segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Animais na pesquisa: usar ou não usar, eis a questão!



Série Ensaios: Ética no Uso de Animais e Bem-estar Animal

Por Daiane Priscila Simão-Silva e Gabriela Santos Rodrigues
Pós-doutoranda e Mestranda do Programa de Mestrado em Bioética – PUCPR

Quando o assunto é uso de animais em pesquisa vem logo à questão da aplicabilidade dos resultados das pesquisas no tratamento de muitas doenças e da possibilidade de cura para pessoas com deficiências. No dia Internacional da Pessoa com Deficiência (03/12) o tema foi abordado por alguns programas televisivos como  Encontro com Fátima Bernardes, que discutiu a questão de acessibilidade conversando com Katya Hemelrijk da Silva, a cadeirante que precisou arrastar-se por uma escada para conseguir entrar no avião no Aeroporto em Foz do Iguaçu - PR. Além das discussões e comemorações referentes à data, a presidente da República, Dilma Rousseff, assinou o Decreto do Autismo que agora segue para aprovação do Congresso Nacional. Surpreendentemente a pessoa com espectro autista ainda não tinha garantido o atendimento no âmbito de SUS. O decreto 12.764 determinou, só agora, que “a pessoa autista é considerada pessoa com deficiência para todos os efeitos legais.”
A falta de amparo, acessibilidade e leis em favor das pessoas com deficiência são apenas algumasdas dificuldades pelas quais elas passam. Quando olhamos para as formas de tratamento das deficiências nos deparamos com uma realidade também inóspita. Uma das dificuldades enfrentadas nessa área, principalmente em deficiências de ordem neurológica, como o autismo, é a forma de obtenção de modelos de pesquisa.
Muitas desordens neurológicas são pesquisadas através do desenvolvimento da doença em questão, em modelos animais, principalmente em ratos de laboratório. Para o autismo um dos primeiros modelos animal foi obtido em 2006.  Porém, os estudos com animais não tem gerado muitos avanços na forma de tratamento para as desordens neurológicas.  Para a doença de Alzheimer, a publicação na revista Nature Neuroscience, em 2002, foi de enorme repercussão, pois, revelava uma expectativa de cura para doença, a partir da descoberta da reversão de alguns déficits de memória em ratos com a demência. Estes animais haviam sido tratados com anticorpos monoclonais. A partir de então muitos ensaios clínicos foram realizados no mundo todo com idosos portadores de Alzheimer. No ano passado (2013) foi encerrado o último ensaio, ainda em fase 2, sem nenhum resultado positivo. Mas por que a pesquisa deu certo com os ratos e não com humanos? A resposta para essa questão desdobra em uma série de outras questões: Quais eram as condições das pesquisas com os ratos? Como os ratos estavam fisicamente e cognitivamente? Sim, ratos são seres vivos, com funções cognitivas, demandas físicas e comportamentais. São animais gregários (que vivem em grupos ou em bandos) com organização social própria da espécie. Possuem hábito noturno, com fobia de luz, altura, isso das que conhecemos, eles podem ter outras que não compreendemos. Quando estamos tratando de compreender as respostas das funções cognitivas como déficits de memória, comportamento, entre outras, a saúde cognitiva do indivíduo em estudo precisa ser priorizada para que as respostas sejam confiáveis. O que observamos em muitos artigos científicos é que essas questões não têm sido devidamente consideradas. O pesquisador solicita os animais, que vem em gaiolas para o local de experimento, e ali se segue o protocolo estipulado para os testes. Cuidados como posição da gaiola, luminosidade, vínculos sociais e elementos da gaiola que causam bem estar ao animal, pouco importam. Digamos que os resultados não fossem afetados por essas variáveis, podemos extrapolar o conhecimento sobre o cérebro de um rato para o de um cérebro humano?
É incontável o número de animais atualmente que são submetidos à experimentação sem antes termos as respostas básicas e primordiais para o sucesso da pesquisa. Podemos afirmar veemente que a causa pela qual se sacrifica estes animais, o tratamento para as desordens neurológicas, é nobre. Mas a nobreza da causa deve trazer a responsabilidade com a forma com que se conduz a pesquisa também. A reflexão conduzida pela bioética é no sentido de deliberar (Habermas) a fim de que o uso de animais na pesquisa atinja com qualidade os fins objetivados, mas para isso é imprescindível que tenha em vista o bem estar animal.
Hughes (1976) definiu bem-estar animal como um estado de completa saúde física e mental, em que o animal está em harmonia com o ambiente que o rodeia. Broom (1986) acrescenta que o bem-estar de um indivíduo é seu estado em relação às suas tentativas de adaptar-se ao seu ambiente. O filósofo Bernard Rollin (1981), tem uma visão ampla de bem-estar animal, pois ele inclui a satisfação das necessidades, vontades, desejos e objetivos na categoria de interesses. O bem estar-animal aceita a utilização de animais, mas defende a utilização adequada de animais reconhecendo as orientações trazidas na Teoria dos 3Rs de Russell e Burch (1959).  Braga (2010) ressalta que a corrente do bem estar animal também se preocupa com as condições ambientais adequadas para os animais, o que levará o pesquisador a obter resultados confiáveis e reproduzíveis. Para Broom (2004) as alterações fisiológicas e comportamentais se alteradas podem indicar um bem estar pobre. O Enriquecimento Ambiental surge como um manejo que visa melhorar a qualidade de vida dos animais auxiliando, consequentemente, seu bem estar. O Enriqucimento Ambiental consiste em aumentar e estimular o ambiente cativo, geralmente pela introdução de objetos com os quais os animais possam se entreter (COSTA e PINTO, 2006).
            Um ótimo exemplo de possibilidade de substituição de modelo animal em estudos neurológicos é a pesquisa que vem sendo conduzido pelo neuroscientista brasileiro Alysson Muotri. O seu grupo de pesquisa, na Universidade da Califórnia, já conseguiu avançar muito no estudo em autismo utilizando células tronco adultas. O grupo conseguiu reprogramar células da pele e de poupa de dente, de pacientes com autismo, em neurônios. O estudo comparativo dos neurônios de laboratório (Para ver o vídeo clique aqui) com e sem o espectro autista permitiu avançar na compreensão da doença. Muotri aponta que a reprogramação de células tronco adultas pode ser aplicada para outros tipos de doenças neurológicas. Esse é um exemplo de avanço no conhecimento que permite a aplicação dos três erres, sendo neste caso a substituição (replacement), avançando na pesquisa de forma eficiente e sem comprometimento animal.
           
Nós, como futuras bioeticistas, trazemos a discussão sobre o uso de animais na pesquisa de forma a ponderar ambas as necessidades. Constando, de um lado as demandas científicas, que visam avançar em formas de tratamentos eficientes para muitas doenças, principalmente as neurológicas. E de outro, as necessidades dos animais, que no caso da pesquisa, são vulnerabilizados, sendo assim responsabilidade e compromisso do ser humano zelar pela qualidade de vida e propiciar condições de bem estar, evitando dano aos animais. Tais cuidados com a vida animal somente enriquecem os resultados dos experimentos, assim como desenvolver metodologias alternativas, evitando o uso dos animais, enriquecem nossa relação com a natureza e nos permite avançar de forma justa e com equidade.
O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bem Estar Animal tendo como base as obras:

BRAGA LMGM. Animal como um modelo experimental: noções básicas de genética,  sanidade, alojamento e manutenção de animais de laboratório. In: Feijó AGS, Braga  LMGM, Pitrez PMC, organizadoras. Animais na pesquisa e no ensino: aspectos éticos e  técnicos. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2010. p.171-86.
BROOM DM, MOLENTO CFM. Bem-estar animal: conceito e questões relacionadas – revisão. Arch Vet Sci. 2004;9(2):1-11
COSTA MJRP, PINTO AA. Bem-estar animal. In: Rivera EAB, Amaral MH, Nascimento VP, organizadores. Ética e bioética: aplicadas à  medicina veterinária. Goiânia: UFG; 2006. p. 105-30

DODART JC, BALES KR, GANNON KS, et al., 2002. Immunization reverses memory deficits without reducing brain Abeta burden in Alzheimer's disease model. Nat Neurosci. May; 5(5):452-7.

GRACIA D. 2009. Deliberación Moral. El papel de las metodologías en ética clínica [vídeo: material didáctico del curso]. Madrid: Universidad Complutense.

HOSSNE WS, 2009. Dos referenciais da Bioética – a vulnerabilidade. Centro Universitário São Camilo - 2009; 3(1):41-51.

HUGHES, B.O. Behaviour as Index of Welfare. Proceedings Vth  European Poultry. 1976 Conference, Malta, 1005-1018.

MOY SS. NADLER JJ, MAGNUSON TR, CRAWLEY JN, 2006. Mouse models of autism spectrum disorders: the challenge for behavioral genetics. Am J Med Genet C Semin Med Genet.  Feb 15;142C (1):40-51.

ROLLIN, B. E. Animal rights and human morality.Buffalo: Prometheus Books, 1981.

RUSSEL WMS, Burch L. The principles of humane experimental techniques: special edition.  London: Universities Federation for Animal Welfare; 1992.

WANG YJ. 2014. Alzheimer disease: Lessons from immunotherapy for Alzheimer disease. Nat Rev Neurol. Apr 10(4):188-9.

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