Série Ensaios: Ética no Uso de Animais e Bem-estar Animal
Por
Daniel Santiago Rucinque, Janaina Hammerschmidt e Paloma Lucin Bosso
Médicos veterinários, mestrandas do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Veterinárias UFPR
Recentemente a notícia de que um homem seria ser engolido por uma serpente
impactou na internet. A ideia da
emissora Discovery Channel era transmitir o episódio
de “Eaten Alive” no qual uma serpente engoliria um homem vivo, vestindo um
capacete, uma proteção corporal especial e com comunicação direta com uma
equipe de monitoramento do programa. O cineasta e naturalista Paul Rosolie utilizou sangue de porco
para atrair o animal que assim começou a engolí-lo. Embora seja amplamente
conhecido que estes répteis em vida livre matam suas presas por asfixia, se
enrolando nas mesmas até que estas deixem de respirar
(AMARAL, 1978) e que o próprio Paul
afirme que não há evidências
de que esta espécie de animal já tenha ingerido um ser humano, a justificativa
apresentada para a realização do programa foi a proteção da espécie!
Ora quanta incoerência, não?! Promover um comportamento não natural num
espécime para incentivar a sua conservação não nos parece fazer tanto
sentido...
Há
tempos o uso de animais para entretenimento do público é criticado. Quando não
há qualquer preocupação com a qualidade de vida do animal a ser usado no
“experimento” e apenas o sadismo é considerado, esta questão torna-se ainda
mais polêmica. A legislação brasileira, por exemplo, considera maus-tratos praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal. A própria concepção de zoológico que
inicialmente apresentava uma visão destinada ao lazer do público que
frequentava o local e pouco se preocupava com a qualidade de vida animal
(YOUNG, 2003) foi alterada e com isso a educação ambiental passou a ser
prioridade nestas instituições, assim como o desenvolvimento de pesquisas e
projetos que visem a conservação de espécies ameaçadas de extinção e dos seus
habitats. Neste panorama atual, estabelecido pela World Association of Zoos and Aquariums (WAZA) o lazer passou a ser
uma consequência e não mais o objetivo de um zoológico (DICK; GUSSET, 2010).
Assim,
como era de se esperar, desde o anuncio, o episódio foi fortemente criticado no
mundo inteiro, por meio de publicações, por exemplo, veiculadas pela People for the Ethical Treatment of Animals
(PETA)
e por meio de críticas feitas por leigos na internet. Com a recente exibição do episódio nos Estados Unidos as recriminações
foram ainda maiores, talvez por terem evidenciado a despreocupação com o
bem-estar do animal, mas especialmente pelo despreparo e amadorismo com que a
pauta foi sugerida. A busca por um animal grande o suficiente em meio a
Amazonia Peruana parece ter sido uma das poucas preocupações da produção do
programa, assim como o modo com que o apresentador seria resgatado. Aspectos
anatômicos e fisiológicos da espécie foram totalmente ignorados pela equipe,
provavelmente por ingenuamente acreditarem que eles não ofereceriam risco algum
ao apresentador ou à realização da atividade. No entanto, quando a sucuri (Eunectes murinus) já tinha ingerido a
cabeça do pseudo-naturalista e começou a intensificar o sufocamento de Paul,
ele se solicitou a intervenção da equipe de apoio dizendo: “Não consigo sentir
meus braços." "Ela está me apertando demais." "Socorro!”. A
intervenção imediata para a retirada do corpo do Paul fez com que então o programa fosse encerrado sem a tão
anunciada ingestão viva.
Se
antes os questionamentos já eram incontáveis, após a exibição do episódio o programa atingiu o trending topics no Twitter. No
Brasil inclusive a Sociedade de Zoológicos e Aquários do Brasil fez um pronunciamento em sua página no facebook
criticando a proposta e a concretização da ação, bem como alertando para os
prováveis malefícios que o fato podem trazer para a conservação desta e de
outras espécies de serpentes.
Este
exemplo é ideal para inserir o conceito da biofilia nas nossas relações
com a natureza e principalmente com os seres sencientes.
Segundo estabelecido por Wilson (1984, apud KELLERT; WILSON, 1995), a hipótese da biofilia é caracterizada pela necessidade
inerente e inata que os seres humanos tem de afiliar-se com diferentes formas
de vida e processos naturais. Assim, a necessidade humana do link com a natureza não precisa ser
justamente para exploração do meio ambiente, mas sim pela influencia que o
mundo natural tem em nosso desenvolvimento emocional, cognitivo, estético e
espiritual. A hipótese sugere que a ligação entre seres humanos e a natureza,
conferiram distintas vantagens de adaptação, persistência e sucesso como
indivíduos e espécie ao longo da evolução humana (GULLONE, 2002). Porém, no
caso Paul Rosolie a expressão da biofilia por meio de uma abordagem naturalista,
na qual há o desejo de conhecer a natureza por meio de contato direto com ela,
causou impactos negativos sobre o animal envolvido. Além disso, a aventura teve
um grande potencial negativo de veiculação de ideias opostas ã conservação para
o público que acompanhou o episódio.
Mas será que o interesse humano poderia
justificar a dor, o estresse e a potencial risco de morte deste animal? E houve
alguma reflexão sobre o possível impacto deste ato inconsequente para outros
animais da mesma espécie e até mesmo para outras espécies?
Certamente
não, mas infelizmente, este tipo de apelo na mídia vem se tornando cada vez
mais comum, já que por gerar curiosidade sobre as pessoas tende a provocar
grande impacto, motivos estes que podem gerar grande audiência e consequente
rentabilidade para a emissora e/ou apresentador. No entanto, esta justificativa
é totalmente antropocêntrica pois
só interessam os benefícios destinados aos seres humanos, por meio da utilização
dos animais. Do ponto de vista da biofilia esta abordagem é ainda conhecida
como dominante, afinal o ser humano tem domínio total dos elementos na
natureza.
O ator principal
do caso, o animal, foi motivado com o sangue do porco para executar um
comportamento que provavelmente não faria em vida livre. Neste sentido, de
acordo com o padrão comportamental de caça das serpentes, ingerir e digerir uma
pressa grande como um ser humano requer uma grande quantidade de energia que
provavelmente não valeria a pena. Considerando que todos os seres sencientes
têm interesse em não sofrer, o ato de incitar a ingestão de uma presa grande
como o ser humano é totalmente contra o comportamento natural das serpentes e
oposto aos preceitos de bem-estar animal.
Nós,
como profissionais da área de bem-estar, concluímos que o episódio causou
sofrimento para o animal utilizado, bem como não trará nenhum benefício para a
conservação da espécie. Para contribuir de forma efetiva com a conservação dos
animais em seus habitats naturais é fundamental que ações educativas que
desencadeiem empatia e apreciação sejam realizadas (BOSTOCK, 2005). Já que,
percepções públicas a respeito dos animais podem variar por diferentes fatores,
é necessário que distintas relações públicas sejam consideradas cautelosamente
(ALLEN, 1995) para uma tomada de decisão. Não adianta, portanto, justificar fins
conservacionistas para uma ação quando o ambiente em que esta mensagem está
sendo transmitida é totalmente incoerente com a natureza do animal ou da
espécie. Imaginando consequências ainda piores, quem nos garante que o episódio
em questão não poderá desencadear uma matança de serpentes motivada pela
biofobia e aversão provocadas por este ato inconsequente?
O presente ensaio foi elaborado para
disciplina de Bem Estar Animal tendo como base as obras:
ALLEN, Karen. Putting
the spin on animal ethics: ethical parameters for marketing and public relations. In: NORTON, Bryan G. et al. Ethics on the Ark: Zoos, animal welfare and
wildlife conservation. Washington: Smithsonian Institute Press.
1995.
AMARAL,
Afrânio do. Serpentes do Brasil: iconografia colorida. 2. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1978.
BOSTOCK, Stephen St. C. Zoos and animal rights: the
ethics of keeping animals. 3rd ed. New York: Routledge. 2002.
DICK, Gerald; GUSSET, Markus (Ed.). Building a
future for wildlife: zoos and aquariums committed to biodiversity conservation.
Switzerland: WAZA Executive Office, 2010.
GULLONE, E. The biophilia hypothesis and life in the 21st century:
increasing mental health or increasing pathology? Journal of Happiness Studies. 1: 293-321, 2000.
WILSON, Edward O. Biophilia: the human bond
with the others species. Cambridge: Harvard University Press. 1984. Apud:
KELLERT, Stephen R; WILSON, Edward O. (ed). The biophilia hypothesis. Island
Press, 1995.
YOUNG, Robert J. Environmental enrichment for
captive animals. United
Kingdom: Blackwell Publishing, 2003.
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