quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Bioética Na Pesquisa E Conservação Do Papagaio-De-Cara-Roxa



Por Lisiane de Oliveira Schlegel

Ensaio crítico apresentado para disciplina de Temas de Bioética e Bem estar Animal do
Mestrado em Bioética, PUC-PR



            O papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), também conhecido como chauá, é uma espécie ameaçada de extinção e endêmica de um dos últimos remanescentes conservados de Floresta Atlântica, ocorrendo numa faixa litorânea de 285 km, entre o sul do estado de São Paulo e o extremo norte de Santa Catarina. A população total dessa espécie é estimada em 6 mil e 700 indivíduos. A maior parte – cerca de 5 mil aves – vive no litoral do Paraná. Eles costumam formar casais que se mantêm unidos durante um longo tempo e, muitas vezes, por toda a vida.

        Porém, o lugar onde vivem os chauás sofre constantes ameaças, tais como:  desmatamento, turismo desregrado, pressão imobiliária, agricultura e extração de plantas importantes para a sobrevivência dessas aves.  Alterações mínimas em seu hábitat podem representar um grande impacto, considerando que a distribuição geográfica natural da espécie já é bastante restrita. Além disso, a espécie sofre com o tráfico de animais, principalmente devido à sua beleza, ao comportamento e à habilidade de imitar a voz humana. Cabe ressaltar que é considerado Crime Ambiental impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação (Lei de Crimes Ambientais, Art. 48), com pena de detenção de seis meses a um ano, e multa, assim como matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória. Incorre nas mesmas penas quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; quem vende, expõe a venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória. A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração e se for praticado em unidade de conservação (Lei de Crimes Ambientais, Art. 29).
 
Desde 1998 a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) desenvolve o “Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa”, com intuito de proteger as populações de papagaios, eliminando as ameaças à sua conservação e buscando o apoio da sociedade. O “Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Papagaios da Mata Atlântica” recomenda algumas estratégias para conservação da espécie, entre elas o aumento das ações de fiscalização no estado do Paraná, onde a maior concentração de indivíduos está presente e já existem Unidades de Conservação na área de ocorrência da espécie, para impedir a retirada de filhotes da natureza e o corte seletivo de espécies florestais utilizadas como ninhos. Mas aliado à conservação dessa espécie ameaçada, há o conflito de interesses com os moradores da Ilha Rasa - principal local de nidificação dos papagaios – que são considerados população tradicional, pois ocupam a ilha há várias gerações e mantém um modo de vida atrelado aos ciclos naturais e aos recursos pesqueiros. É tradição na região a construção de casas, canoas e remos de madeira nativa, especialmente a árvore de guanandi (Callophyllum brasiliense). Esta árvore é de fundamental importância para o papagaio-de-cara-roxa, tanto como fonte de alimento, quanto como local de dormitório e nidificação. Porém a comunidade de Ilha Rasa, onde os funcionários moram e a equipe do projeto de conservação permanece, já está bastante sensibilizada com a causa. Mostra-se muito interessada, percebe o aumento da população de papagaios na ilha e tem a preocupação com a conservação da Floresta. A pressão na floresta é exercida por moradores de outras comunidades da própria ilha e entorno, todos dentro da APA de Guaraqueçaba. Faz-se necessário a elaboração de um plano de manejo para a APA de Guaraqueçaba e para o Parque Nacional de Superagui que contemple a resolução deste conflito entre moradores locais e conservação da biodiversidade. Enquanto não houver uma estratégia adequada, a presença do Estado é fundamental para coibir as ações ilegais, pois muitos moradores ainda utilizam a floresta para retirar árvores, caçar e capturar filhotes de papagaio. Mas só a fiscalização não é suficiente, é necessária a aproximação dos órgãos competentes do governo nas comunidades que se encontram isoladas, além de fomentar a parceria de instituições sociais em prol destas comunidades que são extremamente carentes de educação, saúde e alternativas de renda, e ainda usam, de forma intensa, os recursos naturais como fonte de sobrevivência.

 Além dos interesses conservacionistas e a preocupação com a população tradicional que ocupa a região de ocorrência dos chauás, é necessário considerar também o bem-estar dos animais envolvidos nas pesquisas em campo. Uma das ações do Projeto de Conservação é a instalação de ninhos artificiais (de madeira ou PVC) em reposição aos ninhos naturais perdidos, seja por queda ou apodrecimento natural, roubo de filhotes seguido de destruição do ninho ou corte das árvores. Temos que analisar a possibilidade do Projeto de Conservação deixar de existir em algum momento e, considerando que os ninhos artificiais de madeira tem durabilidade média de dois anos, e a médio prazo podem ainda não existir ocos em árvores ou bromélias arbóreas suficientes para nidificação, essa situação poderia acarretar no declínio da população do Amazona brasiliensis, já que os animais estão habituados a ocupar caixas-ninho artificiais, que são ofertadas em grande quantidade atualmente. Outra preocupação está ligada à temperatura dos ninhos artificiais, já que os ninhos em PVC (que são internamente brancos e pintados externamente de tinta atóxica na cor marrom), tendem a absorver mais calor. Estudos ainda precisam ser realizados para garantir que o material e a temperatura mais elevada desses modelos não afetem o bem-estar dos animais que possam ali se instalar no período reprodutivo. Até o momento não foram registrados problemas. Aparentemente a espécie está bem adaptada às altas temperaturas e a taxa de sobrevivência de filhotes nesse modelo de caixa-ninho foi alta.
           
Dos tipos de pesquisa realizados pelo Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa, provavelmente a radiotelemetria - técnica que consiste em monitorar as  ações das aves por meio de sinais emitidos por rádio-colar colocado nos animais - é a que envolve mais dúvidas em relação ao bem-estar dos animais envolvidos, pois o peso que os animais podem carregar é duvidoso, o material de fabricação dos rádio-colares (aço e plástico) tende a deixar os indivíduos mais visíveis a possíveis predadores, podendo também causar rejeição por parte dos parceiros. Outro problema envolvido é que os animais com o aparelho raramente podem ser recapturados, dificultando obtenção de dados sobre possíveis feridas que o material possa causar nos indivíduos. Os papagaios, com facilidade de debicar, podem ainda remover ou ingerir partes do radiotransmissor, comprometendo sua saúde. Em pesquisa realizada em cativeiro, os animais demonstraram incômodo em relação ao aparelho, porém não podemos comparar o comportamento de um animal cativo com os animais de vida livre, sendo necessários mais estudos para garantir segurança e eficiência nas pesquisas que utilizam radiotelemetria.
            Periodicamente é realizado um censo populacional, que tem demonstrado ser um meio eficaz para análise da população, contribuindo significativamente na elaboração de estratégias para conservação do Amazona brasiliensis, e não interfere diretamente nos hábitos e bem-estar dos animais, já que os pesquisadores se mantêm a uma distância considerável para observação e obtenção de dados.

            Outra importante atividade realizada pelo projeto é a biometria em alguns indivíduos da espécie, que consiste em tomar as medidas do bico, asas, cauda e comprimento. Depois a ave é pesada e tem sua idade estimada. Também é feita a coleta de sangue ou de uma pena de cada animal. Dessa forma, é possível verificar o estado de saúde e o sexo, além de determinar as características genéticas. Após o monitoramento, o filhote é imediatamente devolvido ao ninho. Apesar do cuidado e experiência dos pesquisadores, é inevitável causar uma situação de estresse aos animais que passam pelo biometria. O indivíduo é retirado do ninho e colocado em um saco de tecido, do qual é retirado para o procedimento (coleta de material genético, tomada de medidas, avaliação de parasitas externos, etc.), então é colocado novamente no saco de tecido e devolvido em seguida ao ninho. Porém, se avaliarmos o tempo pelo qual o animal tem seu bem-estar afetado - durante a manipulação para biometria (cerca de 10 minutos) - podemos considerar praticamente irrelevante frente aos benefícios que a técnica agrega à conservação da espécie, com coleta de dados substanciais sobre a população.

            Desde 2012, durante todo o período reprodutivo os papagaios-de-cara-roxa são monitorados 24 horas por dia pela equipe do projeto de conservação da espécie, por meio de câmeras instaladas nos ninhos, registrando os cuidados dos pais e as fases de desenvolvimento das aves – da postura dos ovos até a saída dos filhotes dos ninhos. Apesar dos aparelhos serem instalados discretamente nas caixas-ninho, alguns momentos da filmagem mostram os papagaios debicando a câmera interna. Tal comportamento pode indicar que os animais percebam o equipamento como possível ameaça, prejudicando o bem-estar dos mesmos e podendo até mesmo acarretar no abandono do ninho/filhotes pelos indivíduos adultos. Outra preocupação pode estar relacionada ao material das câmeras e instalação, já que os papagaios tem o costume de debicar e podem, além de estragar o equipamento, acabar ingerindo partes do material (fios, metal, plástico, cola ou fita adesiva), o que pode comprometer a saúde dos animais.

            Em geral, o Projeto de Conservação do Papagaio-de-Cara-Roxa tem demonstrado utilizar meios eficazes para o aumento e manutenção da população da espécie, aparentemente não interferindo substancialmente no bem-estar dos animais, e preocupando-se também com a aproximação das comunidades tradicionais, que vivem nos principais locais de nidificação dos papagaios, buscando apresentar alternativas para geração de renda e conscientização sobre a importância dos papagaios para o litoral do Paraná, incentivando inclusive o ecoturismo na região. O que ainda sentimos falta é o maior rigor nas fiscalizações para coibir o tráfico de animais e a retirada desenfreada de árvores nativas das florestas, e não somente no caso dos papagaios-de-cara-roxa no Paraná, mas também com inúmeras espécies de animais e florestas igualmente importantes para a biodiversidade brasileira.


O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética e Bem-estar Animal e baseado nas seguintes obras:


·         BRASIL, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2011. Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Papagaios da Mata Atlântica. Brasília: ICMBio.



·         BRASIL. Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 - Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e da outras providencias. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/gab/asin/lei.html>. Acesso em: 19 de nov. 2013.



·         Scherer Neto, P.; Toledo, M. C. B. 2007. Avaliação Populacional do papagaio-de-cara-roxa, (Amazona brasiliensis) (Psittacidae) no Estado do Paraná, Brasil. Ornitologia Neotropical: 379-393.



·         Schlegel, L. O., Rivera, R., Santos, L. G., Rocha, S., S., Sipinski, E. A. B. & Serafini, P. P., 2004. A influência de radiotransmissores no comportamento de Amazona brasiliensis em cativeiro. In: XXIX Congresso da Sociedade de Zoológicos do Brasil.



·         Seixas, G.H.F., Guedes, N.M.R., Martinez, J. & Prestes, N. P. Uso de radiotelemetria no estudo de psitacídeos. In: Ecologia e conservação de psitacídeos no Brasil. Eds. M. Galetti & M.A Pizo. Melopsittacus Pub. Científicas. Belo Horizonte. 2002. p. 141-156.



·         Sipinski, E. A. B. 2003. O papagaio-de-cara-roxa (Amazonas brasiliensis) na Ilha Rasa, PR – Aspectos ecológicos e reprodutivos e relação com o ambiente. Curitiba, 74f. Dissertação (Mestrado em Ciências Florestais) Curso de Pós- Graduação em Engenharia Florestal, Universidade Federal do Paraná.



·         Sipinski, e. A. B.; Bóçon, R. 2008. Conservação do papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) no litoral do Paraná. In: MARTINEZ, J; PRESTES, N. P. (Org.). Biologia da Conservação: estudo de caso com o papagaio-charão e outros papagaios brasileiros. Passo Fundo: Ed Universidade de Passo Fundo. p. 257-273.



·         Sipinski, e. A. B.; Macedo, C. X. 2009. A conservação do papagaio-de-cara-roxa (amazona brasiliensis) na área de proteção ambiental de Guaraqueçaba – uma unidade de conservação de uso sustentável garante a conservação de espécies ameaçadas? In: VI Congresso Brasileiro de Unidade de Conservação. Curitiba, Paraná. Artigo.





·         SPVS. Novos ninhos artificiais na RPPN Serra do Itaqui. Disponível em: <http://papagaiodecararoxa.org.br/?p=155>. Acesso em: 19 de nov. 2013.



·         SPVS. Resultados do censo do papagaio-de-cara-roxa revelam estabilidade da espécie no estado do Paraná. Disponível em: <http://www.spvs.org.br/resultados-do-censo-do-papagaio-de-cara-roxa-revelam-estabilidade-da-especie-no-estado-do-parana/>. Acesso em: 19 de nov. 2013.



·         SPVS. Monitoramento dos ninhos nas ilhas Rasa, Gamelas e Grande. Disponível em: <http://papagaiodecararoxa.org.br/?p=233>. Acesso em: 19 de nov. 2013.



·         SPVS. Câmeras monitoram ninho de papagaios-de-cara-roxa. Disponível em: <http://www.spvs.org.br/cameras-monitoram-ninho-de-papagaios-de-cara-roxa/>. Acesso em: 19 de nov. 2013.

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