Por Marta Luciane Fischer
Como bióloga, não tem como não trazer aqui a certeza que tive na minha última viagem, ao passar por um dos tantos Portais da Índia. O rio Ganges, que pude cruzar em diferentes cidades e contextos.O Rio Ganges, na verdade é uma Deusa. A Ganga era uma deusa celestial, filha do rei das montanhas, e irmã da deusa Parvati, esposa de Shiva. Nos tempos antigos, ela habitava os céus como um rio divino, reverenciado por sua pureza e força. Certo dia, o rei Sagara realizou um grande sacrifício e, como parte do ritual, soltou um cavalo sagrado, que acabou sendo roubado e levado ao um sábio. Os 60.000 filhos de Sagara, ao encontrarem o cavalo, acusaram injustamente o sábio, que, enfurecido, os reduziu a cinzas e decretou que suas almas só encontrariam paz se fossem purificadas pelas águas de Ganga. Muitos anos depois, um rei descendente de Sagara, decidiu trazer Ganga à Terra para libertar as almas de seus antepassados. Ele realizou uma intensa penitência para agradar Brahma, que concedeu seu desejo, mas alertou que o impacto da descida de Ganga seria destrutivo. Para evitar a destruição da Terra, rezou a Shiva, que aceitou segurar Ganga em seus cabelos. Quando Ganga finalmente desceu dos céus, Shiva a reteve em seus longos cachos, liberando-a suavemente em forma de rio. Ganga então seguiu o rei até o local onde estavam as cinzas dos filhos de Sagara, purificando suas almas e lhes concedendo a libertação. Desde então, o Rio Ganges é considerado sagrado, simbolizando a pureza, a redenção e a conexão entre os mundos divino, terreno e espiritual.
É simplesmente indescritível o Som do Ganges descendo himalaia, é tão forte e intenso que é impossível não ir; os rituais de agradecimento ao rio realizados no final da tarde, com o ritmo das orações, músicas, cores, aromas, sabores é impossível não ir; nas cidades sagradas como Varanasi, o nascer do sol, os banhos dos fiéis, as oferendas e as cremações na beira do rio, é impossível não ir. A harmonia do espaço partilhado entre carros, pessoas, animais e deuses num ritmo incompreensível para nossos sentidos, é impossível não ir. É lógico que não precisa ir pra Índia para compreender que a maior liberdade que podemos ter como seres humanos, é não ter medo. Justamente o combustível para o funcionamento das sociedades ocidentais, o que nos move a fazer, a fazer rápido, a fazer muito e a fazer o que não é preciso ser feito. Temos medo de perder o emprego, de não se casar, ou de escolher errado, de não ter filhos, ou de não conseguir educá-los, de envelhecer, de ficar sozinho, de perder a identidade por ser violado e roubado em nossos sonhos, valores e dignidade, de viver e de morrer. Uma prisão dentro da outra. A cultura Hindu há 5 mil anos tem conseguido, por meio da história de seus deuses, presentes em todos os cantos das cidades, trazer a resistência e a certeza de que não precisa ter medo.
Os processos sociais utilizados são criticados pelos ocidentais que não entendem o sistema de casta, o casamento arranjado, as roupas exuberantes, os temperos exagerados, os milhares de deuses coloridos que ora são pessoas, ora animais, ora espíritos e ora são tudo junto; que não entendem a reencarnação que permite o respeito por quem está mais abaixo, pois sabe que um dia foi assim; e admiração de quem está acima, pois um dia será assim! O respeito pela autonomia e direito de deslocamento de vacas, cães, macacos, esquilos, camelos, elefantes pelas ruas caóticas e desconstruídas das cidades; que não são bem-tratados como pessoas; nem maltratados por não serem pessoas, ainda!. Na índia os símbolos e as representações ocidentais não funcionam, nossos sentidos são provocados o tempo por todo, por estímulos desconhecidos, intensos que ao mesmo tempo que nos choca com uma realidade incompreensível; também nos joga para dentro de nós mesmos trazendo a compreensão de que cada um de nós é um portal; de que nós somos o rio; o rio que desce dos céus, para nutrir e libertar, mas que é está sendo segurado por Deus, para não destruir por onde passa; Assim como o rio, vamos nos adaptando ao percurso, agregamos as vivências por onde passamos, e no final da jornada iniciamos novamente. Se 70% do nosso corpo é água, uma água que circula interligando o tempo, o espaço, os organismos e ecossistemas; nós somos o Rio; e se Deus nos fez a sua imagem e semelhança; então Deus é o Rio? Se assim for, nada na vida é vão, tudo tem sentido e esse sentido é o sentido do Rio.
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