quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A ética da responsabilidade na sociedade do Homo consumens, parafraseando pensamento “consumo, logo existo”



Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Tania Mara da Silva e Ubaldino R. Ferreira Filho
Mestrandos do Programa de Pós Graduação em Bioética na PUCPR

Jornalista da RBS: “Hoje qualquer miserável pode ter um carro”

publicado em 16 de novembro de 2010 às 16:49
por Conceição Lemes
Em São Paulo, há muitos anos existe o rodízio de circulação de carros, baseado no final das placas.  Para driblá-lo, as famílias mais abastadas logo deram um jeito.  Passaram a ter dois, três, quatro carros na garagem, o que contribuiu, sem dúvida, para o aumento da frota nas ruas. Engraçado. Ninguém reclamou. Porém, bastou o sonho do veículo próprio (automóvel ou moto) se tornar realidade para muita gente das camadas populares, para a chiadeira começar. A culpa? Ora, para a elite inconformada com a ascensão social dos pobres, é do presidente Lula, graças às facilidades de crédito. O comentário do jornalista Luis Carlos Prates (veja o vídeo abaixo) num dos telejornais da RBS, afiliada de TV Globo em Santa Catarina, é exemplo da intolerância e do preconceito.  O que será que ele disse quando um “mauricinho”, filho de um dos diretores da emissora em que trabalha, estuprou uma colega adolescente de Florianópolis? Será que o abafamento do caso pela polícia e mídia locais também é culpa do Lula?

O último século pode ser caracterizado pelo desenvolvimento tecnológico, associado a um crescimento sem precedentes na produção e pela formação de uma sociedade fortemente estimulada ao consumo de mercadorias e serviços. Para Bittencourt (2011, p.103) “O consumo é uma atividade básica da vida humana, inalienável de sua própria condição existencial, caracterizando-se assim pela busca de recursos materiais ou simbólicos que favoreçam a manutenção saudável do organismo e da própria existência como um todo”.  O ser humano atual modelo da espécie Homo sapiens, que é hábil no pensar, sentir, amar e manusear com precisão objetos sofisticados, cede lugar a um novo tipo simbólico de homem, o Homo consumens o qual personaliza a propensão dos desejos de consumir ansiosamente os bens materiais disponível no sistema mercadológico (Bittencourt, 2011, p.103). O modo de ser do Homo consumens reprodução do pensamento cartesiano: “penso, logo existo” cedendo lugar ao “consumo, logo existo”.
O consumo é uma atividade que faz parte do cotidiano em toda e qualquer sociedade humana. Sendo condição para satisfazer as necessidades biológicas e sociais, com uma representação simbólica em que o cidadão tende a desejar sempre um novo modelo de aparelho ou produto sem verificar sua real finalidade. Neste processo a mídia e a publicidade, as indústrias criam necessidades desses bens, induzindo o cidadão ao consumo, muitas vezes desnecessário (Panarotto, 2010). Na sociedade de consumo que cria desejos instantâneos para a satisfação imediata - produzindo a cultura do descartável – encontra-se concepções nas ideias nas palavras de Hannah Arendt: “Em nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam, já não podemos nos dar ao luxo de usá-las, de respeitar e preservar sua inerente durabilidade[...]”  (Arendt, 1981: 138). Entretanto deve-se engajar o consumidor como um novo ator social para uma formação de um consumidor-cidadão, responsável e consciente das implicações dos seus atos de consumo. Contudo, essa não é uma tarefa simples, pois requer mudanças de comportamento individuais e coletivas. O grande desafio é o abandono da sociedade do descarte e do consumo excessivos. Neste sentido deve-se abordar o consumo sustentável para promover respeito os recursos ambientais, garantindo o atendimento das necessidades das futuras gerações. Contudo a promoção do consumo sustentável decorre da conscientização dos indivíduos da relevância de tornarem-se consumidores responsáveis. O trabalho educativo é essencialmente político, pois implica ao consumidor mudança de postura e atitude no seu papel de ator de transformação do modelo econômico em prol de um novo sistema, para um equilíbrio do ser humano na Terra. Assim, o consumidor tem em suas mãos o poder de exigir o modelo de desenvolvimento social justo e um ambiente equilibrado (Furriela, 2001).
Nos últimos séculos, a justificativa dada para o avanço técnico e para a industrialização tem sido a elevação do nível de consumo. O consumismo legitima-se e penetra no consciente coletivo da população, confundindo-se com o desejo de liberdade. Contudo, esse fenômeno embora seja temporal e local, o crescimento dos fatos vem provocando uma série de questionamentos, levando a formulações de novas reflexões éticas. A questão inicial que se levanta é quem decide o que se consome e o que se produz, quem está tomando as decisões sobre questões de consumo e quem deveria tomá-las. A questão não é tanto quem controla, mas quem assume a responsabilidade pelo consumo, pois, sendo todo e qualquer ser humano consumidor, por menor que seja o consumo, situações, o que pode-se discutir é a forma de consumir e não o fato em si de fazê-lo.
O consumidor deverá assumir responsabilidades que vai além dos deveres assumidos nessa relação contratual, responsabilidades que fazem parte de uma ética do consumo. Neste cenário de contínua reposição dos bens e consumo origina-se da necessidade atual da era tecnológica em existir, este fluxo de produção pelo novo (Bittercurt,2011). Cada cultura atribui a determinados objetos um conjunto de significados simbólicos numa espécie de sistemas de crenças. Os objetos de consumo característicos das sociedades consumistas não são os necessários para a subsistência, mas os que têm um marcado valor simbólico é porque respondem a um conjunto de motivações psicológicas. Para Cortina (2002), o consumo vai além de satisfazer necessidades e desejos, mas [...] para compensar os indivíduos que se sentem inseguros ou inferiores, para simbolizar êxito ou poder, para comunicar distinções sociais ou reforçar relações de inferioridade ou superioridade, para expressar atitudes e comunicar mensagens, mas também para criar o sentido da identidade pessoal ou para confirmá-lo.
No contexto atual a técnica desenvolvida pelo homem não está primeiramente relacionada à necessidade, mas a uma busca de superação do próprio destino do homem, no qual o mesmo acaba produzindo outras necessidades em nome de um desejo que nunca se realiza. “Hoje a techne transformou-se em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento mais significativo” (Jonas, 1992, p.87). Segundo a literatura consultada, pode-se concluir que o momento atual exige uma reinvenção da sociedade, da gestão política, do estilo de vida, das prioridades e, principalmente, em curto prazo, do conceito de consumo, que se legitima e penetra no consciente coletivo da população e confunde-se com o desejo individual ou coletivo de liberdade. A responsabilidade coletiva é fundamental para delimitar a justa medida das ações humanas na perspectiva de um bem comum e ambiental. O desenvolvimento sustentável não é um estado de harmonia permanente. Trata-se de um processo de mudança onde o uso dos recursos, a destinação dos investimentos, os caminhos do desenvolvimento da tecnologia e a mudança institucional devem estar de acordo com as necessidades do presente e do futuro. O princípio da responsabilidade pede que se preserve a condição de existência da humanidade enfatizando a vulnerabilidade que o agir humano suscita. Assim Jonas, 1979, escreve que: É urgente incorporar uma definição ética nas ações produtivo-destrutivas, resultantes dos sistemas produtivos e da cultura de consumo; os cenários necessitam ser reconstruídos, a lógica necessita ser subordinada aos imperativos de uma modernidade ética, [...] para dar respostas aos novos desafios socioambientais. “[...] fundamentar uma modernidade ética apta a restringir a capacidade humana de agir como destruidor da auto-afirmação do ser, expressa na continuação da vida”. Faz-se também necessária a reconstrução dos valores sociais para a readequação do indivíduo ao senso coletivo, legitimando o bem-estar social. Para tanto, não cabe mais ao homem o conveniente papel de consumidor do planeta, nesta nova ética social, é seu dever se associar à qualidade de vida, o que inclui o fator ambiental.
Nós como futuros Bioeticistas acreditamos que a responsabilidade humana vai além da responsabilidade com seu semelhante, a nova ética clama pela responsabilidade também ambiental, onde o homem inclui-se como mais um elemento do ambiente e não o único. Como cita Hans Jonas em O Princípio da Liberdade. É fato que, o rompimento de uma organização social voltada ao consumo demandaria a reconstrução e adaptação do modo de vida da sociedade como conhecemos. Entretanto, esse rompimento precisa ser emergencial. A velocidade da devastação do planeta não permite que a “educação ambiental” seja onerada como único agente de mudança de comportamento, pois, seu processo apesar de eficiente, é lento. Torna-se evidente também a necessidade de políticas públicas em todos os níveis: federal, municipal e local, que tratem a redução do consumo como elemento estratégico para se atingir o desenvolvimento sustentável, uma vez que, economia e ecologia estão totalmente integradas no mundo atual.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Fundamentos da Bioética, baseado nas seguintes obras:

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Alberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
BITTENCOURT, Renato Nunes. Os dispositivos existenciais do consumismo. Disponível
em.  Acesso em 17 jul. 2014.
CORTINA, A. Por una ética del consumo. Madrid: Taurus, 2002.
DIAS, Reinaldo. Marketing ambiental: ética, responsabilidade social e competitividade nos negócios. São Paulo: Atlas, 2007.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
FURRIELA, Rachel Biderman. Educação para o Consumo Sustentável. Disponível em:
. Acesso em 04 de ago. de 2014.
PANAROTTO, C. O meio ambiente e o consumo sustentável: alguns hábitos que  podem fazer a diferença.
< http://www.caxias.rs.gov.br/procon/site/ _uploads/publicacoes/publicacao_5.pdf> Acesso em: 10 Jun 2014.

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