segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A economia do sofrimento: o que há por trás do abate clandestino

 

por: Isabella Perussi, Heloise Manfron, Juliana Lira, Julia Ross, Milena Barbosa e Rayane Cagni.

 

Caso: Operação em Santo André flagra abatedouro e criadouro ilegal de animais

Link:https://portais.santoandre.sp.gov.br/semasa/2025/03/26/operacao-em-santo-andre-flagra-abatedouro-e-criadouro-ilegal-de-animais/

 Em março de 2025, uma operação policial conjunta do Serviço Municipal de saneamento Ambiental e da Polícia Civil interditou um abatedouro e criadouro ilegal de aves em Santo André . O local onde os animais eram mantidos em condições inadequadas, foi caracterizado crime de maus-tratos devido à ausência de vacinação adequada, com baias sujas, presenças de moscas, roedores e alimentos guardados de forma irregular, além disso não tinham licença ambiental ou sanitária. A operação resultou na apreensão de todas as aves, da carne produzida e dos equipamentos utilizados no abate clandestino. A descoberta de um abatedouro clandestino em Santo André vai muito além da ilegalidade. Esse caso é um exemplo dos graves conflitos éticos que existem por trás da nossa comida, especialmente da carne de frango. Ele mostra como a busca por preços baixos e lucro acaba sacrificando o bem-estar do animal, a saúde pública, a justiça social e o meio ambiente. A prática ilegal resulta em diversas consequências negativas, como é o caso da exposição dos animais ao extremo sofrimento; poluição ambiental com o descarte inadequado de carcaças e despejo de dejetos em mananciais; danos à economia com a questão da sonegação fiscal; e prejuízos à saúde pública, visto que, os produtos obtidos a partir do abate clandestino podem ser vetores das doenças, as zoonoses.

Dentro deste caso, o valor do Bem-Estar Animal [MF4] foi completamente negligenciado, onde as aves confinadas em estabelecimentos ilegais são normalmente privadas de suas liberdades mais básicas, já que o bem-estar dos animais surge quando a qualidade de vida destes é garantida pela sua importância como seres vivos e não pelo valor instrumental para alcançar objetivos externos. Esses animais vivem em condições de superlotação extrema, sem acesso a cuidados veterinários, alimentação adequada ou ambientes que permitam a expressão de seus comportamentos naturais. A avicultura brasileira [MF6] é uma das cadeias mais concretas de produção de proteína animal do agronegócio, ocupando a posição de maior exportador e o segundo maior produtor de carne de frango. De acordo com o Código Sanitário dos Animais Terrestres, (OIE) (2021), [ bem-estar animal significa como o animal enfrenta as condições do ambiente de criação, estando saudável, adaptado (sem dor, medo ou sob desafios sanitários), nutrido e protegido (de intempéries, predadores etc.) livre para expressar os comportamentos naturais da espécie. Os frangos de corte normalmente são submetidos a uma intensa seleção genética voltada para características produtivas, como rápido ganho de peso, alta eficiência alimentar e redução da idade de abate, porém, esses animais enfrentam sérios desafios de bem-estar como o aumento de problemas sanitários, fisiológicos como a Síndrome da Morte Súbita e a Ascite, além de diversas patologias locomotoras, incluindo deformidades nas pernas, discondroplasia tibial e degeneração femoral.  Durante o processo de matança em aviários clandestinos, estes animais não passam pelo processo de insensibilização, com isso são expostos a uma morte extremamente estressante, sofrida e dolorosa. Se em ambientes que estão dentro da legalidade, seguindo normas rigorosas como as estabelecidas pelo Código Sanitário de Animais Terrestres da OIE, já é difícil se abster de problemas como estresse, lesões, agressões entre animais ou surtos de doenças durante o transporte, imagine em ambientes que são clandestinos. Nessas condições, não há supervisão, planejamento de viagem, capacitação de tratadores, instalações adequadas ou qualquer documentação exigida. Além disso, o desrespeito com a vida desses animais está diretamente ligado ao desrespeito com o valor da saúde da população, onde a falta de inspeção veterinária, o controle inadequado de temperatura e a manipulação dos produtos em condições higiênicas precárias criam um ambiente propício para a contaminação por bactérias, através das doenças transmitidas dos animais à população, já que a carne de frango é um ambiente extremamente propício para o desenvolvimento de bactérias. Os microrganismos podem se multiplicar, causando deterioração e outros podem constituir um perigo ao homem podendo causar doenças infecciosas ou intoxicações. Dentre as principais zoonoses transmitidas por conta das péssimas condições higiênicas durante o abate se destacam a brucelose, teníase, cisticercose, hidatidose, leptospirose, toxoplasmose, salmonelose, tuberculose e antraz. Então, a escolha pelo baixo custo imediato do produto, posteriormente terá um preço alto para o bem-estar da comunidade.

Outro valor que é desconsiderado quando se trata da carne produzida em criadouros/abatedouros clandestinos é o da sustentabilidade ambiental. O processo de abate gera vários resíduos que necessitam de um manejo correto e geridos de forma a amenizar os seus impactos ambientais. Dentre estes resíduos gerados por matadouros, pode-se citar: efluentes líquidos (águas residuais contaminadas com sangue, esterco, vômito, óleos e graxas) e os resíduos sólidos (sebo, ossos, esterco, couro, vísceras etc.), e a maneira como estes lugares despejam seus resíduos no ambiente tem influência direta para no meio físico, biótico e socioeconômico, podendo gerar perdas que muitas vezes podem ser irreparáveis. [MF13] Um abatedouro clandestino, que não possui a devida fiscalização do manejo de resíduos produzidos, descarta esses subprodutos de forma irregular, contaminando solos e corpos hídricos locais. Portanto, o custo do frango barato, nesse contexto, é subsidiado pela degradação do meio ambiente. Esse sistema cria diversas injustiças, onde de um lado, produtores éticos são prejudicados pela concorrência de quem burla a lei para reduzir os custos. De outro, a população de baixa renda, sem alternativas acessíveis, torna-se o mercado principal desses produtos clandestinos, ficando exposta a riscos à saúde. A produção da carne denominada clandestina é feita por pecuaristas que não investiram em sanidade ou por produtores que insistem em fazer abate fora dos padrões. Ela é caracterizada por um produto com baixo valor, associado à qualidade inferior, onde o principal objetivo é a competição de preços, atendendo assim consumidores de baixa renda, que não possuem exigências pela qualidade do alimento.  É um cenário onde tanto quem tenta fazer o certo quanto quem já está em situação vulnerável saem perdendo. Diante dessa realidade, como biólogos, somos convidados a refletir profundamente sobre os valores que orientam nossa atuação profissional e ética. Nosso compromisso vai além da pesquisa e da técnica: envolve o respeito pela vida em todas as suas formas e pela interdependência entre os seres vivos e o ambiente. Em situações como essa, precisamos reafirmar o papel da Biologia como ciência que defende o equilíbrio ecológico, o bem-estar animal e a saúde pública, promovendo práticas sustentáveis e compassivas. Cabe a nós utilizar nosso conhecimento para denunciar, educar e propor soluções que reduzam o sofrimento animal e restaurar a harmonia entre a sociedade e a natureza. Além disso, é importante ir além da discussão meramente legal. A existência de leis e normas sanitárias, embora essenciais, não garante por si só a erradicação de práticas clandestinas. A legislação funciona para quem está disposto a cumpri-la; quem não está, explora as brechas de um sistema frágil e desigual. No caso da produção de carne clandestina, o problema transcende a esfera jurídica e revela uma realidade social marcada pela profunda desigualdade econômica. Para muitas pessoas, o acesso a proteína animal de qualidade só é possível por meio dessas práticas ilegais, o que evidencia uma precariedade estrutural que perpetua a vulnerabilidade de animais, de pessoas e do meio ambiente. Portanto, o foco não deve ser apenas rotular uma prática como clandestina, mas questionar o sistema que a sustenta e refletir sobre como construir alternativas mais justas e sustentáveis para as gerações atuais e futuras.

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Biologia e Evolução do Comportamento Animal tendo como base as obras:

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