por Mário Antônio Sanches
Professor de Bioética e de Teologia da PUCPR e Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Bioética
Ao longo dos tempos observam-se transformações nas percepções das relações humanas e sociais. Em relação à família, por muito tempo, se apregoava que era indispensável defendê-la como instituição, afirmando que era uma instituição sagrada, quase absoluta. Com esta percepção, todo modelo familiar que não se enquadrasse da rígida regra social dominante era exorcizado e, não raramente, perseguido.
Nos tempos atuais percebe-se, criticamente, que a família é importante na medida em que propicia estrutura humana e social para o crescimento, amparo e proteção de seus membros. Quando a família, ao contrário disso, violenta seus membros – os dados sobre violência familiar são notáveis – ela será questionada pela sociedade e a sua dissolução se permite e até mesmo se impõem. Esta é a percepção atual sobre família: ela não é uma instituição absoluta e reificada – com fim em si mesma - mas uma instituição importante como estrutura a serviço de todos os seus membros.
Há também novas percepções sobre as relações afetivas entre pessoas. Sabe-se que termos como ‘sexualidade’ e ‘homossexualidade’ não constavam no léxico dos povos antigos. Na época em que os textos sagrados das grandes religiões foram elaborados esta terminologia não estava em uso. Havia sim expressões que denotavam relações entre pessoas. A constituição familiar não priorizava a relação afetiva entre pessoas, e era constituída, predominantemente, para fortalecer alianças entre famílias e grupos sociais. No seio do cristianismo ocidental, católico, se consolidou a ideia do ‘consentimento’ como base do matrimônio, fundamento de uma nova família. Sabe-se que isto se estabeleceu há menos de mil anos. Os estudiosos da família nos lembram o tempo todo: a família fundada no consentimento amoroso dos cônjuges é muito recente e tipicamente ocidental.
Deste modo, chega-se a algumas posições óbvias nos nossos dias, como percepção dominante nas sociedades ocidentais. São aceitas e incentivadas as relações afetivas entre pessoas desde que estas relações tenham alguns componentes internos, dentre eles: sejam consentidas (não impostas nem violentas), promovam a realização dos envolvidos (não sejam deprimentes nem repressoras), sejam socialmente responsáveis (zelem pelo comum). Neste contexto, a família passa a ser muito valorizada por compreender que é uma instituição privilegiada para propiciar a experiência fundante de cada ser humano: ser amado de modo incondicional. Assim a família passa a ser apreciada e valorada pela sociedade na medida em que fomenta relações de amor e cuidado a cada um dos seus membros. Se a família não cumpre este papel, a sociedade atual a questiona.
Estas transformações de percepções sobre as relações afetivas e sobre a família exigem de todos nós uma postura crítica: nenhum modelo de família pode, por si mesmo, ser canonizado nem satanizado. Por questão de honestidade somos levados a reconhecer que em modelos de família, que tradicionalmente se valoriza, pode haver imposição, violência e irresponsabilidade social. Por outro lado, em alguns novos modelos de família, que muitos não apreciam, pode haver amor, afeto sadio e promoção de vida. Deste modo a sociedade aprende a acolher – embora a cegueira social possa obnubilar algumas mentes – uma grande variedade de modelos e configurações familiares.
A família homoafetiva é um destes novos modelos, muito atacado por aqueles que defendem uma família onde prima a força institucional e não a dinâmica do afeto, que a sociedade acolhe e por isso cria leis que a protege. Quando um Estado não acolhe nem regulamenta a união homoafetiva ele está deixando de proteger as pessoas envolvidas nesta nova configuração familiar. Quando o Estado não protege a união homoafetiva como família ele está apostando no seu fracasso, negligenciando as pessoas envolvidas, deixando de cumprir o seu papel de promotor do bem comum. Em resumo: é injusto o não reconhecimento da união homoafetiva como família por parte do Estado.
As religiões precisam aprender que o Estado regula as relações pessoais e sociais que promovem o bem comum. Isto nem sempre vai coincidir com o que uma determinada religião estabelece como ideal de vida.
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