segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Discovery goela abaixo



Série Ensaios: Ética no Uso de Animais e Bem-estar Animal

Por Daniel Santiago Rucinque, Janaina Hammerschmidt e Paloma Lucin Bosso

Médicos veterinários, mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias UFPR

Recentemente a notícia de que um homem seria ser engolido por uma serpente impactou na internet. A ideia da emissora Discovery Channel era transmitir o episódio de “Eaten Alive” no qual uma serpente engoliria um homem vivo, vestindo um capacete, uma proteção corporal especial e com comunicação direta com uma equipe de monitoramento do programa. O cineasta e naturalista Paul Rosolie utilizou sangue de porco para atrair o animal que assim começou a engolí-lo. Embora seja amplamente conhecido que estes répteis em vida livre matam suas presas por asfixia, se enrolando nas mesmas até que estas deixem de respirar (AMARAL, 1978) e que o próprio Paul afirme que não há evidências de que esta espécie de animal já tenha ingerido um ser humano,  a justificativa apresentada para a realização do programa foi a proteção da espécie! Ora quanta incoerência, não?! Promover um comportamento não natural num espécime para incentivar a sua conservação não nos parece fazer tanto sentido...

Há tempos o uso de animais para entretenimento do público é criticado. Quando não há qualquer preocupação com a qualidade de vida do animal a ser usado no “experimento” e apenas o sadismo é considerado, esta questão torna-se ainda mais polêmica. A legislação brasileira, por exemplo, considera maus-tratos praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal. A própria concepção de zoológico que inicialmente apresentava uma visão destinada ao lazer do público que frequentava o local e pouco se preocupava com a qualidade de vida animal (YOUNG, 2003) foi alterada e com isso a educação ambiental passou a ser prioridade nestas instituições, assim como o desenvolvimento de pesquisas e projetos que visem a conservação de espécies ameaçadas de extinção e dos seus habitats. Neste panorama atual, estabelecido pela World Association of Zoos and Aquariums (WAZA) o lazer passou a ser uma consequência e não mais o objetivo de um zoológico (DICK; GUSSET, 2010).
Assim, como era de se esperar, desde o anuncio, o episódio foi fortemente criticado no mundo inteiro, por meio de publicações, por exemplo, veiculadas pela People for the Ethical Treatment of Animals (PETA) e por meio de críticas feitas por leigos na internet. Com a recente exibição do episódio nos Estados Unidos as recriminações foram ainda maiores, talvez por terem evidenciado a despreocupação com o bem-estar do animal, mas especialmente pelo despreparo e amadorismo com que a pauta foi sugerida. A busca por um animal grande o suficiente em meio a Amazonia Peruana parece ter sido uma das poucas preocupações da produção do programa, assim como o modo com que o apresentador seria resgatado. Aspectos anatômicos e fisiológicos da espécie foram totalmente ignorados pela equipe, provavelmente por ingenuamente acreditarem que eles não ofereceriam risco algum ao apresentador ou à realização da atividade. No entanto, quando a sucuri (Eunectes murinus) já tinha ingerido a cabeça do pseudo-naturalista e começou a intensificar o sufocamento de Paul, ele se solicitou a intervenção da equipe de apoio dizendo: “Não consigo sentir meus braços." "Ela está me apertando demais." "Socorro!”. A intervenção imediata para a retirada do corpo do Paul fez com que então o programa fosse encerrado sem a tão anunciada ingestão viva.
Se antes os questionamentos já eram incontáveis, após a exibição do episódio o programa atingiu o trending topics no Twitter. No Brasil inclusive a Sociedade de Zoológicos e Aquários do Brasil fez um pronunciamento em sua página no facebook criticando a proposta e a concretização da ação, bem como alertando para os prováveis malefícios que o fato podem trazer para a conservação desta e de outras espécies de serpentes.
Este exemplo é ideal para inserir o conceito da biofilia nas nossas relações com a natureza e principalmente com os seres sencientes. Segundo estabelecido por Wilson (1984, apud KELLERT; WILSON, 1995), a hipótese da biofilia é caracterizada pela necessidade inerente e inata que os seres humanos tem de afiliar-se com diferentes formas de vida e processos naturais. Assim, a necessidade humana do link com a natureza não precisa ser justamente para exploração do meio ambiente, mas sim pela influencia que o mundo natural tem em nosso desenvolvimento emocional, cognitivo, estético e espiritual. A hipótese sugere que a ligação entre seres humanos e a natureza, conferiram distintas vantagens de adaptação, persistência e sucesso como indivíduos e espécie ao longo da evolução humana (GULLONE, 2002). Porém, no caso Paul Rosolie a expressão da biofilia por meio de uma abordagem naturalista, na qual há o desejo de conhecer a natureza por meio de contato direto com ela, causou impactos negativos sobre o animal envolvido. Além disso, a aventura teve um grande potencial negativo de veiculação de ideias opostas ã conservação para o público que acompanhou o episódio.  
Mas será que o interesse humano poderia justificar a dor, o estresse e a potencial risco de morte deste animal? E houve alguma reflexão sobre o possível impacto deste ato inconsequente para outros animais da mesma espécie e até mesmo para outras espécies?
Certamente não, mas infelizmente, este tipo de apelo na mídia vem se tornando cada vez mais comum, já que por gerar curiosidade sobre as pessoas tende a provocar grande impacto, motivos estes que podem gerar grande audiência e consequente rentabilidade para a emissora e/ou apresentador. No entanto, esta justificativa é totalmente antropocêntrica pois só interessam os benefícios destinados aos seres humanos, por meio da utilização dos animais. Do ponto de vista da biofilia esta abordagem é ainda conhecida como dominante, afinal o ser humano tem domínio total dos elementos na natureza.
O ator principal do caso, o animal, foi motivado com o sangue do porco para executar um comportamento que provavelmente não faria em vida livre. Neste sentido, de acordo com o padrão comportamental de caça das serpentes, ingerir e digerir uma pressa grande como um ser humano requer uma grande quantidade de energia que provavelmente não valeria a pena. Considerando que todos os seres sencientes têm interesse em não sofrer, o ato de incitar a ingestão de uma presa grande como o ser humano é totalmente contra o comportamento natural das serpentes e oposto aos preceitos de bem-estar animal.
Nós, como profissionais da área de bem-estar, concluímos que o episódio causou sofrimento para o animal utilizado, bem como não trará nenhum benefício para a conservação da espécie. Para contribuir de forma efetiva com a conservação dos animais em seus habitats naturais é fundamental que ações educativas que desencadeiem empatia e apreciação sejam realizadas (BOSTOCK, 2005). Já que, percepções públicas a respeito dos animais podem variar por diferentes fatores, é necessário que distintas relações públicas sejam consideradas cautelosamente (ALLEN, 1995) para uma tomada de decisão. Não adianta, portanto, justificar fins conservacionistas para uma ação quando o ambiente em que esta mensagem está sendo transmitida é totalmente incoerente com a natureza do animal ou da espécie. Imaginando consequências ainda piores, quem nos garante que o episódio em questão não poderá desencadear uma matança de serpentes motivada pela biofobia e aversão provocadas por este ato inconsequente?

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bem Estar Animal tendo como base as obras:

ALLEN, Karen. Putting the spin on animal ethics: ethical parameters for marketing and public relations. In: NORTON, Bryan G. et al. Ethics on the Ark: Zoos, animal welfare and wildlife conservation. Washington: Smithsonian Institute Press. 1995.
AMARAL, Afrânio do. Serpentes do Brasil: iconografia colorida. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
BOSTOCK, Stephen St. C. Zoos and animal rights: the ethics of keeping animals. 3rd ed. New York: Routledge. 2002.
DICK, Gerald; GUSSET, Markus (Ed.). Building a future for wildlife: zoos and aquariums committed to biodiversity conservation. Switzerland: WAZA Executive Office, 2010.
GULLONE, E. The biophilia hypothesis and life in the 21st century: increasing mental health or increasing pathology? Journal of Happiness Studies. 1: 293-321, 2000.
WILSON, Edward O. Biophilia: the human bond with the others species. Cambridge: Harvard University Press. 1984. Apud: KELLERT, Stephen R; WILSON, Edward O. (ed). The biophilia hypothesis. Island Press, 1995.
YOUNG, Robert J. Environmental enrichment for captive animals. United Kingdom: Blackwell Publishing, 2003.


Nenhum comentário:

Postar um comentário