Série Ensaios: Ética no Uso de
Animais e Bem-estar Animal
Por Fabiana Stamm e Priscilla Tamioso
Alunas da disciplina de Bioética e Bem-estar Animal da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Paraná
Quando se fala em
animais de fazenda, ou animais usados para a produção de alimentos, em quais
você pensa? Bois, vacas, porcos, galinhas...?
Carneiros e
ovelhas também foram lembrados por você?
Se sim, como eles foram
imaginados, ou ilustrados em sua mente? Com lã, um balido característico
(“méeeeee”), em grupos, membros seguindo um líder e...
Opa, carneiros e
ovelhas possuem cauda?
Em histórias
infantis os ovinos (grupo que abrange carneiros, ovelhas e cordeiros) geralmente
são ilustrados sem a presença da cauda, gerando a ideia de que cauda curta ou
ausente nestes animais é algo natural. Em outras palavras, desde a infância
somos levados a pensar que caudas em ovinos são como penas em coelhos. Os
consumidores (e não) de alimentos de origem ovina, que muitas vezes não têm
contato com estes animais e com os sistemas produtivos de criação, também
acreditam que os ovinos já nascem com a cauda curta, e desconhecem o processo
da caudectomia.
Caudectomia? O que
significa isso?
A caudectomia ou descola
é uma prática amplamente empregada na produção de ovinos e que consiste na
remoção da cauda sob a justificativa principal de auxiliar na saúde e higiene
dos animais. A caudectomia é geralmente realizada por meio do uso de ferro
quente, anel de borracha, esmagamento seguido de corte e método cirúrgico
(NATIONAL FARM ANIMAL CARE COUNCIL, 2013).
Na visão dos
ovinocultores, ou produtores de ovinos, a caudectomia é uma prática recomendada
sob a justificativa de que caudas longas e lanosas facilitam o acúmulo de
matéria fecal, atraindo moscas (SCHOENIAN, 2012). Entretanto, pesquisas refutam
esse argumento. SUTHERLAND e TUCKER (2011), em revisão sobre caudectomia em
animais de produção, verificaram, em estudos realizados em três diferentes
propriedades na Austrália comparando ovinos sem cauda com ovinos com cauda, a
redução na prevalência de miíases em indivíduos caudectomizados em apenas uma
das propriedades estudadas.
Opa, então seria o
contrário?
Bem, mais estudos
estão sendo realizados para verificar se o corte de cauda auxilia ou atrapalha
a vida dos ovinos.
Mas o que diz a
legislação sobre a caudectomia?
A legislação que
dispõe sobre tal prática encontra-se na Resolução nº 877, de 15 de fevereiro de
2008 (http://www.cfmv.org.br/portal/legislacao/resolucoes/resolucao_877.pdf),
e proíbe a caudectomia em ruminantes, exceto em ovinos lanados, porém com
acompanhamento de um médico veterinário. Entretanto, sabe-se que na realidade poucos
ovinocultores contratam um médico veterinário para realizar os procedimentos
corretos de anestesia e analgesia durante a remoção da cauda.
Considerando-se o
bem-estar dos animais envolvidos, a caudectomia está associada ao desconforto e
dor aguda, podendo resultar, inclusive, em reações de dor crônica (DWYER,
2008), além de que não há interesse do animal em sofrer. Pelo princípio da
analogia, cirurgias que forem avaliadas como dolorosas aos humanos assim também
deverão ser consideradas para os animais, havendo logicamente variações em grau
(PULZ, 2013). O dano diretamente associado com a caudectomia pode ser
considerado sob várias categorias, incluindo dor aguda e estresse, associados
com o procedimento de amputação em si, dor de médio termo, relacionados à
inflamação ou necrose, dor crônica de longo termo, como resultado de dano do
nervo e formação do neuroma. Além destes, pode ser citada a própria ausência da
cauda, que tem efeitos adversos na vida subsequente do animal (EDWARDS &
BENNETT, 2014), incluindo-se a inabilidade do uso da cauda para funções biológicas,
como espantar moscas, comunicar-se com e reconhecer coespecíficos, além de
expressar estados emocionais.
Face ao exposto, é
fácil compreender que a caudectomia é uma prática que engloba diferentes
interesses, mas como resolver estes impasses?
Faz-se necessário
o uso de ferramentas disponíveis pela ciência da Bioética, a qual se constitui
no exame sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da
saúde, à luz de valores e de princípios morais. A Bioética aborda os problemas
éticos de todos os setores sociais, incluindo aqueles associados às relações
entre seres humanos e animais não humanos. No contexto da caudectomia, duas
vertentes da ética contemporânea podem ser utilizadas para o questionamento
proposto: a senciocêntrica, caracterizada pela ênfase na senciência (capacidade
de sentir emoções) como parâmetro para ingresso na comunidade dos seres dignos
de consideração moral e a biocêntrica, que não privilegia nem a racionalidade,
nem a sensibilidade mental, ao definir quem são os sujeitos morais, mas o
bem-próprio, considerado um valor inerente à vida, algo que a ética deve
preservar (FILIPE, 2009).
Sendo o ser humano
um agente moral e, portanto, responsável por seus atos, é seu dever evitar ao
máximo o sofrimento nos animais. Portanto, nós
como profissionais da área de bem-estar animal acreditamos que o corte
da cauda de ovinos, por ser uma prática que causa dor e desconforto nos
animais, não deveria ser realizada, havendo a necessidade de desenvolver melhores
práticas de manejo nas fazendas para, com isso, evitar ao máximo o sofrimento dos
animais sob nossa responsabilidade.
O presente ensaio foi elaborado para Disciplina de Ética no Uso de
animais e Bem-estar Animal, tendo como base as obras:
CFMV - Conselho Federal de Medicina Veterinária. RESOLUÇÃO Nº 877, DE 15 DE FEVEREIRO DE
2008. Dispõe sobre os procedimentos cirúrgicos em animais de produção e em
animais silvestres; e cirurgias mutilantes em pequenos animais e dá outras
providências. 2008.
DWYER, C. The welfare of sheep. Reino Unido: Springer, 2008.
EDWARDS, S.; BENNETT, P. Tales about Tails: Is the Mutilation of
Animal Justifiable in Their Best Interests or in Ours? In: APPLEBY, M. C.;
WEARY, D. M.; SANDØE, P. Dilemmas in
animal welfare. Reino Unido: CABI, 2014. p. 6-27.
FILIPE, S. T. Antropocentrismo,
sencientismo e biocentrismo: Perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas
e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos. 2009.
NATIONAL FARM ANIMAL CARE COUNCIL. Code of practice: For the care and handling
of sheep. Canadá: Canadian Sheep Federation, 2013.
PULZ, R. S. Ética
e Bem-estar Animal. Canoas: Editora da ULBRA, 1ª Ed, 168 p, 2013.
SCHOENIAN, S. The welfare of docking and castrating lambs. 2012. Disponível em:
SUTHERLAND, M.A.;
TUCKER, C. B. The long and short of it: A review of tail docking in farm
animals. Applied Animal Behaviour
Science. v.135, p.179-191, 2011.
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