Maria Natalia Martins
Mestre e Doutoranda em Ciência Animal pela PUC PR
Stefanie Araújo de Souza
Nutricionista, Aluna de Disciplina Isolada (Bioética) pela PUC PR
Andrea Cristina Martins
Doutora em Ciências Sociais Aplicadas UEPG.
Você já leu o livro O Urbenauta, de autoria de Eduardo Felianos? Esse livro foi fruto de uma aventura do autor viajando durante 100 dias no município de Curitiba entre outubro de 1997 e janeiro de 1998. Apesar de passadas quase três décadas, muitas situações se perpetuam. Um dos capítulos do livro é intitulado “Em busca do rio Belém”. Esse título nos traz reflexões: será que após tantos anos encontramos o rio Belém? Quem é o rio Belém para as pessoas?
“The Kinks e sua música animam a Urbenave Guliver. Rumamos mais uma vez para o extremo norte da cidade. Trilhas urbanas para encontrar o único dos cinco grandes rios que nasce em Curitiba: o Belém. É preciso andar e perguntar muito até se chocar com a informação: o Belém nasce junto de um cemitério. Para encontra-lo recebo a ajuda do Seu Laudelino que, morbidamente, me diz que o Belém já nasce morto e que se estivesse dentro do cemitério os mortos cuidariam dele melhor do que nós, os aparentemente vivos.
Seguimos a pé por campos, parques e ruas até encontrar uma porção navegável abaixo de um viaduto.
A água de esgoto cai à nossa frente. Sabemos que a mata fechada do Passaúna ou as corredeiras e fogões do Barigui não são nada comparadas ao perigo de contaminação do rio Belém.”
O capítulo prossegue com o relato da viagem pelo rio Belém, encerrando-se com o seguinte diálogo:
“Pergunto [a um ribeirinho] o motivo de jogarem tanto lixo no rio. A resposta é seca:
- Já tá sujo, mesmo!”
Esse breve trecho do livro e esse diálogo final, nos permitem refletir sobre a nossa relação com o meio ambiente, nesse texto, em especial, com os rios.
Qual o seu olhar sobre os rios? Como se dá a vida nos rios? Qual a importância dos rios no ciclo da vida? Os rios podem ser sujeitos de direitos? São tantas questões e muitas outras que poderíamos fazer, mas a ideia está lançada, é preciso ter uma compreensão mais ampla e complexa da existência dos rios em nossas cidades e da possibilidade do reconhecimento jurídico dos rios como sujeitos de direitos.
Vamos iniciar tratando da história do rio Belém.
O Rio Belém é uma das seis bacias hidrográficas que banham Curitiba, porém, é o único rio na região que é genuinamente curitibano. Ele nasce no bairro Cachoeira, e desagua junto ao rio Iguaçu, no bairro do Boqueirão. Abrange cerca de 21,46 km de extensão e percorre uma área intensamente urbanizada, além de parques como o São Lourenço, Bosque do Papa João Paulo II e Passeio Público, que foram criados com o propósito de preservação do rio e contenção de alagamentos. Atualmente apresenta o maior índice de poluição dos rios que banham a cidade, segundo o
IAP, tendo como causas, deficiência de esgotamento sanitário, descargas de dejetos domésticos, ocupações desordenadas e irregulares e resíduos industriais. Infelizmente, esse relato já foi feito por Eduardo Felianos há vários anos. Quase completamente canalizado para abrir espaço às construções e atender à demanda por saneamento, além de mitigar problemas relacionados a enchentes, como aconteceu na rua Mariano Torres, região central de Curitiba, seu curso natural foi desviado, sua biodiversidade alterada e sua capacidade de regenerar os ciclos biológicos comprometida. A intervenção de canalização dos rios é um tema relevante, no entanto, não será aprofundada, pois ultrapassa o escopo da abordagem proposta.
Dentre os questionamentos que propusemos inicialmente, iremos retomar alguns: Qual o seu olhar sobre os rios? Como intervimos nos rios? Você conhece o conceito de biofilia?
O conceito de Biofilia, popularizado pelo biólogo
Edward O. Wilson, explica a tendência humana de buscar conexão com a natureza e outros seres vivos. Atividades como caminhar em parques, explorar trilhas, praticar jardinagem ou conviver com animais domésticos reforçam essa conexão, trazendo
benefícios significativos para a saúde mental, o bem-estar e a qualidade de vida.
A
biofilia, portanto, impulsiona práticas de conservação e a restauração de ambientes naturais, ajudando a desenvolver uma consciência e o desenvolvendo a sustentabilidade. Nesse aspecto, a biofilia pode servir como fundamentação teórico-crítica para a discussão dos rios como sujeitos de direito.
Essa perspectiva, qual a sua relação com o Rio Belém? Protegemos esse recurso hídrico vital? Fomentamos um ambiente que beneficia a saúde e o bem-estar das comunidades locais? Ou apenas não nos envolvemos com essa temática?
Não podemos deixar de refletir também sobre como as ações humanas podem ser direcionadas a evitar danos aos nossos recursos naturais. Nessa reflexão, a Bioética Ambiental pode contribuir de forma significativa. Você conhece o princípio da não maleficência? Esse princípio é uma das pedras angulares desse ramo da ciência e se traduz na obrigação de proteger o ecossistema e das comunidades.
A degradação ambiental, frequentemente provocada por ações humanas, como a poluição e a exploração desmedida, não apenas compromete a saúde do rio, mas também compromete a saúde das populações ribeirinhas, gerando consequências sociais e econômicas adversas.
Conhecer esses conceitos pode nos ajudar em uma mudança real. Integrar estes conceitos nas políticas de gestão ambiental é essencial para evitar a deterioração de ecossistemas aquáticos. A abordagem deve ser proativa, buscando não apenas mitigar danos, mas também promover ações que visem a restauração e a conservação.
Os
pesquisadores do grupo de pesquisa em Bioética Ambiental, fornecem um arcabouço teórico fundamental para a análise das relações entre os seres humanos e a natureza, atuando para a transição da
ética ambiental para a bioética ambiental. Nesse ponto, como podemos analisar uma abordagem que relacione a bioética com o rio Belém?
Essa abordagem legitima o reconhecimento do rio Belém como sujeito de direito, além de incentiva uma cultura de cuidado e proteção, alinhada aos valores da biofilia.
Mas, um rio pode ser um sujeito de direitos? O
reconhecimento dos rios como sujeitos de direitos vem ganhando força em vários sistemas jurídicos ao redor do mundo. Legitimar os corpos hídricos como entidades com interesses próprios está sendo implementado em países como
Equador,
Nova Zelândia e
Colômbia. No Brasil, se faz necessário abrir um diálogo sobre como os rios podem ser protegidos dentro de uma abordagem de ética ambiental para então partir para a criação de novas legislações nacionais que abordem o tema. No contexto brasileiro, a primeira lei a reconhecer os direitos legais de um rio foi aprovada pela Câmara Municipal de Guajará-Mirim, em Rondônia validando o
rio Laje como um ente vivo e sujeito a direitos. Essa legislação reconhece não apenas os direitos intrínsecos do rio, mas também dos demais corpos d'água e seres vivos que nele habitam ou que com ele interagem, incluindo os seres humanos.
Na âmbito internacional, a
Declaração Universal dos Direitos dos Rios, surgiu em resposta a uma crescente demanda de movimentos globais preocupados com a relação da humanidade com a natureza. O intuito é reconhecer legalmente os rios como entidades com direitos próprios, ou seja, direitos inerentes à sua existência (fluir livremente, regenera-se, nutrir e ser nutrido). A declaração, formalizada pela organização ativista
Earth Law Center em 2017, buscou proteger a integridade dos rios e preservar seu papel essencial nos ecossistemas, garantindo-lhes o direito de fluir livremente, manter suas funções ecológicas, sustentar a biodiversidade e regenerar seus ciclos naturais, sem interferência ou exploração humana prejudicial.
E o Rio Belém? O reconhecimento do rio Belém como sujeito de direito, revela a complexidade e a interdependência das relações entre os seres humanos e a natureza. Esse reconhecimento exige que as práticas de gestão sejam orientadas por princípios éticos que priorizem a integridade ambiental e a justiça social. Assim, essa perspectiva vai além de uma mera apreciação estética, estendendo-se a uma reflexão com um compromisso ético que transcende as relações
utilitárias e propõe uma nova forma de interagir com os ecossistemas, cultivando um vínculo mais profundo com a natureza, reconhecendo os rios como seres vivos com os quais compartilhamos o planeta. Essa mudança de paradigma é fundamental para promover uma convivência sustentável e respeitosa entre os seres humanos e a natureza, essencial para o futuro da biodiversidade e do bem-estar humano.
Portanto, nós como futuros aspirantes a bioeticistas acreditamos que a adoção de políticas que reconheçam e promovam a biofilia, alinhadas aos princípios da não maleficência, é crucial para garantir que as interações entre as comunidades e o Rio Belém sejam sustentáveis, justas e benéficas para todos os envolvidos. O comprometimento com esses princípios não é apenas uma responsabilidade ética, mas uma necessidade imperativa para a construção de um futuro mais sustentável e equitativo, e assim, possibilitando a alteração da visão de mundo, na qual todas as formas de vida são importantes. É reconhecer os rios como recursos vivos e sujeitos de direitos. Há muito para construir e é preciso começar agora...
O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR tendo como base as obras:
EARTH LAW CENTER. Declaração Universal dos Direitos dos Rios. Disponível em: < https://www.earthlawcenter.org/river-rights >. Acesso em: 1 nov. 2024.
FENIANOS, E. O Urbenauta: manual de sobrevivência na selva urbana. Curitiba: UniverCidade, 1998.
FISCHER, M. L.; CUNHA, T.; RENK, V.; SGANZERLA, A.; SANTOS, J. Z. DOS. Da ética ambiental à bioética ambiental: antecedentes, trajetórias e perspectivas. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 24, n. 2, p. 391–409, 1 abr. 2017.
IAP, I. A. DO P. Monitoramento da qualidade das águas dos rios da Bacia do Alto Iguaçu, na Região Metropolitana de Curitiba, no período de 2005 a 2009.CuritibaIAP,2009. Disponível em: <https://www.iat.pr.gov.br/sites/agua-terra/arquivos_restritos/files/documento/2021-03/monitoramento_da_qualidade_agua_1992_2005_rmc.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2024
LENCASTRE, M. P. A.; MARQUES, P. F. Da Biofilia à Ecoterapia. A Importância dos Parques Urbanos para a Saúde Mental. 2022.
SAWCZUK, A. T.; ROCHAVETZ DE LARA, M. V.; ELITA, T.; MARTINS, I. Rios Urbanos: Estudo de Caso do Rio Belém, Curitiba/PR, 2013.
SGANZERLA, A.; RAULI, P. M. F.; RENK, V. E. Bioética Ambiental. [s.l.] PUCPRESS, 2018.
SILVA, Y. D. DA; LOUREIRO, S. M. DA S. Rios e Pessoas: Uma discussão sobre a efetividade da técnica de declaração de bens jurídicos ambientais como sujeitos de direito a partir das experiências dos rios atrato e doce. Cognitio Juris, v. 14, mar. 2023.
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