segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Até onde podemos ferir o princípio da senciência para bem-estar humano em torno do Covid-19?

 

Série Ensaios? Bioética Ambiental

Por Jaqueline Stramantino

Nutricionista e mestranda em bioética

 




A matéria intitulada “Cientistas buscam animal "cobaia perfeita" para remédios contra coronavírus”, noticiada pelo portal UOL, citava que “os cientistas devem testar os medicamentos em ratos, furões, hamsters e até macacos para minimizar os riscos de testes em humanos. No mundo todo, diversos laboratórios estão criando "estoques" de ratos geneticamente modificados e estão testando a suscetibilidade de outros animais, que tendam a ter os mesmos sintomas que os humanos. ” E em outro ponto “Os laboratórios não têm à mão espécimes vivos de cada tipo de animal. Eles congelam esperma ou embriões, e quando há necessidade usam essas amostras para construir novas colônias. ”

Notícia de caráter emblemático, uma vez que, não se sabe ao certo qual o risco que esses animais geneticamente modificados causam. Seus defensores acreditam que podem ser a solução para problemas como fome, clima e tratamento de doenças, já quem é contra, destaca que os impactos sobre alimentos, saúde, agricultura, meio-ambiente e sociedade podem ser piorados com esses animais.

O fato é que o uso de animais geneticamente modificados é uma realidade, o Jackson Laboratory tem 11 mil linhagens de camundongos geneticamente modificados em seus tanques de criopreservação, algumas dessas linhagens para estudos de tratamento de câncer outros de diabetes e outros de doenças raras.

Existem dois tipos de animais geneticamente modificados, no primeiro grupo, conhecido como animal transgênico um segmento do DNA é introduzido ao seu genoma o que induzirá a expressão de novos genes. No segundo grupo, chamado de animal knockin, ocorre uma inativação ou modificação de um gene.


Nesse sentindo, encontra-se exposto falhas em alguns princípios, como o da igual consideração de interesses, pois os animais estão sendo usados para beneficiar os humanos, partindo de uma visão totalmente antropocentrista. Além disso, o princípio da não-interferência, pois descreve que não se deve manipular, controlar, modificar, manejar ou intervir ecossistemas naturais em seu funcionamento normal, também viola o princípio da fidelidade. Uma vez que, existe uma total quebra de confiança na relação animal-humano, quando esse animal é confinado e submetido a vários testes genéticos. Outro princípio para destacar é o princípio da senciência.

A senciência nada mais é do que a capacidade de sentir dor, sendo ela um mecanismo de defesa, que quando não observada pode causar sofrimento, sendo que um animal não possui interesse em sofrer. Peter Singer, filósofo utilitarista, do século XX, adota um posicionamento sencioncêntrico, frente essa questão, relatando nas suas obras que não temos o direito de explorar os animais o fato deles pertencerem a outra etnia e possuírem menos inteligência que os seres humanos, não nos dá o direito de superioridade sobre eles.

Com a ascensão das doenças, o uso de “cobaias perfeitas” demostra avanço nos tratamentos e medicamentos mais eficazes e seguros, como, por exemplo, o uso de camundongos geneticamente modificados para o Covid-19. A ideia para o coronavírus surgiu de um pesquisador da China, assustado com a proporção do vírus e como os camundongos sem ser geneticamente modificados morriam ao serem infectados com o vírus desenvolveu um animal resistente ao Covid-19. Todavia, estamos no século XXI, com todos os avanços tecnológicos ainda existem animais sofrendo, morrendo e sendo descartados em laboratório como objetivos em prol do bem-estar humano.

Além disso, caso os animais humanos sofrerem um dano maior por sua morte. Seria moralmente justificável escolher a vida de um ser humano sobre a vida de um animal, pois a perda da vida do animal geraria menos danos. Como é o caso da pandemia do Covid-19 que até o atual momento matou 1.338.100 no mundo e 168.141 no Brasil. Porém, um meio termo nesse debate para não causar sofrimento animal e não impedir o avanço da ciência seria utilizar os animais para fins de pesquisa, desde que haja impedimento de sofrimento e dor desnecessário.


Assim, caso a manipulação genética animal gere resultados positivos, beneficiando grande parte da população, a mesma seria considerada justificável sob a visão sensiocêntrica de Peter Singer, desde que, sejam tomadas medidas para reduzir o sofrimento animal ao máximo e proporcionar condições boas de vida e manutenção para esses seres. Porém, um dilema ético é levantado, será que se o Covid-19 estivesse afetando os animais como está afetando os seres humanos, nós tomaríamos medidas para proporcionarmos condições que não agredissem sua senciência?

Essa pergunta, apresenta um tom negativo, quando é pensando que o governo da Dinarmarca anunciou no começo desse mês, novembro/2020, que iria sacrificar milhões de visions para evitar as mutações do coronavírus, pois segundo o governo do país, seria necessário sacrificar esses animais em prol do tratamento para a doença, uma vez que, a mutação através dos visions poderia reduzir os anticorpos reduzindo a eficácia da vacina em humanos. Além disso, esses animais viviam em ambientes superlotados e contaminaram 12 pessoas. Parece não haver respostas realmente positivas para isso, posto que, os moradores da região em que os visions foram mortos, estão pedindo para as autoridades os cremarem, pois há relatos que eles estão se mexendo nas covas, quando o que na verdade ocorre é que os gases da decomposição são liberados os animais podem ser empurrados para fora do chão.

Nesse cenário, a senciência desses animais é colocada à prova, já que, esses animais, não possuem intenção de sofrer, mesmo sendo justificado que haja interferência com a vacina para humanos contra a Covid 19.

Outras tecnologias e recursos adaptados para os visions poderiam ser utilizados e pesquisados, com tecnologias “mais humanas”, afim de evitar a morte de milhões de animais, dado que na declaração universal dos diretos dos animais, se proíbe sofrimento físico ou psicológico, mesmo quando existe interesse humano.

Por fim, como nutricionista e futura bioeticista, acredito que para a construção de um mundo mais justo e igualitário, o caminho será reeducar a sociedade para que com o avanço da tecnologia, não seja preciso invisibilizar e explorar os animais, porque enquanto a raça humana, prevalecer como soberana, seres sencientes serão maltratados, violentados e suas escolhas não serão respeitadas. Os direitos dos animais devem ser considerados equivalentes ao dos seres humanos.



O presente ensino foi elaborado para disciplina de Bioética ambiental, se baseando nos textos:  

COSTA, T.E.M.M et al. Avaliação de risco dos organismos geneticamente modificados. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, volume 16, n. 01, 2011.

FAGUNDEZ, G.T. Abordagem ético-legal dos direitos dos animais transgênicos. Universidade federal de Santa Catarina centro de ciências jurídicas departamento de direito. Trabalho de conclusão de curso: Florianópolis. 2016. 67p.

LUNA, S.P.L. Dor, senciência e bem-estar em animais. Ciênc. vet. tróp. Recife, volume 11, n. 01, p.17-21, 2008.

MEDEIROS C.A. DO ANTROPOCENTRISMO AO ECOCENTRISMO: subjugando o dilema da (não) atributividade de direitos fundamentais aos animais em decorrência do princípio da senciência. Fundação escola superior do ministério público. Dissertação: Porto Alegre. 136p.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Reflexões sobre a relação entre COVID-19, Degradação Ambiental e o Princípio de Justiça


Série Ensaios: Bioética Ambiental 


Por Claudia Piffero Cavalcanti 

médica psiquiatra e mestranda em Bioética 



Desde o início da pandemia de Sars-CoV-2 (COVID-19) inúmeras notícias veiculadas pela mídia têm buscado alertar e denunciar a estreita relação desta com a Degradação Ambiental planetária. No artigo "Surto de coronavírus é reflexo da degradação ambiental, afirma PNUMA”, de meados de março último, o autor faz uma análise do que vinha sendo então alertado pelo PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) como muito provável causa dessa pandemia que nesse ponto já havia infectado milhares de pessoas em diferentes países: contato humano com animal portador (pela característica dos coronavírus de serem zoonóticos). A matéria assinala que há um aumento de doenças transmitidas aos seres humanos a partir de animais, com progressivo agravamento diretamente relacionado à destruição de habitats selvagens pela atividade humana, pois a ciência viria apontando um favorecimento da aceleração de processos evolutivos em patógenos e também, portanto, sua multiplicação em termos de diversidade, justamente decorrente da degradação desses ambientes. A hipótese é que os patógenos, em consequência, passariam dos animais selvagens alijados de seus nichos e de sua posição natural na cadeia alimentar, para o contato com rebanhos (fontes de alimento humano) e com os próprios seres humanos, seja na busca de alimento, seja tornando-se alternativas exóticas/não convencionais de alimento. 

O artigo cita, ainda, declarações de Doreen Robinson (chefe para a Vida Selvagem no PNUMA): 

“Os seres humanos e a natureza fazem parte de um sistema interconectado. A natureza fornece comida, remédios, água, ar e muitos outros benefícios que permitiram às pessoas prosperar.” 

“Contudo, como acontece com todos os sistemas, precisamos entender como esse funciona para não exagerarmos e provocarmos consequências cada vez mais negativas.” 

Degradação Ambiental é um conceito que refere-se a um processo de remoção ou destruição de uma área de vegetação ou da camada de solo fértil, com consequente (grave) impacto não apenas na flora, mas na fauna (que perde seu habitat). Inclui, também, a diminuição dos recursos renováveis potenciais, advinda de uma ação via de regra multifatorial sobre aquele ambiente, levando à redução das suas condições em promover/sustentar a vida. Lamentavelmente, a história do nosso planeta e do nosso país se mescla com a história da Degradação Ambiental, chegando a níveis atuais de tão extrema gravidade que ameaçam a vida tal como a conhecemos em todo o globo, incluindo a vida humana. Essa situação crítica levou a ONU à determinação de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como meta a ser alcançada até 2030 para mitigar as devastadoras consequências das ações humanas sobre o Meio Ambiente (e viabilizar nossa sobrevivência). 

A Constituição Federal de 1988 determina que medidas de minimização dos impactos e recuperação ambiental sejam instituídas para toda atividade que produz danos ambientais. (Exemplos de atividades com forte potencial de impacto ambiental são incêndios em áreas não-urbanas, construção de rodovias, atividades de mineração e voçorocas). 

Na Conferência de Estocolmo (1972), a ONU produziu o Manifesto Ambiental e criou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em Nairóbi (1982) uma nova conferência teve o objetivo de avaliar os avanços alcançados nos últimos 10 anos e concluiu pela priorização da criação de unidades de conservação e da recuperação de áreas degradadas. 


A relação entre COVID 19 e Degradação Ambiental vem sendo amplamente estudada e documentada, graças aos avanços científicos, à experiência com a ocorrência cada vez mais frequente de doenças zoonóticas e a percepção da associação deste fato com as mudanças comportamentais humanas (e seus impactos ambientais). 

Sobre a relação com o Princípio de Justiça, ou Princípio de Equidade (um referencial ético basilar da Bioética, no qual o bem de um indivíduo não pode se sobrepor ao bem dos demais), estaríamos nós impedindo nossos filhos e todas as futuras gerações do direito à vida tal qual buscamos garantir a nós mesmos no momento presente? Estaríamos agendando o assassinato de todos, quer seja a curtíssimo prazo em função da COVID-19; a curto-médio prazo, em consequência de outras pandemias; ou a curto-médio prazo em decorrência dos outros tantos impactos que a Degradação Ambiental tem na determinação da nossa finitude? Pois com a promoção humana da atual pandemia (e das em um futuro próximo já anunciadas pelos cientistas, além de todas as outras mortes causadas em decorrência dos impactos ambientais oriundos da ação humana, como a poluição do ar, responsável por muitas milhões de mortes anuais em todo o mundo, mas que não são assunto deste ensaio) pelo acima apresentado, essas ideias não seriam em nada equivocadas (exceto pelo fato de serem de cunho antropocêntrico e negligenciarem, mais uma vez, a consideração do direito à vida, com dignidade, dos demais seres, não-humanos, também habitantes deste mesmo belo planeta). 


Essas reflexões me levam a considerar que, quando um homem se coloca de modo hedônico como aquele que tem um direito (ou vários) supremacista(s) sobre os demais, sejam da sua mesma espécie, ou não, o Princípio de Justiça está clara e violentamente alijado. Quando há tantas formas de produção agrícola (permacutura, agricultura sintrópica, etc), de economia (economia circular, etc.), tecnologia e recursos (com investimentos muitas vezes estratosféricos que as sociedades humanas não consideram imorais de serem feitos para desenvolvimento armamentista, de exploração espacial, de agrotóxicos, de pecuária, de alimentos ultraprocessados). E, ainda, conhecimento científico que demonstre que o ser humano absolutamente não precisa consumir da maneira que consome (nem matérias primas, nem alimentos de origem animal), e que a qualidade de vida e a percepção de felicidade estão relacionados, por outro lado, com a bondade, o altruísmo, o minimalismo, a gratidão pelo que já se tem, e a conexão com a natureza o modus vivendi comum atual é injustificável e indiscutivelmente injusto, a meu ver. O relacionar-se com o meio como um predador de voracidade infinita, o grande creedor do universo, visando, ainda por cima, o próprio prazer, e ignorando todas as evidências contrárias, com desdém, é característico do funcionamento psicopático. 

Eu como futura bioeticista acredito ser absolutamente vital o resgate dos valores éticos fundamentais, em que cada um de nós é agente insubstituível de modelo a todos os demais (pois aprendemos, sobretudo, por modelos, e cristalizamos nossos hábitos a partir da convivência e repetição desses padrões aprendidos). Só assim o Princípio de Justiça/Princípio de Equidade pode transbordar de todos os nossos atos (devemos e temos capacidade para tanto) e inundar, lavar toda essa mácula e injustiça que temos perpetrado (gerando os abismos da desigualdade social, das guerras e da destruição da Natureza, com um sofrimento difuso estarrecedor), abrindo mão de conveniências (como as embalagens plásticas e os descartáveis), do consumo de luxo (de artigos dos mais diversos), do desperdício de alimento, da exploração animal (como diversão, como luxo, como alimento), da exploração infantil e do trabalho escravo, da supermedicação humana e animal, do uso de agrotóxicos (ambos causando importante contaminação do Meio Ambiente), e inúmeros tantos outros. A história da humanidade prova que o ser humano não precisa dessas coisas para viver. E a história recente prova que é isto que nos está matando, mais do que qualquer outra coisa (seja biologicamente; seja também, psiquicamente). 

A seleção natural nos convida a dar um importante passo evolutivo, para o qual estamos habilitados. Imediatamente — sem elaboradas (e vergonhosas) justificativas para protelarmos. Vamos? 



O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental tendo como base os textos:

1. https://www.ecycle.com.br/component/content/article/63-meio-ambiente/8286-degradacao-ambiental-aumenta-risco-de-novas-pandemias.html

2. https://ciclovivo.com.br/covid19/surto-de-coronavirus-e-reflexo-da-degradacao-ambiental/

3. https://www.oie.int/en/scientific-expertise/specific-information-and-recommendations/questions-and-answers-on-2019novel-coronavirus/

4. https://www.greenpeace.org/brasil/blog/brasil-em-chamas-negando-as-aparencias-e-disfarcando-as-evidencias/

5. https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-43-compensacao-ambiental-os-fundamentos-e-as-normas-a-gestao-e-os-conflitos

6. https://books.google.com.br/books?id=H_HrtgAACAAJ&dq=degrada%C3%A7%C3%A3o+ambiental&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwj2qdyI_KLtAhWVGbkGHT1CAIkQ6AEwAHoECAAQAQ

7. https://books.google.com.br/books?id=OILLxlrciQsC&pg=PA25&dq=degrada%C3%A7%C3%A3o+ambiental&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwj2qdyI_KLtAhWVGbkGHT1CAIkQ6AEwBHoECAQQAg#v=onepage&q=degrada%C3%A7%C3%A3o%20ambiental&f=false

8. https://books.google.com.br/books?id=OILLxlrciQsC&pg=PA25&dq=degrada%C3%A7%C3%A3o+ambiental&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwj2qdyI_KLtAhWVGbkGHT1CAIkQ6AEwBHoECAQQAg#v=onepage&q=degrada%C3%A7%C3%A3o%20ambiental&f=false

9. https://books.google.com.br/books?id=1j1nDwAAQBAJ&pg=PT384&dq=degrada%C3%A7%C3%A3o+ambiental&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwj2qdyI_KLtAhWVGbkGHT1CAIkQ6AEwB3oECAUQAg#v=onepage&q=degrada%C3%A7%C3%A3o%20ambiental&f=false

10. https://books.google.com.br/books?id=UplYAAAACAAJ&dq=degrada%C3%A7%C3%A3o+ambiental&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwj2qdyI_KLtAhWVGbkGHT1CAIkQ6AEwCXoECAcQAQ

11. https://repositorio.unb.br/handle/10482/24286