pressão de ficar dependente de tributos indiretos, como o imposto sobre o valor agregado, recaindo sobre a população que mais precisa. A Oxfam analisou as 200 maiores empresas do mundo, e verificou que a cada 10 empresas 9 estão com capital em paraíso fiscal. Toda essa arquitetura capitalista drena a qualidade de vida da população pobre, os países ficam sem recursos para combater a pobreza, colocar e manter as crianças na escola e impedir que seus cidadãos faleçam em decorrência de doenças negligenciadas. Na África 30% da riqueza, cerca de US$ 500 bilhões são mantidos em offshore (paraíso fiscais), isso representa uma perda de 14 bilhões por ano em receita fiscais. Esses valores seriam suficientes para oferecer serviço de saúde para salvar a vida de 4 milhões de crianças e empregar professores o suficiente para manter todas as crianças africanas nas escolas.
Eu como biomédico e futuro bioeticista acredito que a Bioética de Intervenção ou Bioética Dura de acordo com Volnei Garrafa deve sustentar em qual direção as lutas sociais devem seguir para assegurar a tomada de consciência e libertação dos excluídos das forças que os oprimem, a bioética deve reforçar o lado mais frágil, a falta do conhecimento serve aos interesses dos que lucram com o sistema desigual, utilizando o dinheiro na vida social para comprar reconhecimento e legitimar privilégios, já que a alienação evita possíveis mudanças, existem possibilidades de reduzirmos essa abismo que gera a desigualdade social, é necessário uma cooperação global e assim poderemos combater paraísos fiscais corporativos e regimes fiscais nocivos e improdutivos, aumentar a transparência fiscal e reanalisar o acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sua sigla em inglês).
O presente ensaio foi elaborado para disciplina Bioética e Biologia tendo como apoio as obras:
CONTRA EL OLVIDO: Luchando para mejorarel manejo y control de laleishmaniasis visceral, laenfermedad de Chagas y latripanosomiasis humana africana. Genebra: Msf, 06 nov. 2013.
DEBORA "HARDOON" (Uk). Oxfam Internacional (Ed.). Documento Informativo da Oxfam 210: Uma economia para 01%. 210. ed. Oxford: Oxfam House, 2016. 52 f. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2016.
DESEQUILÍBRIO FATAL: A Crise em Pesquisa e Desenvolvimento de Drogas para Doenças Negligenciadas. Genebra: Médecins Sans Frontières – Msf, 01 fev. 2001. Disponível em:. Acesso em: 28 nov. 2013.
KAENZIG, Sadia et al. MSF e DNDi lançam apelo para aumentar a pesquisa e desenvolvimento (P&D) na luta contra as doenças negligenciadas. Disponível em: . Acesso em: 06 nov. 2013.
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MOLLER, Letícia Ludwig. Bioética e Direitos Humanos: delineando um biodireito mínimo universal. Filosofazer, Passo Fundo, v. 30, p.153-173, jun. 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 jun. 2016.
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ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (África). Escritório Regional Para A África (Ed.). Plano Estratégico Regional para as Doenças Tropicais Negligenciadas na Região Africana (2014 – 2020). Brazzaville: OMS, 2013. 36p
PIKETTY, Thomas. O Capital: no século XXI. 2014. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca Ltda, 2014. 812 f.
SANTOS, Ivone L.; GARRAFA, Volnei. Análise da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO à luz da Ética de paulo Freire. Redbioética, Bogotá, n. 2, p.130-135, jun. 2011.
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