sábado, 26 de outubro de 2024

A Cadeirada do Debate: Instintos Primários em Conflitos Políticos

por Adrielle da Silva, Nathalia Alice de Almeida  e  Tenoch Yakecan Duanetto de Sousa

Formandos em biologia


Durante os debates políticos para a eleição de 2024 para prefeito da cidade de São Paulo, ocorreu um incidente polêmico: o candidato Datena agride Pablo Marçal com uma cadeira após uma série de provocações. O cenário político da maior cidade do Brasil foi marcado por uma ação que muitos consideraram “primitiva”, fugindo daquilo que se espera de líderes civilizados e bem educados. Ao ceder aos impulsos emocionais, Datena apresentou um comportamento que, à primeira vista, poderia ser associado a uma resposta instintiva de impulsos agressivos que ocorrem na natureza em situações de alto risco de sobrevivência ou perda de território. Tal comportamento agressivo é uma expressão emocional comum em situações de conflito e pode ser interpretado sob diferentes perspectivas biológicas, evolutivas e psicológicas.
A contenção do comportamento agressivo foi essencial para a evolução do comportamento social humano, pois permitiu o desenvolvimento de sociedades cooperativas e complexas. Ao controlar impulsos violentos, os indivíduos puderam colaborar em tarefas essenciais, como caça e defesa, além de estabelecer estruturas sociais organizadas com regras e normas que regulavam a convivência. Isso favoreceu a resolução pacífica de conflitos, promovendo a coesão e a continuidade dos grupos. Além disso, a evolução do córtex pré-frontal e suas funções de controle de impulsos e tomada de decisões racionais possibilitou uma melhor gestão de tensões sociais, reforçando a capacidade de viver em comunidades maiores e mais organizadas.
Para entender esse tipo de comportamento, é interessante traçar paralelos com os mecanismos que levam à agressividade em animais. Em espécies não humanas, a agressão é modulada por uma combinação de fatores biológicos, evolutivos e contextuais. Hormônios como a testosterona e o cortisol desempenham papeis importantes, intensificando reações agressivas. No cérebro, a amígdala, uma estrutura pertencente ao sistema límbico, é responsável por respostas emocionais intensas, como a raiva, enquanto variações genéticas podem predispor certos indivíduos a comportamentos mais agressivos. Evolutivamente, a agressividade atua como uma estratégia para garantir a sobrevivência, relacionada à competição por recursos, defesa territorial e estabelecimento de hierarquias sociais. Em muitos casos, essas hierarquias ajudam a regular interações dentro do grupo, impondo limites claros entre os indivíduos. Psicologicamente, fatores como o condicionamento social e a experiência passada influenciam o comportamento agressivo; por exemplo, em cães, a agressividade pode variar significativamente conforme o ambiente e o contexto social em que o animal se encontra. Cães que se sentem ameaçados ou que percebem uma invasão de território geralmente respondem de forma agressiva, enquanto em ambientes familiares e seguros tendem a demonstrar menos reatividade.

No incidente entre Datena e Marçal, esses princípios podem ter surgido de forma semelhante, embora com nuances próprias da espécie humana. Para ambos, fatores sensoriais foram cruciais: a visão para identificar o objeto (a cadeira) e o alvo (o oponente), e o som da ação alertou as pessoas ao redor, criando uma atmosfera de perigo e provocando tentativas de intervenção. A cinestesia — ou a percepção dos movimentos corporais — também foi essencial para a execução do ato agressivo, assim como os padrões modais herdados da evolução, como o instinto de defesa quando o status no grupo é ameaçado.
No entanto, o comportamento humano é mais complexo, pois inclui uma série de fatores adicionais. Além da testosterona e do cortisol, a serotonina desempenha um papel inibitório, regulando impulsos agressivos. O córtex pré-frontal, responsável pela tomada de decisões racionais, modera a resposta da amígdala, ajudando a inibir reações impulsivas ao permitir uma avaliação das consequências. Ainda assim, predisposições genéticas podem influenciar a agressividade, e fatores psicológicos, como a socialização, desempenham um papel fundamental. A maneira como o indivíduo foi criado, suas experiências de infância e a cultura em que está inserido podem moldar a expressão de comportamentos agressivos.
No caso de Datena, pode-se argumentar que a agressão física foi um mecanismo para estabelecer uma hierarquia social
momentânea dentro do contexto do debate. Ao sentir-se desafiado verbalmente por Marçal, sua resposta agressiva pode ser interpretada como uma tentativa de reafirmar seu status dentro daquela interação. Da mesma forma, a resposta de Marçal — tanto em palavras provocativas quanto em gestos defensivos — demonstra a prontidão de um indivíduo para lidar com uma situação de confronto iminente. Esse comportamento possui um paralelo com a dinâmica social dos chimpanzés, que também recorrem à agressão física e a gestos de intimidação para estabelecer ou defender posições hierárquicas em seu grupo. Em situações de disputa territorial ou de poder, os chimpanzés exibem uma série de ações agressivas e defensivas para reafirmar sua posição e afastar ameaças, destacando como, em ambos os casos, o comportamento se ajusta a uma lógica de dominância e autopreservação, mesmo entre indivíduos em uma sociedade complexa. Inclusive na exibição de poder, os chimpanzés batem galhos no chão enquanto gritam para intensificar a intimidação e garantir a liderança, sendo que na maioria das vezes vence o mais habilidoso, que necessariamente não é o mais forte.
Do ponto de vista moral e ético, a agressão foge das expectativas de um debate político civilizado, onde se espera que os candidatos mantenham decoro e respeito mútuo. Moral, neste caso, refere-se aos princípios ou regras sociais que definem o que é considerado certo ou errado em uma sociedade, sendo a agressão vista como inadequada e contrária ao ideal de civilidade. Já a ética se relaciona aos padrões de comportamento ideais que devem guiar as ações em determinados contextos; aqui, implica que os candidatos, como figuras públicas, têm a responsabilidade de agir com decoro e respeito, conforme as normas estabelecidas para o debate político. No entanto, a dinâmica de poder, os instintos herdados e as pressões do ambiente competitivo podem empurrar os indivíduos para além das normas sociais, revelando o quanto o comportamento humano ainda é influenciado por impulsos primitivos em contextos de alta tensão. Esse incidente nos leva a refletir: como humanos, somos realmente diferentes dos animais quando confrontados com ameaças ao nosso status social? E será que todo animal responde da mesma forma?
Do ponto de vista de futuros biólogos, o incidente entre Datena e Marçal suscita reflexões importantes sobre a natureza humana e as interseções entre comportamento instintivo e civilização. Embora, como sociedade, esperemos que figuras públicas ajam de maneira racional e controlada, o episódio revela que os impulsos biológicos, muitas vezes, continuam a influenciar nossas ações em situações de estresse e conflito. A compreensão da agressividade como um comportamento evolutivamente preservado, mas modulado por fatores sociais e culturais, nos ajuda a reconhecer que, por mais que a biologia nos forneça uma base comportamental, a educação e o ambiente podem moldar profundamente a forma como reagimos. O caso serve como um lembrete de que, apesar de nossa capacidade de racionalizar, somos seres biológicos com raízes evolutivas, e estudar esses comportamentos pode nos ajudar a desenvolver formas mais eficazes de preveni-los em contextos sociais complexos.



Esse ensaio foi elaborado para disciplina Biologia e Evolução do comportamento animal

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quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Rios como Sujeitos de Direitos... e suas multiplicas implicações

por Marta Luciane Fischer


A Declaração Universal dos Direitos dos Rios surgiu de movimentos globais preocupados com a relação da humanidade com a natureza, principalmente por entenderem que ecossistemas naturais possuem valor intrínseco, independentemente de qualquer benefício econômico, social, cultural, estético ou espiritual que possam trazer para os seres humanos. A organização de ativistas, cientistas e ambientalistas Earth Law Center formalizou a declaração em 2017 passando a ser adotada mundialmente como referência por movimentos e campanhas em defesa dos direitos ambientais ao redor do mundo, além de balizar legislações e políticas públicas na garantia de proteção mais efetiva aos corpos d'água. Tendo os movimentos e legislações que tratam a natureza como um sujeito de direitos os princípios básicos da Declaração incluem como direitos fundamentais:

Direito à existência – O rio tem o direito de existir e fluir.

Direito à manutenção do ciclo natural – O rio tem o direito de realizar suas funções naturais dentro de seu ecossistema.

Direito à regeneração e restauração – Se um rio for prejudicado, ele tem o direito à recuperação natural e à regeneração de suas funções.

Direito de ser protegido da poluição – Os rios têm o direito de não serem poluídos e de terem suas águas preservadas em condições saudáveis.

Direito a não ser privatizado – O rio deve ser tratado como um bem comum e não como uma propriedade privada.

Direito à defesa legal – Os rios podem ter representantes ou defensores legais para proteger seus direitos em tribunais.

Atualmente diferentes rios ao redor do mundo têm sido reconhecidos como sujeito de direitos, fortalecendo o movimento globalmente, principalmente em países que possuem laços culturais profundos com a natureza ou enfrentam desafios ambientais críticos. O Rio Vilcabamba, localizado na província de Loja, no sul do Equador, foi o primeiro rio no país a ser reconhecido como sujeito de direitos em 2011, após uma decisão judicial histórica. A decisão veio após uma ação legal movida por cidadãos locais contra um projeto de expansão de uma rodovia. A Constituição do Equador e da Bolívia se diferenciam por reconhecerem os direitos da natureza, baseados na filosofia do ‘bien vivir’ e na Lei dos Direitos da Mãe Terra, consagram o direito de os ecossistemas, incluindo rios, existirem, prosperarem e se regenerarem. Na Colômbia, o Rio Atrato, localizado na região de Chocó também foi reconhecido como detentor de direitos próprios, como parte de uma ação para proteger o ecossistema da degradação causada pela mineração ilegal e pela poluição. Em 2017, na Nova Zelândia o Rio Whanganui foi reconhecido como sujeito de direitos, após uma longa luta do povo Māori, que considera o rio um ancestral sagrado. O governo da concedeu personalidade jurídica ao rio, permitindo que ele seja representado por dois guardiões legais: um nomeado pelo governo e outro pelos Māori. Em 2017, o Tribunal Superior de Uttarakhand, na Índia, declarou os rios Ganges e Yamuna como entidades jurídicas com direitos, para proteger esses rios da poluição e degradação ambiental. O tribunal nomeou autoridades locais como os "pais legais" responsáveis por proteger os rios. No entanto, a decisão foi posteriormente suspensa pela Suprema Corte da Índia, gerando um debate contínuo sobre o tema. Em 2021, o Rio Magpie, localizado em Quebec, foi reconhecido como sujeito de direitos em parceria entre comunidades indígenas Innu e grupos ambientais locais, buscando proteger o rio de danos ambientais e garantir seu fluxo natural. Em 2022, um tribunal no México reconheceu o sistema fluvial que deságua na Baía de Todos os Santos como sujeito de direitos, o que incluiu medidas de proteção e regeneração da bacia hidrográfica. No Brasil, o movimento está nas fases inicias destacando o reconhecimento do Rio Doce como sujeito de direitos em 2018, após o desastre ambiental causado pelo rompimento da barragem de Mariana.; do Rio Araguaia em 2019 e recentemente do Rio São Francisco.

Atribuir o status de sujeitos de direito a um Rio significa reconhecê-los como entidades jurídicas que possuem direitos próprios, da mesma forma que uma pessoa ou uma organização. Importante ressaltar que a maioria das constituições reconhecem a natureza como objetos de direitos, bem-comum, patrimônio natural ou bens móveis. Consequentemente, qualquer dano a natureza ou animais é contestado considerando o prejuízo causado às pessoas ou comunidade humanas. Assim, dotados desses direitos os rios deixam de serem tratados como objetos que podem ser possuídos ou explorados, passando a serem respeitados e protegidos seus direitos à preservação, à regeneração, ao fluir livremente e à manutenção de seu ecossistema. Obviamente que essa concepção visa garantir uma proteção mais robusta permitindo que ações legais sejam tomadas em seu nome, sendo possível designar guardiões ou defensores para representar os interesses do rio em processos judiciais. A ideia de fundo se alicerça nos princípios do direito ambiental, da ética e bioética ambiental que reconhecem que a saúde dos ecossistemas naturais, incluindo os rios, é essencial para o bem-estar de todas as formas de vida.

Ao tornar um rio sujeito implicações significativas ocorrem em diversas esferas pois visa transformar a forma como a sociedade interage com a natureza, promovendo um tratamento mais equitativo e sustentável. As implicações ambientais são as mais óbvias, pois implica na implementação de medidas mais rigorosas de preservação e recuperação ambiental, incluindo a restauração de áreas degradadas, a revitalização de flora e fauna aquáticas e a mitigação de impactos da poluição e da exploração econômica, preservando o fluxo natural e a qualidade da água. Como implicação global vislumbra-se a mitigação da crise climática, considerando ciclos hidrológicos de massas de água superficiais, subterrâneas, aéreas e congeladas e consequentemente na preservação dos ecossistemas terrestres que se estabelece às margens dos rios.
        Socialmente o reconhecimento dos direitos dos rios valoriza a conexão com as comunidades que dependem deles para subsistência, cultura e sobrevivência. Comunidades vulneráveis como as indígenas, ribeirinhas e tradicionais, que frequentemente têm relações simbióticas com os rios, veem seus direitos e saberes tradicionais reforçados. Contudo, as populações urbanas podem ter garantido que o uso de seus recursos seja regulado e compartilhado de forma mais justa, combatendo a privatização excessiva ou o controle monopolístico da água. Consequentemente, espera-se que o movimento promova conscientização sobre a importância da preservação da água e do ecossistema fluvial, educando a população sobre o valor intrínseco da natureza.
          
 
Na esfera ética atribuir direitos a um rio redefine a relação tradicionalmente antropocêntrica, em que a natureza é vista como um mero recurso para ser explorado. A transposição para valores ecocêntricos e biocêntricos admite que outras formas de vida e ecossistemas têm valor moral por si mesmos, prenunciando a responsabilidade ética das sociedades e governos com o comprometimento coletivo em proteger a natureza. Contudo desafios legais e regulatórios demandam pela criação de novas estruturas legais e institucionais para garantir que esses direitos sejam efetivamente respeitados e protegidos. Acrescido da transformação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico, como projetos de mineração, construção de hidrelétricas e agricultura intensiva. Logo, o desafio político será equilibrar as demandas econômicas com a proteção ambiental, maior fiscalização e controle sobre atividades que impactam a água e os ecossistemas. Obviamente que serão impactas aquelas empresas que se beneficiam de recursos hídricos, como mineradoras, agroindústrias e indústrias químicas, afetando modelos de negócios que não se adaptem à nova realidade. Consequentemente haverá necessidade de investimento em projetos de recuperação ambiental, conservação dos rios, regeneração de ecossistemas degradados, práticas mais sustentáveis, tecnologias limpas, ecoturismo, manejo sustentável da água e agricultura de baixo impacto ambiental e potencial de economia circular.

Pensando na proteção da água como um bem comum e garantia de que seja tratada como um direito humano, acessível a todos foi criado no Canadá em 2009 um movimento global denominado “Blue Community" visando é promover a gestão pública da água, reconhecê-la como um direito humano e eliminar o uso de água engarrafada em instalações públicas. Para que uma comunidade seja considerada "Blue," ela deve adotar três princípios centrais: reconhecer a água e o saneamento como direitos humanos, promover a gestão pública e comunitária da água, e banir a venda de água engarrafada em eventos e locais públicos. Esses princípios refletem a oposição à privatização e à comercialização da água, buscando garantir que o acesso à água limpa seja equitativo e sustentável, tanto para as pessoas quanto para o meio ambiente. O movimento tem se expandido globalmente, com cidades, escolas e organizações ao redor do mundo aderindo, incluindo locais na Europa e América Latina. Em 2023 a PUCPR recebeu o selo de Blue University, reforçando o compromisso técnico e ético na preservação da água.

Ao lado da PUCPR passa um Rio tipicamente curitibano, o Rio Belém, cuja nascente está localizada no bairro Cachoeira, nos arredores do Parque das Nascentes do Rio Belém, e desagua nas cavas do rio Iguaçu. Sua bacia hidrográfica abrange 87,80 km² de área drenada, e sua extensão é de 17,13 km. O seu leito é margeado por ciclovias, ruas, parques, casas e indústrias que alteraram sua fisiografia e hidrodinâmica. Na década de 1930, teve sua extensão retificada, onde um trecho do rio com 17,8 km passou a ter 7,2 km, no centro da cidade, área intensamente urbanizada, consequentemente foi canalizado para dar espaço as construções. Teve suas margens devastadas e ocupadas irregularmente, e lançamentos de esgoto são encontrados com frequência por todo seu comprimento recebendo o título do rio mais poluído da cidade, tal como a comunidade da PUCPR pode presenciar todos os dias. (Para mais detalhes assista ao documentário do PLUG sobre todo o percurso do Rio Belém aqui).


Estamos vivendo momentos difíceis no enfrentamento da intensidade e frequência de fenômenos ambientais. Todos os dias os noticiários trazem imagens impactantes de incêndios, estiagem, enchentes, furações, temperaturas extremas, terremotos, desastres ambientais, desmatamento e inúmeras pessoas e animais refugiados de seus locais de moradia. Embora a conscientização das pessoas parece estar aumentando, o que percebemos é uma diminuição no engajamento para mudar a realidade. De fato, o problema é muito complexo, envolve muitos atores, interesses e valores, por isso mais do que nunca a Bioética Ambiental se fez necessária. Sua natureza interdisciplinar, dialogante, capaz de identificar e mitigar vulnerabilidades e mediar debates. A deliberação coletiva é necessária e urgente, para problemas comuns, é necessário que haja comprometimento coletivo. Não basta fazer a minha parte desconectada dos outros atores que fazem parte da rede intrigada de conexão que é a existência. Nesse momento de formação técnica, ética e humanística de profissionais do futuro é fundamental que se olhe ao redor e paulatinamente se inclua em sua rede de conexões os elementos humanos e naturais que os cercam. Que tal começarmos com nossa casa? Nossa casa pode ser o Universo, o Planeta, o País, o Estado, a Cidade, o Bairro, a Casa, o Corpo físico, mental e espiritual. A PUCPR é nossa casa e a água o elemento fluido que conecta corpos, espaços geográficos e temporais em uma rede contínua de movimento e vida. Que tal começarmos a pensar do rio que é nosso vizinho, que partilha conosco todos os amanhecer e entardecer, os desafios e as vitórias? Então te provoco a pensar: o que significaria para nós se a partir de hoje o nosso Rio Belém fosse também um sujeito de direito?


Obs: as imagens que ilustram esse ensaio foram criadas pela inteligência artificial generativa copilot, com exceção da foto do rio Belém autoria própria.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

A Cura para o HIV: uma questão bioética?


Por Fabricio Azevedo

Mestrando em Bioética e Residente em Infectologia HESP




Um dos grandes desafios da medicina moderna tem sido a busca por uma cura definitiva para o HIV. A técnica de edição genética CRISPR-Cas9 fez um grande avanço nos últimos anos (Xu, 2019). Novos métodos para remover o vírus do corpo dos infectados surgiram com a ajuda desta ferramenta, que pode cortar e alterar o DNA com precisão (Wang, 2016). No entanto, levanta vários problemas bioéticos significativos ao mesmo tempo em que inspira esperança (Ayanoğlu, et. al, 2020). Atualmente os cientistas conseguem inserir ou remover segmentos do DNA usando o CRISPR-Cas9, uma técnica que funcionaria como uma "tesoura genética", permitindo aos cientistas editar os genes de maneira mais fácil (Ran, 2013). Para promover a cura do HIV, essa técnica tem sido utilizada com o intuito de remover o DNA integrado às células do infectado. Isso poderia remover completamente o vírus das células infectadas, resultando na cura da doença (Yin et al., 2017) . Os primeiros ensaios com CRISPR-Cas9 para combater o HIV deram resultados positivos em laboratório. Em alguns casos, os cientistas conseguiram extrair o DNA viral de células cultivadas in vitro. Além disso, pesquisas em modelos animais mostraram que a modificação genética pode impedir que o vírus funcione, diminuindo sua carga até que seja quase impossível de detectar (Dash, 2023). Contudo a aplicação dessa tecnologia em seres humanos apresenta muitos obstáculos. 

Como objetivo principal teríamos que garantir que a edição do DNA seja realizada sem causar efeitos colaterais perigosos ou mutações indesejadas. O sistema imunológico humano é complexo e uma alteração no DNA pode levar a resultados imprevistos e potencialmente graves (Lander, 2015). Existem preocupações bioéticas significativas além dos riscos técnicos. Por exemplo, a possibilidade de edição genética em humanos levanta dúvidas sobre consentimento informado. Antes de se submeterem a tais procedimentos, os pacientes devem compreender plenamente os riscos e benefícios possíveis. Isso é particularmente difícil em locais onde há recursos de saúde e educação limitados (Jinek et al., 2012). Também preocupa-se com a distribuição equitativa desses tratamentos sofisticados. Tratamentos de ponta, como os que envolvem CRISPR-Cas9, podem ser caros e, portanto, muitos indivíduos de baixa renda ou em áreas menos desenvolvidas não podem pagar por eles. Isso tem o potencial de aumentar as disparidades na saúde global, uma questão moral que não pode ser ignorada (Adli, 2018). A possibilidade de uso indevido da tecnologia é outra preocupação bioética. Embora o foco atual seja o tratamento de doenças, a mesma abordagem pode ser usada para alterações genéticas não terapêuticas, como mudanças nas características físicas ou melhorias nas habilidades físicas ou mentais. Portanto, é essencial estabelecer limites morais para o uso de CRISPR (Caplan et al., 2015)

É muito importante discutir quem deve comandar essa tecnologia. O governo, as organizações internacionais de saúde ou os conselhos de ética devem ser os responsáveis? A regulação adequada é essencial para evitar abusos e garantir que a criação e implementação dessas terapias sejam feitas de maneira ética e segura (Charo, 2015). Além disso, a aplicação do CRISPR-Cas9 no HIV pode criar uma nova era de doenças infecciosas ou genéticas. O sucesso neste caso poderia motivar mais financiamento e pesquisas em terapias genéticas, mas também intensificaria a discussão moral sobre a modificação genética em humanos. Para que sejam consideradas as diferentes perspectivas e valores, a sociedade em sua totalidade deve participar desses debates (Baltimore, 2024). Por fim, para garantir que os avanços no tratamento do HIV sejam realizados de maneira responsável, é fundamental que a comunidade científica, os pacientes, os legisladores e o público em geral trabalhem juntos enquanto caminhamos na fronteira da ciência com tecnologias como CRISPR-Cas9. O futuro dessas intervenções revolucionárias dependerá de como equilibrar os benefícios bioéticos com os riscos (Marchant, 2021).