É possível aprender com o Sofrimento do outro?


Série Ensaios: Ética no Uso de Animais





por Bruna Schaidt, Izadora Rafaela S. de Oliveira e Sayori Nakayama de Castro.
Graduandas do curso de Ciências Biológicas

Em junho de 2015, um grupo formado por professores, estudantes e profissionais atuantes na área de direitos animais se reuniu com o objetivo de eliminar práticas que geram sofrimento nos animais no campus da USP de Piracicaba (ESALQ – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz).

Essa iniciativa surgiu devido as sucessivas preocupações com a condição dos animais utilizados em ensino ou até mesmo em pesquisa na ESALQ. Em 2015, um documento foi escrito e assinado pelo Professor Dr. Marcos Sorrentino e pela Professora Dra. Maria Castellano, requisitando atenção da diretoria da universidade sobre o tema, e exige: “a libertação total dos animais de qualquer situação de exploração”. O documento ressalta o direito ético dos animais em serem livres:

“[…] podemos constatar que, pelo simples fato de estarem confinados e submetidos a condições não naturais, de exposição a momentos de estresse e dor, seu direito à vida, à liberdade e o direito de não sofrer […] estão sendo violados.”



A primeira resposta da universidade foi dizer que cumpre todas as normas federais para a pesquisa com animais, e que o Comitê de ética (CEUA) da ESALQ garantia os cuidados adequados. O grupo, então, propôs a realização de discussões e palestras a serem feitas no campus, para que os estudantes ficassem sabendo e participasse dos debates.  A proposta é que os animais parem de ser usados para fins de ensino ou científicos.






Essa questão de uso de animais aulas práticas, envolve o descaso com o bem-estar animal.  No Brasil o uso de animais como modelo de experimentação em aulas é permitido apenas no ensino superior, porém já é uma questão bastante problemática. A realização dessa prática é intensa e muitos pesquisadores ainda defendem a ideia de que é algo indispensável para a aprendizagem dos alunos. Além disso, segundo a União Britânica para a Abolição da Vivissecção, estima-se que 115 milhões de animais são usados para estes fins ao redor do mundo, porém este é um dado subestimado, uma vez que apenas 37 de 179 países coletam tais informações.

Uma questão importante levantada quanto ao uso desse modelo de aprendizado são os motivos que são usados para justificar a prática, pois normalmente os professores apenas expõem para os alunos algo que é confirmado há muito tempo, ou seja, não teria necessidade de usar modelos animais para reafirmar algo que já está comprovado na literatura. Outro ponto importante a ser discutido, são as condições que estes animais são mantidos, mesmo havendo algumas regras a serem seguidas para a realização das aulas. Não é apenas o uso para as práticas em si que tornam os casos preocupantes, mas como eles passam a vida em ambientes e condições totalmente fora da realidade da natureza deles. Gaiolas, jaulas, espaços reduzidos, falta de contato com outros da espécie, além de outros agravantes, torna a vida deles longe de ser uma vida de qualidade e com bem-estar.

alternativas para a substituição de animais em aulas práticas, como modelos mecânicos, que são praticamente idênticos às estruturas que devem ser observadas ou até mesmo usadas da mesma forma que estruturas vivas.




           

O assunto se torna cada vez mais discutido, pois as opiniões se dividem quanto ao uso dessa prática. Muito pesquisadores não abrem mão do uso de animais em aulas, porém, muitos já defendem e entendem que os animais são seres vivos, ou seja, organismos capazes de sentir dor e sofrimento, então não é aceitável que se faça uso deles.

Durante o debate realizado em sala sobre este tema em específico, foi possível notar que houve um consenso sobre a utilização de animais em aulas práticas. Notou-se que grande parte dos alunos que se manifestaram se mostraram de acordo com a opinião de que há outras opções para a visualização de demonstração em aulas práticas, e que concordaram que os pesquisadores e professores que não aceitam estes métodos alternativos deveriam abrir espaço para as novas tecnologias que permitem estas substituições.

A interação entre homens e animais sempre esteve presente na trajetória da humanidade, desde uma época onde os homens viviam em cavernas e encontravam na caça uma forma importante de sobrevivência. No debate da sala do 7º  período de Biologia, a primeira questão foi "os animais têm emoções e sentimentos?". Segundo Masson e Mccarthy, 1998, a emoção é um conjunto de todas as respostas motoras que o cérebro faz aparecer no corpo em resposta a algum evento. É um programa de movimentos como a aceleração ou desaceleração do batimento do coração, tensão ou relaxamento dos músculos e assim por diante. Já o sentimento é a forma como a mente vai interpretar todo esse conjunto de movimentos. Ele é a experiência mental, e alguns desses sentimentos não se relaciona com a emoção, mas com os movimentos do corpo. Por exemplo, quando sentimos fome, é uma interpretação da mente de que o nível de glicose está baixo e é preciso se alimentar. As emoções raramente aparecem em forma pura, isoladas das outras emoções, como raiva e medo, medo e amor, amor e vergonha sempre convergem em situações particulares.

Diversos estudos científicos apresentam resultados consideráveis de que os animais possuem essa capacidade. Atualmente, muitos cientistas defendem que todos os animais vertebrados, são sencientes em diferentes graus. A neurociência esta trabalhando com os estímulos nos diferentes sistemas emocionais, e as respostas dos humanos e dos animais são semelhantes. Esse fato é de fundamental importância, de maneira que a relação entre o homem e o animal deve ser respeitada, e com responsabilidade de preservar o bem-estar animal com a consciência de que os animais também possuem emoção e sentimentos.

Hoje existe um consenso de que a consciência é a propriedade de estar consciente de si mesmo e de seu lugar no ambiente (Damásio, 2011; Kandel,2003; Kolb & Whishaw, 2002). Cientistas concordam que a consciência não é um processo único, mas sim, uma coleção de vários processos, como os envolvidos à visão, à fala, ao pensamento, à emoção, entre outros (Kolb & Whishaw, 2002).  Com diferentes aspectos como nível generalizado de alerta, atenção, seleção do objeto da atenção baseada em objetivos, motivação e início da atividade motora e cognitiva, a consciência, está associada à atividade de neurotransmissores específicos produzidos pelos neurônios do tronco encefálico e transportados para o cérebro pelo sistema de ativação reticular. Os neurotransmissores são a serotonina, norepinefrina, acetilcolina, e dopamina (Lundy, 2008; Kolb & Whishaw, 2002).

Segundo um grupo de cientistas reunidos na Universidade de Cambridge proclamou que humanos não são os únicos seres conscientes. "Animais não-humanos como mamíferos e aves, e vários outros, incluindo o polvo, também possuem as faculdades neurológicas que geram consciência", declarou o grupo, na chamada Declaração de Cambridge. Um artigo escrito pela Helen Proctor, atual doutoranda em uma tese sobre senciência animal, e seus colegas da WSPA fornece uma revisão sistemática da literatura científica sobre senciência. O esforço utilizou uma lista de 147 palavras chave, e a equipe revisou mais de 2.500 trabalhos sobre senciência animal. Eles concluíram: “Evidências da senciência animal estão por toda parte”. Em particular interesse da Helen e de seus colegas, está a descoberta de “uma grande tendência dos estudos assumirem a existência de emoções negativas nos animais, tais como dor e sofrimento, em detrimento de emoções positivas, como alegria e prazer”.

Outro ponto é a utilização dos animais na alimentação, que para maioria das pessoas é algo necessário e insubstituível, porém muitos vegetarianos estão comprovando a possibilidade da obtenção da proteína dos animais por várias alternativas. Vários estudos já demonstraram que a pecuária é a principal causa das mudanças climáticas que presenciamos nos dias atuais. Isso porque, desde que houve o aumento exponencial da população, passou-se a destruir grandes áreas naturais, para a criação de pasto para gado. E, além disso, boa parte das monoculturas existe para suprir a demanda da alimentação dos animais da indústria pecuária.  O principal problema talvez não seja o uso do animal na alimentação, mas a maneira como eles são produzidos, bem como o seu desperdício.

 Outra maneira cruel da utilização dos animais é para o vestuário, onde o sofrimento no animal inicia do momento da captura, até a retirada da pele de maneiras cruéis e inaceitáveis para que a pele fique com uma determina textura desejada. Muitas pessoas não acham errado usar produtos de couro ou lã, por serem resultado da exploração de animais originalmente usados na alimentação, sendo uma destinação útil para um produto que, inevitavelmente seria descartado. Por outro lado, as peles se tornaram acessórios ultrapassados, provavelmente, reflexo dos movimentos pró-animal de repercussão internacional, bem como devido à eficácia e ao preço dos materiais sintéticos (Regan, 2006).

O uso e abuso de animais não parou por aí, eles também são usados para entretenimento, e esse é um dos casos que causa maior indignação. Muitas vezes, a utilização de animais para shows, circos, parques temáticos, touradas, rodeios, caça, práticas esportivas e zoológicos tem uma argumentação cultural, porém envolve diversas questões éticas discutíveis em relação ao bem-estar desses animais. É possível que a exploração de animais a partir de outras mídias, tais como cinema, TV, internet e jogos, tenha suprido a necessidade de presenciar os espetáculos. Legalmente, o uso de animais em circos foi proibido em diversos estados brasileiros, contudo, apesar dos inerentes maus-tratos, práticas como o rodeio são mantidas sob uma motivação econômica e cultural (Projeto Esperança Animal, 2015a). A limitação da compreensão da exploração animal para entretenimento ficou evidente na condenação aos circos, mas não na visão dos problemas envolvidos no confinamento de animais para exposição nos zoológicos, criados com o propósito de expor espécies exóticas (Sanders; Feijó, 2007). A disponibilização de informação sobre a vida dos animais transmitidas pela mídia e documentários, provavelmente tem tocado a sociedade, com a intenção de cobrar atitudes éticas, superando a demanda pública pela estética natural (Morris, 1990).

            Os animais são utilizados para diversos fins, para serviço e benefício do homem. Há muito tempo eles são utilizados como transporte mesmo diante de todo o avanço tecnológico, e a criação de automóveis, e até hoje cavalos servem para puxar carroças, cães são usados por deficientes visuais como guias, e diversos animais são usados em terapias. A sociedade aceita e até estimula a utilização de animais para trabalho, principalmente como meios de transporte, pois foram a base do desenvolvimento econômico e tecnológico da humanidade (Petroianu, 1996). Mesmo diante de todo o avanço da urbanização, o sustento de mais da metade da população mundial ainda depende dos animais de carga (world Animal Protection Brasil, 2007).

Foi no século XIX que a experimentação animal emergiu como um importante método científico (Orlans, 1993), com François Magendie como pioneiro nas experimentações. Os experimentos realizados por Magendie refletem em grande parte o pensamento cartesiano, isto é, não levavam em consideração o sofrimento do animal, já que o animal é visto como uma máquina.  Porém, antes, O’Meara (1614 -1681) já dizia que a agonia a que os animais eram submetidos daria origem a resultados distorcidos (Ryder, 1989). James Ferguson (1710-1776), o cientista considerado pioneiro em buscar alternativas à utilização de animais em experimentos, que criticava o sofrimento do animal utilizado em experimentos sobre a respiração e, em suas demonstrações públicas, utilizou um modelo de balão para simular os pulmões (Ryder, 1989). Embora a notável importância dos usos dos animais na pesquisa e nos avanços da medicina, cosméticos, indústria farmacêutica entre outros, aparece a questão da experimentação como um problema relacionado ao bem-estar animal, isto é, o estresse e a dor aos quais os animais são submetidos podem produzir alterações fisiológicas, as quais podem alterar os resultados obtidos (Wolfensohn & Lloyd, 1995: 174). Com o avanço tecnológico e cientifico, é completamente acessível o estudo e a criação de exemplares alternativos para testar produtos, como por exemplo, pele sintética, cultura de células e até mesmo o teste em humanos, desde que seus direitos sejam respeitados.

            Nós como futuros biólogos acreditamos que analisando todos os temas abordados, percebemos que o que falta é o entendimento da inteligência dos animais. Por mais que não os entendamos totalmente, e que o pouco que conseguimos decifrar de suas mentes seja algo muito superficial, não podemos negar de que sim, os animais possuem inteligência.      Nós humanos gostamos de nos vangloriar de como nossa mente funciona, subestimando assim outros assim outros seres, apenas porque não compreendemos sua natureza. Porém, não podemos afirmar que eles não possuem inteligência e que não pensam. Pesquisadores e estudiosos dos animais, já comprovaram que eles são capazes de pensar e agir através de um raciocínio previamente estabelecido.     Alguns dizem que até mesmo planejar o futuro pode ser feito por um animal, e não apenas humanos, como se pensava. Porém, é claramente mais fácil para alguns apenas aceitar que animais não possuem inteligência para que possam continuar à usa-los de forma abusiva, seja para trabalho ou pesquisa.   O que falta é o ser humano entender que não compreendemos tudo que vemos e, que para entender a mente de outro animal, é preciso que não os desvalorizemos.
                  
O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Etologia, tendo como base as obras
Animais têm consciência: trate-os como iguais. Edição 313,2012.  Recuperado em  http://super.abril.com.br/ciencia/animais-tem-consciencia-trate-os-como-iguais
Damásio, A. R. (2011). E o cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras.
Depois de 2.500 estudos, já não é hora de declararmos a senciência animal provada?. Recuperado em https://oholocaustoanimal.wordpress.com/2014/12/05/depois-de-2-500-estudos-ja-nao-e-hora-de-declararmos-a-senciencia-animal-provada/
Grupo da USP se reúne para acabar com sofrimento animal na ESALQ Recuperado em https://oholocaustoanimal.wordpress.com/2016/03/11/grupo-da-usp-se-reune-para-acabar-com-sofrimento-animal-na-esalq/
Helen S. Procto, Gemma Carder e Amelia R, Cornish, Seaching for Animal Sentience: A Systemactic Review of the Scientific Literatures. Animals, 2013, 882-906..
Kandel, E. R.; Schawartz, J. H. & Jessell, T. M. (2003). Princípios da Neurociência. 4ª Ed. Barueri: Manole.
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