sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Há ética na relação do homem com animais de companhia?



Por Fabiana Francielle Culau Leite

Acadêmica do curso de Mestrado em Bioética

A domesticação animal necessitou muito tempo e levou milênios da evolução para alcançar a relação com humanos que conhecemos atualmente. Os cães selvagens tornaram-se fiéis e companheiros de caça ao longo de milhares de anos. Segundo FILHO (2013, pág. 51) essa relação entre humanos e canídeos começou há 15 mil anos, com a primeira divisão de trabalho entre os sexos da espécie humana, quando o homem passou a caçar para garantir o sustento familiar e a mulher cuidava da coleta de frutos dos filhos, sendo ela a responsável pela aproximação das duas espécies conforme pesquisas zooarqueológicas.
Em contrapartida a origem felina é difícil de ser comprovada de forma definitiva considerando-se o fato de que gatos não contribuem significativamente com ações humanas em termos de trabalho ou caça. Tradicionalmente acreditava-se em uma origem egípcia, entretanto descobertas recentes acreditam que a domesticação ocorreu no Crescente Fértil, há cerca de 10 mil anos, sugerindo que os gatos começaram a se aproximar dos povoados de agricultores para se aproveitar dos restos de alimentos e camundongos. (DRISCOLL, et. al., 2013, pág. 36).
Em um contexto histórico, essa relação entre homens e animais transcorre diferentes fases e entendimentos. Na Europa, entre os Séculos XVI e XVII a afeição por felinos era normalmente atribuída à mulheres acusadas de bruxaria. Os gatos domésticos não tinham boa reputação quando o Brasil foi colonizado pelos portugueses e só foram considerados bons companheiros domésticos na Europa por volta do Século XVIII e por aqui por volta do Século XX. Já os cães eram considerados animais impuros pelo fato de se alimentarem de carniça, comportamento este que deu origem à expressões com conotação negativa e depreciativa como: “vida de cão” e “ele é o cão”. Foi apenas a partir do século XVII que a população européia passou a ver os caninos como sinônimo de fidelidade e coragem. (ELIAS, 2010, pág. 26,27). Ao que diz respeito à domesticação canina, várias hipóteses foram formuladas, desde considerar que a princípio foram os próprios caninos que optaram por viver perto dos homens por conta da facilidade em alimentação, até a versão mais tradicional que considera:
“Há cerca de 40 mil anos, grupos de lobos (Canis lupus) que viviam no Leste Asiático perceberam que poderiam obter alimento mais facilmente seguindo os humanos. Isso porque caçadores-coletores viviam se deslocando e deixando para trás um nutritivo lixo, composto de restos de ossos, cartilagens e alguns resíduos de carne. Mas um estudo do DNA de cães e lobos publicado na revista Nature em março de 2010, indica o Oriente Médio como o lugar mais provável do surgimento de Canis lúpus familiaris, nosso cão doméstico.” (ELIAS, 2010, pág. 39)
            Há de se ressaltar essa relação entre homens e animais, sabe-se que a domesticação foi um dos eventos mais significativos da história humana que vem se configurando ao longo da evolução. Para DELARISSA e MATIOLLI (2013), a proximidade afetiva com os bichos foi herdada de nossos antepassados. Contudo, atualmente essa relação está se tornando mais complexa, as pessoas sem se dar conta passaram a estreitar cada vez mais sua relação com os animais de companhia, tornando-os provedores de afeto e alívio para suas angústias.  “Uma das motivações comuns dos seres humanos, transmitida pelo processo filogenético (referente à evolução da espécie), está vinculada ao nosso passado tribal: o comportamento do homem contemporâneo guarda traços herdados dos caçadores-coletores.” (DELARISSA & MATIOLLI, 2013, pág. 63)
Atualmente – com o advento da vida moderna, da correria das grandes cidades e da necessidade de praticidade – os indivíduos optaram por um modelo familiar diminuído ou então pela vida solitária e por inúmeras vezes os animais de estimação, em particular os cães ou gatos, tem servido como substitutos de amigos, de um ente familiar ou de uma criança, já que embora necessitem de alguns cuidados, não exigem muita atenção. Essa opção por um adquirir um animal de companhia, muitas vezes, decorre do fato de os bichos parecem seguros quanto a própria “identidade” e não se preocupam com o julgamento de seus pares. Já o homem preocupa-se com seu lugar na sociedade, compreende e precisa “agregar valores” a si mesmo e a quem representa ou acredita ser. Já, para o cachorro, o grupo humano ao qual pertence se torna sua matilha, e nela ele identifica um líder. A parceria formada desde muito cedo entre cães e humanos provavelmente tem sido favorecida por essa predisposição comum para viver num “ambiente tribal”. (DELARISSA & MATIOLLI (2013, pág. 65-67). 
A escolha por um objeto de afeto que não necessite de grande investimento, embora exija alimentação, companhia e um pouco de carinho muitas vezes está associada ao fato do bicho não fazer cobranças e muito menos exigências. De acordo com MARCONDES (2013, pág. 74), o Brasil tem 98 milhões de animais de estimação segundo dados da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos para Animais de Estimação (Anfalpet). Os números são impressionantes e é compreensível questionar as razões da existência dessa quantidade de animais de estimação (pet em inglês, do verbo to pet, afagar, acariciar), bem como investigar os mecanismos sociais e psicológicos que nos levam a nos identificar com eles. Existe muita expectativa por parte dos humanos ao adquirir um animal de estimação. É possível observar nas redes sociais, a partir das publicações diárias, o que os indivíduos esperam ao adquirir um pet. Uma imagem publicada na rede social Facebook e em um blog ilustram a relação esperada entre o dono e seu animal de companhia:
Além das relações de afeto, muitas vezes os animais de estimação são adquiridos com objetivo de contribuir para melhorar a saúde física ou mental de seus donos, embora os benefícios que eles trazem para a saúde sejam questionados por alguns pesquisadores, já que segundo afirmam, não se tem comprovação de que sejam duradouros. “É fato que cada vez mais os bichinhos têm ocupado lugar de destaque na vida das pessoas – e não raro, recebem a “responsabilidade” de suprir carências afetivas profundas de seus donos.” (LILIENFELD & ARKOWITZ, 2013, pág 33). É notório destacar que a presença dos pets reduz os níveis de estresse, dentre outros benefícios destacados pelo Journal of the American Association of Human-Animal Bond Veterinarian (AAHABV) através de um estudo feito pelos pesquisadores Johannes Odendaal e Susan Lehmann (LEAL, 2013, pág 29,30), dentre eles a interação entre cães e humanos que deflagra, em ambos, a liberação de substâncias que diminuem a ação do cortisol (hormônio do estresse) provocando sensação de bem-estar.
Os animais são excelentes companheiros, principalmente para crianças, contudo a maioria das pessoas apenas projeta suas expectativas em relação ao animal e não consideram o fato de que estes também apresentam de alguma forma, emoção. Charles Darwin em 1872 afirmou que dadas as impressionantes similaridades entre o comportamento humano e o animal, que ninguém pode negar que os bichos tem um lado emocional. Para Damásio (apud WILHELM, 2013, pág 22,23), os animais possuem emoções primárias: medo, raiva, tristeza, entre outras e emoções sociais: simpatia, vergonha, culpa, gratidão embora seja difícil provar que animais possuam esta capacidade de autorreflexão. O pesquisador Jaak Panksepp (apud WILHELM, 2013, pág. 22,23), especialista em comportamento e pesquisador da Universidade Estadual de Bowling Green, Ohio afirma que as emoções estão relacionadas à regiões cerebrais encontradas em todos os mamíferos, embora apenas os humanos sejam capazes de refletir sobre os próprios sentimentos, controlá-los e fingi-los.
Diversos estudos que avaliam o metabolismo animal, fornecem evidências que os sentimentos animais não se diferenciam dos sentimentos humanos, considerando-se os processos neuronais comuns à todos os mamíferos. Embora não seja possível uma comprovação mais precisa dos sentimentos conscientes dos animais, importante salientar que tanto os humanos quanto os não humanos compartilham de emoções e sensações semelhantes e por esta razão ao optar por ter um animal de companhia, vale salientar que este também precisa de companhia, atenção, além de água e ração, conforme ilustrou o cartunista Will Leite:
Apesar da relação entre as espécies, muitas vezes ser ambígua, já que mescla dominação e afeto, a proximidade com o homem nem sempre é benéfica para o animal, já que são inúmeros os casos de abandono[1] e descaso com os animais. Por esta razão ao optar por incluir um não humano na rotina diária, vale ressaltar que deve ser uma escolha responsável, já que o animal pode não corresponder com as expectativas do dono e que assim como qualquer outro mamífero está sujeito à depressão, estresse e a um comportamento diferente daquele imaginado. Rever nossas responsabilidades éticas, morais e legais com outras formas de vida que compartilham o ambiente que vivemos é fundamental para ambos, já que numa visão antropomorfista, todos animais apresentam alguma forma de emoção e merecem muito mais um pouco de água e um prato de ração.





O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética e Bem-estar Animal e baseado nas seguintes obras:
DELARISSA, Fernando Aparecido; MATTIOLI, Olga Ceciliato. A relação subjetiva entre homens e bichos se transformou; hoje o animal faz parte da família. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 60-67. Setembro/outubro 2013
DRISCOLL, Carlos A. A Longa e Fascinante Domesticação do Gato. Scientific American Brasil. Edição Especial Vida anival. N.º 56. Página 36-39.
ELIAS, Rodrigo. Santos animais. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Ano 5. N.º 60. Página 25-28 Setembro 2010
FILHO, Nelson Aprobato Filho. Fidelidade e Traição entre Cães e Seres Humanos. Scientific American Brasil. Edição Especial Vida anival. N.º 56. Página 50-53.
LEAL, Gláucia. Terapeutas de Quatro Patas: tê-los por perto diminui o estresse, favorece processos cognitivos, concentração, criatividade, além de ajudar pessoas doentes a enfrentar tratamentos desconfortáveis. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 29-30. Setembro/outubro 2013
LILIENFELD, Scott O.; ARKOWITZ, Hal. Na companhia dos bichos: Animais de estimação podem contribuir para melhorar a Saúde física e mental de seus donos, mas a duração desses efeitos causa divergências entre pesquisadores. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 33-37. Setembro/outubro 2013.
MARCONDES, Ana. Mesmo sem perceber, pessoas tendem a buscar companheiros com os quais se identificam. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 74. Setembro/outubro 2013.
WILHELM, Klaus. Um jeito de sentir: Quem gosta de bichos não duvida que seus companheiros de estimação expressam simpatia, indignação e gratidão. Porém os cientistas fazem distinção entre respostas e estímulos e a interpretação das próprias emoções. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 26,27. Setembro/outubro 2013

Meio Eletrônico:
http://www.willtirando.com.br/ Acesso em 22/09/2013
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lobo Acesso em 30/01/2014



[1] O Centro de Zoonoses de São Paulo recolhe das ruas cerca de 10 mil animais por ano, e outros 3 mil são levados pela população. Os animais ficam por três dias à espera do dono no CCZ, os animais saudáveis e sociáveis são vacinados, vermifugados, castrados e encaminhados para adoção. Os demais são eliminados. Fonte: Scientific American Brasil (2013)

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