segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Cortar ou não cortar?



Série Ensaios: Ética no Uso de Animais e Bem-estar Animal

Por Fabiana Stamm e Priscilla Tamioso

Alunas da disciplina de Bioética e Bem-estar Animal da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Paraná


Quando se fala em animais de fazenda, ou animais usados para a produção de alimentos, em quais você pensa? Bois, vacas, porcos, galinhas...?



 Carneiros e ovelhas também foram lembrados por você? 

 
Se sim, como eles foram imaginados, ou ilustrados em sua mente? Com lã, um balido característico (“méeeeee”), em grupos, membros seguindo um líder e... 



Opa, carneiros e ovelhas possuem cauda?

Em histórias infantis os ovinos (grupo que abrange carneiros, ovelhas e cordeiros) geralmente são ilustrados sem a presença da cauda, gerando a ideia de que cauda curta ou ausente nestes animais é algo natural. Em outras palavras, desde a infância somos levados a pensar que caudas em ovinos são como penas em coelhos. Os consumidores (e não) de alimentos de origem ovina, que muitas vezes não têm contato com estes animais e com os sistemas produtivos de criação, também acreditam que os ovinos já nascem com a cauda curta, e desconhecem o processo da caudectomia.

Caudectomia? O que significa isso?

A caudectomia ou descola é uma prática amplamente empregada na produção de ovinos e que consiste na remoção da cauda sob a justificativa principal de auxiliar na saúde e higiene dos animais. A caudectomia é geralmente realizada por meio do uso de ferro quente, anel de borracha, esmagamento seguido de corte e método cirúrgico (NATIONAL FARM ANIMAL CARE COUNCIL, 2013).


Na visão dos ovinocultores, ou produtores de ovinos, a caudectomia é uma prática recomendada sob a justificativa de que caudas longas e lanosas facilitam o acúmulo de matéria fecal, atraindo moscas (SCHOENIAN, 2012). Entretanto, pesquisas refutam esse argumento. SUTHERLAND e TUCKER (2011), em revisão sobre caudectomia em animais de produção, verificaram, em estudos realizados em três diferentes propriedades na Austrália comparando ovinos sem cauda com ovinos com cauda, a redução na prevalência de miíases em indivíduos caudectomizados em apenas uma das propriedades estudadas.  

Opa, então seria o contrário?

Bem, mais estudos estão sendo realizados para verificar se o corte de cauda auxilia ou atrapalha a vida dos ovinos.
 
Mas o que diz a legislação sobre a caudectomia?

A legislação que dispõe sobre tal prática encontra-se na Resolução nº 877, de 15 de fevereiro de 2008 (http://www.cfmv.org.br/portal/legislacao/resolucoes/resolucao_877.pdf), e proíbe a caudectomia em ruminantes, exceto em ovinos lanados, porém com acompanhamento de um médico veterinário.  Entretanto, sabe-se que na realidade poucos ovinocultores contratam um médico veterinário para realizar os procedimentos corretos de anestesia e analgesia durante a remoção da cauda.
Considerando-se o bem-estar dos animais envolvidos, a caudectomia está associada ao desconforto e dor aguda, podendo resultar, inclusive, em reações de dor crônica (DWYER, 2008), além de que não há interesse do animal em sofrer. Pelo princípio da analogia, cirurgias que forem avaliadas como dolorosas aos humanos assim também deverão ser consideradas para os animais, havendo logicamente variações em grau (PULZ, 2013). O dano diretamente associado com a caudectomia pode ser considerado sob várias categorias, incluindo dor aguda e estresse, associados com o procedimento de amputação em si, dor de médio termo, relacionados à inflamação ou necrose, dor crônica de longo termo, como resultado de dano do nervo e formação do neuroma. Além destes, pode ser citada a própria ausência da cauda, que tem efeitos adversos na vida subsequente do animal (EDWARDS & BENNETT, 2014), incluindo-se a inabilidade do uso da cauda para funções biológicas, como espantar moscas, comunicar-se com e reconhecer coespecíficos, além de expressar estados emocionais.
Face ao exposto, é fácil compreender que a caudectomia é uma prática que engloba diferentes interesses, mas como resolver estes impasses?
Faz-se necessário o uso de ferramentas disponíveis pela ciência da Bioética, a qual se constitui no exame sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, à luz de valores e de princípios morais. A Bioética aborda os problemas éticos de todos os setores sociais, incluindo aqueles associados às relações entre seres humanos e animais não humanos. No contexto da caudectomia, duas vertentes da ética contemporânea podem ser utilizadas para o questionamento proposto: a senciocêntrica, caracterizada pela ênfase na senciência (capacidade de sentir emoções) como parâmetro para ingresso na comunidade dos seres dignos de consideração moral e a biocêntrica, que não privilegia nem a racionalidade, nem a sensibilidade mental, ao definir quem são os sujeitos morais, mas o bem-próprio, considerado um valor inerente à vida, algo que a ética deve preservar (FILIPE, 2009).
Sendo o ser humano um agente moral e, portanto, responsável por seus atos, é seu dever evitar ao máximo o sofrimento nos animais. Portanto, nós como profissionais da área de bem-estar animal acreditamos que o corte da cauda de ovinos, por ser uma prática que causa dor e desconforto nos animais, não deveria ser realizada, havendo a necessidade de desenvolver melhores práticas de manejo nas fazendas para, com isso, evitar ao máximo o sofrimento dos animais sob nossa responsabilidade.

O presente ensaio foi elaborado para Disciplina de Ética no Uso de animais e Bem-estar Animal, tendo como base as obras:

CFMV - Conselho Federal de Medicina Veterinária. RESOLUÇÃO Nº 877, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2008. Dispõe sobre os procedimentos cirúrgicos em animais de produção e em animais silvestres; e cirurgias mutilantes em pequenos animais e dá outras providências. 2008.
DWYER, C. The welfare of sheep. Reino Unido: Springer, 2008.
EDWARDS, S.; BENNETT, P. Tales about Tails: Is the Mutilation of Animal Justifiable in Their Best Interests or in Ours? In: APPLEBY, M. C.; WEARY, D. M.; SANDØE, P. Dilemmas in animal welfare. Reino Unido: CABI, 2014. p. 6-27.
FILIPE, S. T. Antropocentrismo, sencientismo e biocentrismo: Perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos. 2009.
NATIONAL FARM ANIMAL CARE COUNCIL. Code of practice: For the care and handling of sheep. Canadá: Canadian Sheep Federation, 2013.
PULZ, R. S. Ética e Bem-estar Animal. Canoas: Editora da ULBRA, 1ª Ed, 168 p, 2013.
SCHOENIAN, S. The welfare of docking and castrating lambs. 2012. Disponível em:
. Acesso em: 08 de abr. 2014.
SUTHERLAND, M.A.; TUCKER, C. B. The long and short of it: A review of tail docking in farm animals. Applied Animal Behaviour Science. v.135, p.179-191, 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário