segunda-feira, 24 de março de 2014

Seleção artificial em cães: vilã ou aliada?




Série Ensaios: Ética no Uso de Animais e Bem-Estar Animal

Karynn Vieira Capilé

Mestranda em Veterinária

De uma forma geral, a relação ser humano-animal na civilização ocidental industrializada se constitui sob valores antropocêntricos, inclusive no caso dos animais de companhia, que, embora ocupem posição privilegiada de estima em nossa sociedade devido à proximidade afetiva com os seres humanos, passam por um tipo de seleção artificial que busca atingir padrões estéticos e comportamentais considerados ideais apesar dos possíveis efeitos negativos em sua qualidade de vida. 
Estes padrões que provavelmente jamais teriam evoluído naturalmente agradam as pessoas, mas podem prejudicar os animais. Cães com coluna alongada como Dushhund e Basset Hound sofrem por problemas frequentes na coluna vertebral. Raças gigantes são propensas a desenvolver Torção Gástrica e Displasia Coxofemural. Raças miniatura podem apresentar colapso de traqueia por causa da formação incompleta dos anéis cartilaginosos, bem como desajustes na coluna vertebral devido ao tamanho pequeno dos membros (JOHNSON, 2000; FOSSUM, 2002). Nos cães braquicefálicos, como Boxer, Lhasa apso, Shihtzu e Pequinês, a mudança do formato do crânio prejudica a passagem do ar pelo nariz provocando, dentre outras complicações, dificuldade respiratória (MONNET, 2004). Ocorrem também anomalias como a Displasia do Occipital que afeta as raças miniatura como Grifon de Bruxelas, Cavalier King Charles spaniel, King Charles spaniel, Pinscher e Chihuahua, devido ao fato de o crânio ser muito pequeno para o tamanho do cérebro. Embora a seleção artificial possa trazer consequências negativas para o bem-estar dos cães, ela não é intrinsecamente negativa.
Pensemos na história do cão doméstico. Há cerca de quinze mil anos, com o surgimento da agricultura, o homem deixou de ser nômade e então apareceram os primeiros vilarejos dos quais os lobos selvagens se aproximavam em busca de alimento. Os lobos mais dóceis se arriscavam mais e obtinham mais êxito, consequentemente, gerando mais descendentes do que os menos dóceis. Após sucessivos cruzamentos de animais dóceis entre si, o lobo selvagem (Canis lupus lupus) deu origem ao cão (Canis lupus familiaris) que, desde então, esteve presente na história evolutiva da humanidade (Brasilica & Silva, 2012). A habilidade para pastoreio de alguns cães se destacou na atividade pecuária, os cães mais eficientes passaram a ser selecionados e assim se iniciou a manipulação das primeiras raças (King, Marston, & Bennett, 2012) Neste momento os critérios de seleção já visavam o benefício humano, mas estavam relacionados a características funcionais do cão e, aparentemente, não comprometiam sua saúde e bem-estar. A partir daí os critérios para a seleção de cães foram se modificando ao longo da história da humanidade, sendo influenciados pelo desenvolvimento industrial, surgimento das cidades, crescimento populacional e mudanças no estilo de vida. Atualmente, estes critérios são nitidamente estabelecidos pelos valores da sociedade ocidental contemporânea caracterizada pela cultura do consumo, do fetiche, da ditadura da beleza, da transformação do outro em mercadoria.(Bauman, 2008)
A adaptação dos seres ao seu meio é contínua e vai se reorganizando de acordo com os desafios ambientais que aparecem. Quando a seleção natural não ocorre, pode-se tentar aumentar a capacidade de adaptação do animal por meio de seleção artificial. Este ponto é polêmico porque a seleção artificial pode acabar resultando em uma aparente e forçada adaptação do animal a uma rotina estressante e um ambiente completamente inadequado para ele. Parece que é justamente isto o que vêm acontecendo, pois as pessoas vivem em espaços restritos, não têm tempo nem para cuidar de si mesmas, preocupam-se demasiadamente com aparência e querem animais de companhia que se adaptem à restrição de espaço, que possam ser carregados de um lado para o outro e que se pareçam com bibelôs. A seleção artificial interfere em características físicas como tamanho e aparência e pode gerar nas pessoas uma interpretação distorcida a respeito das necessidades fisiológicas e comportamentais dos animais. O fato de um cão ser chamado de miniatura não significa, por exemplo, que ele pode viver bem em espaços minúsculos. Um estudo publicado na revista plos one em 2013, intitulado “Fashion vs Function in cultural evoluction” avaliou a relação entre as características das raças de cães e sua popularidade entre os anos de 1926 e 2005. Os resultados confirmaram a hipótese de que a popularidade das raças é primariamente determinada pela moda e não pela funcionalidade (Ghirlanda, Acerbi, Herzog, & Serpell, 2013).
Conforme este estudo, as raças mais populares são as que mais sofrem distúrbios herdados geneticamente. A maioria das pessoas escolhem raças de cães com caracteristicas que atendam aos padrões de beleza da moda e não com características que sejam funcionais para o cão.  Outra questão que se coloca sobre este assunto é que comprar animais de companhia dá a eles um caráter de coisa, de produto, de bem material, contribuindo para que se perpetue a coisificação dos mesmos. Em teoria não compramos pessoas para serem nossas amigas, cuidarmos delas ou para conviverem conosco. Além disso, desde crianças aprendemos que não devemos discrimar as pessoas por sua raça, tamanho, cor ou aparência física, então por que com os cães fazemos isso? “Segredos do Pedigree” https://www.youtube.com/watch?v=NQtgF9498ro é um documentário produzido pela BBC que mostra a realidade por trás dos cruzamentos de algumas raças, o sofrimento enfrentado por muitos animais e o que os criadores fazem para se adequar às regras do Kennel Club. O conhecimento sobre características genéticas envolvidas no comportamento de cães é ainda limitado, no entanto, alguns estudos tentam desvendar a base genética de traços comportamentais como temperamento. Estas características são de difícil mapeamento genético porque são multifatoriais e sofrem influência do meio ambiente. As características comportamentais de várias raças de cães de caça têm sido estudadas usando modelos animais lineares com métodos de máxima verossimilhança (KARJALAINEN et al., 1996). Traços mais gerais de comportamento também têm sido estudados através de métodos do mesmo tipo (RUEFENACHT et al., 2002).
Apesar de termos muitos motivos para julgar a seleção artificial negativa para o bem-estar dos cães, ela pode ser usada como uma ferramenta em prol do bem-estar desde que se passe a selecionar características funcionais, adaptativas e positivas para os cães em primeiro lugar. Um dos possíveis benefícios da convivência com cães de raça é o fato de eles apresentarem muitos comportamentos e características previsíveis, o que permite que sejam escolhidos de forma mais adequada para viver em determinados ambientes e as pessoas responsáveis por eles podem buscar ajuda e tentar se preparar antecipadamente para garantir boas condições de vida aos seus companheiros caninos. As consequências negativas da seleção artificial decorrem da motivação envolvida e não da técnica usada, ou seja, o problema concernente ao bem-estar animal não é a ação de selecionar determinadas características, mas quais características são selecionadas. Se o objetivo da seleção artificial fosse gerar melhorias considerando interesses, necessidades e limites dos animais, o impacto talvez fosse positivo.
Um exemplo de seleção artificial como aliada do bem-estar animal é o trabalho do Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia Animal (ETCO) que vêm estudando as implicações do melhoramento genético no bem-estar animal, frisando a importância de se estabelecer e respeitar limites biológicos e éticos na seleção artificial seja em animais de produção ou de companhia. Considerando os aspectos éticos relacionados à seleção artificial de cães, cabe o questionamento sobre a validade moral de manter critérios de seleção que prejudicam os animais apenas pelo interesse em seguir as tendências da moda. 
Será que este interesse se justifica até mesmo quando se prejudica a qualidade de vida dos cães? Que tipos de limites têm sido considerados? Será que as pessoas valorizam tanto determinadas características porque desconhecem as consequências delas para o bem-estar dos animais ou é porque não se importam com as consequências?  Como vivemos em uma sociedade na qual a obtenção de lucro tem grande relevância nos padrões de conduta, a prática de comercializar animais com características raciais potencialmente causadoras de sofrimento dificilmente vai parar de acontecer enquanto a demanda continuar existindo. Daí a importância de estratégias educativas de conscientização sobre o assunto. É possível que a seleção artificial passe de prejudicial a benéfica para o bem-estar dos cães. Para isso é necessário que haja uma reestruturação ética dos valores e motivações envolvidos nos critérios atuais de seleção, e que estes passem objetivar, antes de mais nada, a melhoraria da qualidade de vida dos cães, o que exige mais pesquisa na área e o estabelecimento de limites que protejam os animais de sofrimentos desnecessários causados pela futilidade humana.

Este Ensaio foi elaborado para disciplina de Ética Ética no Uso de Animais e Bem-Estar Animal – Programa de Mestrado em Bioética, baseando-se nas obras:

BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformaçao das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRASILICA, A. V., & SILVA, A. R. Considerações sobre a importância do cão doméstico ( canis lupus familiaris ) dentro da sociedade, p.177–185, 2012.
EKMAN, S., CARLSON, C.S. The pathophysiology of osteochondrosis.Vet. Clin. N. Am. Small Anim. Pract. 28, 17-32, 1998.
FOSSUM, T.W.,. Surgical management of tracheal collapse. Proceedings of the 27th World Congress of the World Small Animal Veterinary Association, 2002.
GHIRLANDA, S., ACERBI, A., HERZOG, H., & SERPELL, J. A.. Fashion vs . Function in Cultural Evolution : The Case of Dog Breed Popularity, Plos One 8(9), 2013.
Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia Animal (ETCO). Disponível em http://www.grupoetco.org.br/index.html. Acessado em: março/2014
JOHNSON, L. Tracheal collapse. Diagnosis and medical and surgical treatment. Vet. Clin. N. Am. Small Anim. Pract. 30, p.1253-1266, 2000.
KARJALAINEN, L., OJALA, M., VILVA, V. Environmental effects and genetic parameters for measurements of hunting performance in Finnish Spitz. Journal of Animal Breeding and genetics 113, 525– 534, 1996.
KING, T., MARSTON, L. C., & BENNETT, P. C. Breeding dogs for beauty and behaviour: Why scientists need to do more to develop valid and reliable behaviour assessments for dogs kept as companions. Applied Animal Behaviour Science, 137(1-2), 1–12. doi:10.1016/j.applanim.2011.11.016, 2012.
MONNET, E. Brachycephalic airway syndrome. Proceedings of the 29th World Congress of the World Small Animal Veterinary Association, 2004. Disponível em: http://www.vin.com/proceedings/Pro ceedings.plx?CID5WSAVA2004&PID58768&O5Generic Acessado em setembro/2013.
RUEFENACHT, S., GEBHARDT-HENRICH, S., MIYAKE, T., GAILLARD, C. A behaviour test on German Shepherd dogs: heritability of seven dif- ferent traits. Appl. Anim. Behav. Sci. 79, 113–132, 2002.
SMITH, C.W., STOWATER, J.L. Osteochondrosis of the canine shoulder joint: a review of 35 cases. J. Am. Anim. Hosp. Assoc. 9, 658-662, 1975.



Um comentário:

  1. Acho muito importante discutirmos esse assunto. Temos que parar de ser tão egoístas e pensar um pouco mais nesses animaizinhos que nos dão tantas alegrias.Nós adultos, principalmente os pais, temos o dever de ensinar às nossas crianças esses conceitos mais humanos para que elas possam futuramente mudar o rumo dessa sociedade de valores tão deturpados.
    Parabéns a Dr Karynn.

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