Série
Ensaios: Ética no Uso de Animais e Bem-Estar Animal
Karynn Vieira Capilé
Mestranda
em Veterinária
De uma forma geral, a relação ser humano-animal na
civilização ocidental industrializada se constitui sob valores
antropocêntricos, inclusive
no caso dos animais de companhia, que, embora ocupem posição privilegiada de
estima em nossa sociedade devido à proximidade afetiva com os seres humanos, passam
por um tipo de seleção
artificial que busca atingir padrões estéticos e comportamentais
considerados ideais apesar dos possíveis efeitos negativos em sua qualidade de
vida.
Estes padrões que provavelmente jamais teriam evoluído naturalmente agradam
as pessoas, mas podem prejudicar os animais. Cães com coluna alongada como Dushhund e Basset Hound sofrem por problemas
frequentes na coluna
vertebral. Raças gigantes são propensas a desenvolver Torção
Gástrica e Displasia Coxofemural. Raças
miniatura podem apresentar colapso
de traqueia por causa da formação incompleta dos anéis cartilaginosos, bem
como desajustes na coluna vertebral devido ao tamanho pequeno dos membros (JOHNSON,
2000; FOSSUM, 2002). Nos cães
braquicefálicos, como Boxer, Lhasa apso, Shihtzu e Pequinês, a mudança do
formato do crânio prejudica a passagem do ar pelo nariz provocando, dentre
outras complicações, dificuldade respiratória (MONNET, 2004). Ocorrem também
anomalias como a Displasia
do Occipital que afeta as raças miniatura como Grifon de Bruxelas, Cavalier
King Charles spaniel, King Charles spaniel, Pinscher e Chihuahua, devido ao
fato de o crânio ser muito pequeno para o tamanho do cérebro. Embora a seleção
artificial possa trazer consequências negativas para o bem-estar dos cães, ela
não é intrinsecamente negativa.
Pensemos
na história do cão
doméstico. Há cerca de quinze mil anos, com o surgimento da agricultura, o
homem deixou de ser nômade e então apareceram os primeiros vilarejos dos quais
os lobos selvagens se aproximavam em busca de alimento. Os lobos mais dóceis se
arriscavam mais e obtinham mais êxito, consequentemente, gerando mais descendentes
do que os menos dóceis. Após sucessivos cruzamentos de animais dóceis entre si,
o lobo selvagem (Canis lupus lupus)
deu origem ao cão (Canis lupus familiaris)
que, desde então, esteve presente na história evolutiva da humanidade (Brasilica & Silva, 2012). A habilidade para pastoreio
de alguns cães se destacou na atividade pecuária, os cães mais eficientes
passaram a ser selecionados e assim se iniciou a manipulação das primeiras
raças (King, Marston, & Bennett, 2012) Neste momento os critérios de
seleção já visavam o benefício humano, mas estavam relacionados a características
funcionais do cão e, aparentemente, não comprometiam sua saúde e bem-estar. A
partir daí os critérios para a seleção de cães foram se modificando ao longo da
história da humanidade, sendo influenciados pelo desenvolvimento industrial,
surgimento das cidades, crescimento populacional e mudanças no estilo de vida.
Atualmente, estes critérios são nitidamente estabelecidos pelos valores da sociedade
ocidental contemporânea caracterizada pela cultura do consumo, do fetiche, da
ditadura da beleza, da transformação do outro em mercadoria.(Bauman, 2008)
A adaptação dos seres ao seu meio é contínua
e vai se reorganizando de acordo com os desafios ambientais que aparecem. Quando
a seleção natural não ocorre, pode-se tentar aumentar a capacidade de adaptação
do animal por meio de seleção artificial. Este ponto é polêmico porque a
seleção artificial pode acabar resultando em uma aparente e forçada adaptação
do animal a uma rotina estressante e um ambiente completamente inadequado para
ele. Parece que é justamente isto o que vêm acontecendo, pois as pessoas vivem
em espaços restritos, não têm tempo nem para cuidar de si mesmas, preocupam-se demasiadamente
com aparência e querem animais de companhia que se adaptem à restrição de
espaço, que possam ser carregados de um lado para o outro e que se pareçam com
bibelôs. A seleção artificial interfere em características físicas como tamanho
e aparência e pode gerar nas pessoas uma interpretação distorcida a respeito
das necessidades fisiológicas e comportamentais dos animais. O fato de um cão ser
chamado de miniatura não significa, por exemplo, que ele pode viver bem em
espaços minúsculos. Um estudo publicado na revista plos one em 2013,
intitulado “Fashion
vs Function in cultural evoluction” avaliou a relação entre as
características das raças de cães e sua popularidade entre os anos de 1926 e
2005. Os
resultados confirmaram a hipótese de que a popularidade das raças é
primariamente determinada pela moda e não pela funcionalidade (Ghirlanda, Acerbi, Herzog, & Serpell, 2013).
Conforme este estudo, as raças mais populares são as que
mais sofrem distúrbios herdados geneticamente. A maioria das pessoas escolhem
raças de cães com caracteristicas que atendam aos padrões de beleza da moda e
não com características que sejam funcionais para o cão. Outra questão que se coloca sobre este assunto
é que comprar animais de companhia dá a eles um caráter de coisa, de produto,
de bem material, contribuindo para que se perpetue a coisificação
dos mesmos. Em teoria não compramos pessoas para serem nossas amigas,
cuidarmos delas ou para conviverem conosco. Além disso, desde crianças
aprendemos que não devemos discrimar as pessoas por sua raça, tamanho, cor ou
aparência física, então por que com os cães
fazemos isso? “Segredos do Pedigree” https://www.youtube.com/watch?v=NQtgF9498ro
é um documentário produzido pela BBC que mostra
a realidade por trás dos cruzamentos de algumas raças, o sofrimento enfrentado
por muitos animais e o que os criadores fazem para se adequar às regras do Kennel Club. O conhecimento sobre
características genéticas envolvidas no comportamento de cães é ainda
limitado, no entanto, alguns estudos tentam desvendar a base
genética de traços comportamentais como temperamento. Estas
características são de difícil mapeamento genético porque são
multifatoriais e
sofrem influência do meio ambiente. As características
comportamentais de várias raças de cães de caça têm sido
estudadas usando modelos animais lineares com métodos de máxima verossimilhança (KARJALAINEN et al., 1996). Traços mais
gerais de comportamento também têm sido estudados através de métodos do
mesmo tipo (RUEFENACHT et al., 2002).
Apesar de termos muitos motivos para julgar a seleção
artificial negativa para o bem-estar dos cães, ela pode ser usada como uma
ferramenta em prol do bem-estar desde que se passe a selecionar características
funcionais, adaptativas e positivas para os cães em primeiro lugar. Um dos
possíveis benefícios da convivência com cães de raça é o fato de eles apresentarem
muitos comportamentos e características previsíveis, o que permite que sejam
escolhidos de forma mais adequada para viver em determinados ambientes e as
pessoas responsáveis por eles podem buscar ajuda e tentar se preparar antecipadamente
para garantir boas condições de vida aos seus companheiros caninos. As
consequências negativas da seleção artificial decorrem da motivação envolvida e
não da técnica usada, ou seja, o problema concernente ao bem-estar animal não é
a ação de selecionar determinadas características, mas quais características
são selecionadas. Se o objetivo da seleção artificial fosse gerar melhorias
considerando interesses, necessidades e limites dos animais, o impacto talvez
fosse positivo.
Um exemplo de seleção artificial como aliada
do bem-estar animal é o trabalho do Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia
Animal (ETCO) que
vêm estudando as implicações do melhoramento genético no bem-estar
animal, frisando a importância de se estabelecer e respeitar limites
biológicos e éticos na seleção artificial seja em animais de produção ou de
companhia. Considerando os aspectos éticos relacionados à seleção
artificial de cães, cabe o questionamento sobre a validade moral de manter
critérios de seleção que prejudicam os animais apenas pelo interesse em seguir
as tendências da moda.
Será que este interesse se justifica até mesmo quando se
prejudica a qualidade de vida dos cães? Que tipos de limites têm sido
considerados? Será que as pessoas valorizam tanto determinadas características
porque desconhecem as consequências delas para o bem-estar dos animais ou é
porque não se importam com as consequências? Como vivemos em uma sociedade na
qual a obtenção de lucro tem grande relevância nos padrões de conduta, a
prática de comercializar animais com características raciais potencialmente
causadoras de sofrimento dificilmente vai parar de acontecer enquanto a demanda
continuar existindo. Daí a importância de estratégias
educativas de conscientização sobre o assunto. É possível que a seleção
artificial passe de prejudicial a benéfica para o bem-estar dos cães. Para isso
é necessário que haja uma reestruturação ética dos valores e motivações
envolvidos nos critérios atuais de seleção, e que estes passem objetivar, antes
de mais nada, a melhoraria da qualidade de vida dos cães, o que exige mais
pesquisa na área e o estabelecimento de limites que protejam os animais de
sofrimentos desnecessários causados pela futilidade humana.
Este Ensaio foi
elaborado para disciplina de Ética Ética no Uso de Animais e Bem-Estar Animal –
Programa de Mestrado em Bioética, baseando-se nas obras:
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformaçao das
pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRASILICA, A. V., & SILVA, A. R. Considerações sobre a importância do cão
doméstico ( canis lupus familiaris ) dentro da sociedade, p.177–185, 2012.
EKMAN, S., CARLSON,
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FOSSUM, T.W.,. Surgical management of tracheal collapse. Proceedings of the 27th
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Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia
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KARJALAINEN, L., OJALA, M., VILVA, V. Environmental effects and genetic parameters for measurements of
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KING, T., MARSTON,
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Acessado em setembro/2013.
RUEFENACHT, S., GEBHARDT-HENRICH, S., MIYAKE, T., GAILLARD, C. A behaviour test on German Shepherd dogs:
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Acho muito importante discutirmos esse assunto. Temos que parar de ser tão egoístas e pensar um pouco mais nesses animaizinhos que nos dão tantas alegrias.Nós adultos, principalmente os pais, temos o dever de ensinar às nossas crianças esses conceitos mais humanos para que elas possam futuramente mudar o rumo dessa sociedade de valores tão deturpados.
ResponderExcluirParabéns a Dr Karynn.