Mudanças Climáticas, Saúde e Qualidade de Vida sob a perspectiva da Ética de Alteridade – Um olhar para as Enchentes no Rio Grande do Sul.

 por Kelly Priscila Scaff Vieira de Lima e Tatiana Vieira de Oliveira

Mestrandas em Bioética




As mudanças climáticas chegaram até nós. O Rio Grande do Sul em setembro de 2023 sofreu com uma enchente devastadora que destruiu duas cidades Roca Sales e Muçum no Vale do Taquari, além de todos os danos materiais, dezenas de pessoas perderam a vida e outras seguem desaparecidas.

Neste caso, como em todas as realidades extremas de destruição provocadas pela natureza como uma forma de resposta a intervenção humana desenfreada na natureza as pessoas primeiramente atingidas são aquelas que já vivem em uma situação de vulnerabilidade econômica e social. Neste sistema econômico vigente as vidas têm um valor monetário, portanto as grandes empresas já tem em seu orçamento uma previsão para atingidos pelos desastres e os governos não estão comprometidos com uma política de prevenção.

Diante dessa realidade fica evidente os agentes e pacientes morais. Mesmo que estes papeis possam sem ocupados em determinados contextos por qualquer individuo, não é possível estabelecer uma relação simétrica entre o comportamento de quem tem o poder econômico e a responsabilidade do estado com as pessoas que já vivem na maioria das vezes em situação de exclusão.

A alteridade é um conceito filosófico e sociológico que se refere à qualidade ou estado do que é outro ou do que é diferente. A vida em sociedade é baseada na interação entre os indivíduos, e a equidade das relações depende de que todos possuam o mesmo valor. Um dos princípios fundamentais da alteridade é que o indivíduo em sociedade não só interage com outros indivíduos, mas sua existência depende também da existência do outro. Por esse motivo, o "eu" só pode existir através do seu contato com o "outro”.

A ética da alteridade, segundo Emmanuel Levinas, se expõe na ideia de que o que a face “nos revela é a realidade do outro” e é o fundamento da ética capaz de inspirar e sustentar uma nova ordem humana e institucional, podendo contribuir significativamente para o processo de humanização de um novo homem no mundo e na sociedade atual. William Saad Hossne e Marco Segre publicaram em 2011, o artigo Das Referências da Bioética – a Alteridade, em que conceituam a alteridade sob as lentes de Levinas para a aplicação bioética em seus questionamentos fundamentais de a) percepção do conflito moral; b) hierarquização dos valores engajados no conflito; c) coragem para assumir posição na análise do conflito; d) condição de perceber o outro. Os autores desenvolvem, então, a percepção sob um aspecto psicanalítico e antropológico, resumindo a proposta na atenção da figura do OUTRO.

Em conformidade com essa ideia, os princípios basilares da bioética são fundamentais no exercício de alteridade nos serviços de promoção de saúde pública e bem-estar social, porque a bioética examina, de forma equilibrada, os benefícios e malefícios que podem aparecer na pesquisa e posicionar-se sobre situações de risco. Na bioética global, mesmo com as limitações, a ética da alteridade pode ser vista como uma abordagem que coloca o outro como sujeito e protagonista, usuário e crítico, responsável pelos serviços de saúde ou no desenvolvimento de políticas públicas de prevenção e manutenção de ordem, estimando a perspectiva ética da vulnerabilidade. A relação entre as éticas de alteridade e vulnerabilidade convida a reflexão de uma interação produtiva para que a biossegurança e seus objetivos derivados, possam ser plenamente atingidos, sem deixar de considerar a participação do "outro" no processo. A ética da alteridade é uma ação pouco entendida e explorada pelos profissionais da área técnica-científica, inclusive na elaboração de planos políticos.

            A UNESCO destaca a importância dos princípios éticos na mudança climática, pois ela está afetando os pilares da nossa saúde: abrigo, alimentos, água e qualidade do ar, segundo a OMS. A ética da alteridade pode ser aplicada nesse cenário, reforçando a abordagem preventiva como um dos princípios éticos na questão das mudanças climáticas, sob a perspectiva da equidade e justiça, evocando políticas públicas, baseados em ciência e integridade, com propósito, ainda que superficial de sustentabilidade e solidariedade.

Levinas ao pensar o princípio da alteridade originalmente se refere as relações humanas, entretanto, sabe-se cada vez mais que vivemos numa casa comum e que precisamos refletir sobre o cuidado de todo ambiente. Nesse sentido é que olhamos para o tema Mudanças Climáticas Saúde e qualidade de vida, a partir das notícias dos ciclones no Sul do Brasil.

O desejo insaciável de consumo, a intervenção desenfreada no ambiente, na natureza, o avanço tecnológico, a falta de compromisso dos governos e de todos os setores da sociedade em implementar políticas que garantam a sobrevivência do planeta, exige uma nova ética, uma ética do cuidado, do reconhecimento da diversidade, uma ética comprometida com a vida. Essa ética está na contramão do sistema econômico vigente que se não for revisto nos encaminha para um final devastador.  

Nós como futuros bioeticistas estimamos a inclusão de estudos éticos de solidariedade, alteridade e vulnerabilidade dentro do aspecto de políticas de redução de riscos, mitigação de danos e proporcionalidade econômica e social na distribuição da atenção mundial para os vulneráveis de desastres ambientais. Evocar a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos não tem sido suficiente para evitar o “racismo ambiental", termo esse bem empregado na ECO22, no esforço integrado, mundial, de combater os efeitos catastróficos das mudanças climáticas em países e localidades periféricos.

 

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental tendo como base as seguintes obras:

 

BONIS, Marcos De; COSTA, Marco Antonio F. Da. Ética da alteridade nas relações entre Biossegurança em saúde e Bioética. Ciências & Cognição, v. 14, n. 3, p. 98-107, 2009.

GOMES, Maria José Menezes Brito; SILVA JÚNIOR, Valdemar; SILVA JÚNIOR, Valdemar. Bioética global: desafios para a enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 61, n. 4, p. 509-514, 2008.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Petrópolis: Vozes, 2010.

SANTOS FILHO, Geraldo Majella Alves dos; SANTOS FILHO, Geraldo Majella Alves dos; SANTOS FILHO, Geraldo Majella Alves dos. Ética e alteridade: uma reflexão sobre o cuidado em enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 56, n. 6, p. 703-706, 2003.

HOSSNE, William; SEGRE, Marcos. Dos referenciais da Bioética – a Alteridade. Revista Bioethikos, v. 5, n.1, p. 35-40, 2011.